domingo, 18 de abril de 2010

"Alejandro Jodorowsky" por Thiago Rocha





O tipo de produção cinematográfica do chileno radicado no México Alejandro Jodorowsky chama a atenção pela singularidade de seus temas e projetos inusitados. E é interessante observar o quanto ele registra o seu tempo apoiando-se numa tradição e deixa herdeiros dentro do cinema mexicano.

A tradição na qual se ancorou o cinema de Jodorowsky foi o cinema surrealista que Luís Buñuel realizou no México. Muito embora haja semelhanças tanto na trajetória como no cinema, é preciso ressaltar as diferenças entre essas duas cinematografias. Jodorowsky irá retomar calor vanguardista do final dos anos 1920 e começo dos anos 1930 dos filmes O Cão Andaluz e A Idade do Ouro. Já os filmes de Buñuel no México não estariam dentro da tradição surrealista que ele próprio afirmou com Salvador Dalí. Muito tolhido pelas produtoras, Buñuel se vê limitado a desenvolver sua verve mais contestadora. Daí passara a fazê-lo de forma mais contida e sorrateira. Vai filiar-se a tradição realista do cinema latino sem deixar de lado seu estilo surrealista, que vai se impregnar nos meandros das historias e no comportamento dos seus personagens. Poderíamos dizer que um cineasta como Pedro Almodóvar, por exemplo, estaria mais próximo desse surrealismo em seus primeiros filmes do que Jodorowsky. Quando Jodorowsky retoma esse surrealismo mexicano ele trás um artifício mais delirante e mais teatral. Alguns de seus filmes como o primeiro longa metragem Fando e Lis (1967) e A Montanha Sagrada (1973) foram baseados em peças teatrais.

Jodorowsky era mais homem dialogava com seu tempo. O teatro no cinema também se encontra em outras cinematografias latinas como a de Glauber Rocha. À seu modo, trata de temas como o da incomunicabilidade em Fando e Lis quando esse tema estava em voga com Antonioni, por exemplo. Ou mostra as engrenagens do fazer cinematográfico em A Montanha Sagrada como aparece em outros filmes do mesmo período como One Plus One de Godard, O Anjo Nasceu de Julio Bressane ou até Fellini 8 ½. O problema é que quando ele usa desses artifícios, não o faz com a intenção de problematizar o cinema mais do que o teatro. Não se mostra eficiente na tela e soa datado.

Mas se por um lado o cinema de Jodorowsky estaria ultrapassado por motivos estilísticos, o tipo de produção não é e foi importante. Deixou marcas no cinema mexicano da época e em trabalhos mais atuais. Colaborador de Fando e Lis e El Topo, Juan Lopez Moctezuma vai filmar Alucarda – La Hija de las Tinieblas em 1972. Trata-se de um filme de terror, um pouco diferente do estilo de jodorowsky, mas é emblemático pelo fato de fugir também do caminho realista tradicional de produção latino americana, semelhante ao que José Mojica Marins já fazia no Brasil. Outro traço da herança dessa grande produção pode-se encontrar num filme mais recente como O Labirinto do Fauno de 2006 de outro mexicano o Guillermo Del Toro. São grandes produções de capital internacional que se vale de uma conjuntura política para criar alegorias e mundos fantásticos sem necessariamente ter a America latina como pretexto. Não se trata do cinema político da tradição de Glauber Rocha ou Fernando Birri. Del toro, por exemplo, desloca seus personagens do contexto mexicano e vai filmar sobre a guerra civil espanhola. Jodorowsky vai filmar o velho oeste, fará filmes em inglês. A crítica à situação nacional existe, mas é mais pontual do que decisiva na narrativa.

O legado maior de Alejandro Jodorowsky não é tanto a de tradição autoral, e sim de uma política mais globalizada para o cinema mexicano, e por que não latino americano. Ele deixou marcas para outro cinema latino possível e sem apegos ao realismo cinematográfico. E isso é fundamental.

"Terra em Transe" por Heitor Felipe Cartaxo Fernandes



Uma das coisas mais perigosas a que uma obra de arte pode ser submetida é o rótulo de “clássico”. Esse carimbo lhe traz garantias nem sempre desejáveis: a de ser citada nos mais diferentes contextos, a de ser referência obrigatória para futuros aspirantes a artistas, a de ser alvo de estudo nas academias e, principalmente, a de ser muito comentada por pessoas que nunca tiveram contato direto com a mesma.

“Terra em Transe”, de Glauber Rocha é o que pode ser chamado de um clássico do cinema brasileiro. Pode-se dizer que, ao entrar para a história, cumpriu em parte o objetivo que permeava o contexto no qual foi produzido. Recuperar a história brasileira pelo cinema, se livrar do ranço colonial artístico, criar uma forma de angariar a consciência nacional para a realidade social do país, e tudo isso com orçamentos de fome: esse era o sonho do Cinema Novo. A história não foi recuperada, mais continuou a ser escrita com novos heróis. Mas isso é detalhe.

Mas do que trata esse clássico? Mas fácil dizer do que não trata. Sem dúvida não é uma história maniqueísta. No mundo fictício de El Dourado, nada é preto no branco. O filme se passa em diferentes tons de cinza, como as próprias imagens projetadas na tela. Um senador com nojo do povo que representa, um demagogo populista que seduz operários e camponeses para depois fuzilá-los, um burguês industrial cujo lucro é mais importante que a lealdade. Esses personagens duelam entre si pelo poder, tudo com a santa benção da igreja. Luta essa onde o povo é massa de manobra e bucha de canhão, quando não o próprio inimigo a ser vencido. Nesse contexto, surge um jornalista idealista, Paulo, que busca desmascarar a hipocrisia desse sistema político. Um paladino dos fracos e oprimidos? Se for, um muito estranho, confuso, fraco e raquítico frente às forças envolvidas, que precisa se aliar com o inimigo para conseguir ter alguma chance.

A narrativa é descontinua, caótica, dinâmica, misturando um triangulo amoroso, crises ideológicas, indecisões intelectuais, golpes e reviravoltas políticas Em “Terra em Transe”, mocinhos e vilões não existem; apenas seres humanos ocupando papéis diferentes. Há, e aqueles pobres coitados do povo que sempre perdem, claro.

O filme foi proibido pelo ditadura militar. Polêmica, mais pontos na escala dos clássicos. Por quê? Sem dúvida algum censor reconheceu em El Dourado o próprio Brasil. Na verdade, se um censor argentino ou paraguaio da época tivesse assistido a película, possivelmente haveria uma disputa sobre a identidade nacional da obra. A realidade do continente é mostrada com tanta força que as metáforas ganham imediatamente nomes locais. Talvez por isso tenha sido exigido posteriormente que o padre do filme fosse batizado com alguma alcunha, pois caso fosse apenas mais um clérigo poderia ter chovido cartas do Rio Grande a Terra do Fogo de párocos se dizendo inspiradores do personagem. Nas palavras do próprio Glauber Rocha: “É um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e podre na América Latina. Não é um filme de personagens positivos, não é um filme de heróis perfeitos”

Terra em Transe poderia ser comparado com o grito do menino que revela que o rei está nu. Mas diferente da certeza do menino, esse é um grito cheios de angustias pois não se sabe se iram acreditar ou não nas suas palavras, ou ainda, se elas preferiram fingir não ouvir. Bom, levando em conta que o rótulo de clássico, acho que foi um brado tremendo. Só não sei se o eco foi aquele que se esperava.

"O Anjo Exterminador" por Ariana Gondim


Nos quinze minutos iniciais de O Anjo Exterminador mal vemos a mão de Buñuel tal como ele ficou conhecido em O Cão Andaluz. Sem olhos cortados ou formigas passeando por onde não devem. O filme parece mais saído de um daqueles containeres hollywoodianos de onde milhares de filmes são fabricados para o mundo. Claro que conseguimos distinguir a obra mexicana, não apenas pela língua falada pelos personagens, mas também, pela péssima qualidade que o som é captado. Pode ser que nossos ouvidos foram culturalmente colonizados a ouvir o inglês, em matéria de cinema, mas, se não fosse a legenda do meu exemplar deste filme eu não teria feito muito progresso entendendo os diálogos sozinha.

Em termos de conteúdo, a história surpreende. Eleito pelo The New York Times como um dos 1000 melhores filmes do mundo, O Anjo Exterminador retrata um jantar de um grupo de grã-finos que se reúnem após uma ópera. Depois dos convidados chegarem ao palacete do casal Leandro e Luzia Nobile, estranhamente os criados, que sempre estiveram satisfeitos com o emprego, partem, deixando o mordomo, Júlio, sozinho para dar conta da festa. As horas passam e todos festejam até que quando percebem já são quatro horas da manhã e estranhamente todos decidem dormir ali mesmo na sala, mesmo os anfitriões tendo oferecidos aposentos para os convidados. Ao amanhecer a festa continua. Júlio traz o desjejum e sai para buscar uma colher de açúcar. Não consegue. A partir deste momento percebemos os dedos do surrealismo. Todos estão presos na sala por uma barreira imaginária.

Uma prisão da burguesia. Engraçado ver as relações pessoais se deteriorarem e a etiqueta ir se transformando em sobrevivência, instinto. Inicialmente cercados de máscaras, convenções, vemos a realidade em momentos que chegam a constranger, mas que em meio à estranheza da situação parece mais que estamos acompanhando um desses Realities Shows, tão comuns, no canal mais próximo de você.

Segundo o autor, em sua biografia, o filme é sobre a vontade: o que faz alguém caminhar para alguma direção ou mover um braço, por exemplo? Os personagens querem passar pela porta, mas parecem que simplesmente se esqueceram como se faz para isto. Parecem galinhas presas sobre um círculo riscado por giz em torno delas. Aliás, o filme é uma grande análise do animal-humano, todos isolados em um laboratório numa situação limite que os faz manifestar os mais obscuros e selvagens instintos.

Não bastasse a situação ímpar, Buñuel ainda trabalhou os personagens, de modo que, apesar de pertencerem a mesma ‘classe social’ (tirando o mordomo, que é o único serviçal ‘socialmente aceito’, e por isso foi o único que não abandonou a casa), porém com realidades e manias (as vezes nem tão distintas), mas, que se divergem apenas pela convivência em demasia. E de maneira linear a narrativa de O Anjo Exterminador, dá um nó na sua cabeça. Um filme que parece ser leve, mas que cada cena contém uma complexidade e uma densidade... surreal.

Em suma, o filme brinca com que, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, defende:

“Todas as pessoas tomam os limites do seu próprio
campo de visão, pelos limites do mundo”

E, para não dar uma de spoiler, digamos que, uma das cenas finais transforma toda a situação da sala em uma “micro”, saímos da exibição imaginando como seria esse “macro” e também se realmente vamos conseguir abrir a porta e, o mais importante, passar por ela.

"A moça e o padre" por Roger Bravo


Confluência criativa singular de vários artistas diferenciados, O Padre e a Moça, segundo longa de Joaquim Pedro de Andrade, exibe rigor formal e sensibilidades raras na captação sensorial da saga, algo mítica, da relação impossível entre um religioso e uma jovem. A premissa atravessa o imaginário popular há séculos e remete à história real vivida por um professor de teologia e uma mulher incrivelmente à frente de seu tempo – a clássica história de Abelardo e Heloísa. Baseado no conto homônimo de Carlos Drummond de Andrade a estréia cinematográfica de Paulo José destaca-se também pelas precisas atuações de Mário Lago, Fauzi Arap e, sobretudo, de Helena Ignez.

Curiosamente incluído no movimento do Cinema Novo (pelo próprio Glauber Rocha inclusive) esta pérola do cinema brasileiro teve como produtor associado o lendário e controvertido Luiz Carlos Barreto. Foi restaurada, junto com a filmografia completa do diretor, em empreendimentos liderados por Alice de Andrade, filha de Joaquim Pedro, em esforço que reuniu mais de cem profissionais ao longo de cinco anos. Mas o que é O Padre e a Moça, o filme, passados quarenta e cinco anos de sua realização? Retomado nesta primeira década do século XXI, o filme motivou matéria especial na revista cinematográfica eletrônica Contracampo que lhe dedicou rica atenção. Na apresentação do estudo, a pergunta primeira. Como se aproximar do filme? Qual o melhor caminho a seguir?

Não por acaso a história carrega no título os personagens-conceito. Este é um filme de grandes personagens e, para deleite da platéia de qualquer época ou lugar, personagens com intérpretes à altura de seus desafios. Para investigar então o filme importa antes de tudo conhecer melhor a geografia humana e não física desta narrativa.

Uma aproximação primeira junto aos personagens principais toca aspectos delicados da formação do povo brasileiro especialmente os atinentes à aura divinizada-demonizada da figura dos religiosos católicos. Anjos-demônios na colonização dos aborígenes no solo do Novo Mundo da América do Sul o papel da história lhes atribui, atualmente, faceta mais francamente criticável. Contudo, não é sobre a herança maldita de padre Anchieta que o filme pode ser acessado. Não é sobre a chaga dos pecados da instituição Igreja Católica brasileira que o filme pode se tornar mais inteligível. Em outras palavras, o fato de que a Igreja ter papel ativo no regime militar instaurado no Brasil apenas um ano antes do lançamento do filme em nada ajuda a adentrar esta história. Este encontro, a natureza desta relação, deste padre e desta moça em particular não parece ancorar-se em deduções objetivamente histórico-políticas geograficamente localizáveis em termos nacionais, ou melhor ainda, em termos espaciais quaisquer. Este encontro guarda, de fato, inspiração imemorial, ontológica sem maiores determinismos de território. Seu espectro perpassa culturas, épocas e também continentes. Seu poder magnético convida a percepções de um não tempo-lugar.

Se, por um lado a crítica da arte precisa balizar uma obra por suas relações com o caldo cultural de seu tempo, certas obras, por vezes, pedem uma aproximação sem maiores condicionamentos histórico-estéticos em relação a seu significado. Parafraseando Ariano Suassuna ao citar Dom Quixote, de Cervantes, certas obras atingem melhor o universal por serem, paradoxalmente, muito locais. Nada mais mineiro do que a cidadezinha de nome poético, São Gonçalo do Rio das Pedras e, no entanto, nada mais universal, do que o drama da moça que sonha com liberdade e paixão ao fugir com o padre do vilarejo.

A textura humana do padre de Paulo José neste filme convoca o ideia da falibilidade em outro plano, outra dimensão que não aquela, antropológica, citada há pouco em associação à história da Igreja. Por óbvio, a sinceridade e a cadência pessoal de suas convicções altruísticas ultrapassam em muito a chamada caridade cristã. É claro, há muito mais. A questão também não se apresenta exatamente como a contradição, o simples dilema ético entre o voto de castidade e os impulsos sexuais inerentes ao ser humano. O ponto nervoso se dá realmente na tensão de vida e morte com que os dois são confrontados por todo o filme.

A construção contida e constrangida de Paulo José para o padre certamente pertence a um seleto grupo de grandes atuações de um cinema intimista de expressões delicadas e raras na cinematografia brasileira. Tão marcante o papel, tão definidor de suas possibilidades dramáticas como ator no cenário brasileiro que, após extensa carreira que atravessa décadas, coube resgate/homenagem da figura do padre no excelente A Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele, 2009.

Paulo José chega ao vilarejo para substituir padre morto recentemente, cujas suspeitas de concupiscência são apontadas por outros personagens. A juventude (correspondente físico de pulsão de vida) da mulher, Mariana, destoa numa cidade de velhos com exceção de um comerciante iconoclasta, Vitorino, que flertou com a jovem e cuja persona permanece um tanto misteriosa por todo o filme. Não à toa o conflito de gerações. A vila e a própria Mariana são dominadas pelo líder local, o velho Fortunato, interpretado por Mário Lago que vive maritalmente com a moça. O final do padre e da moça, perseguidos por uma massa intolerante é trágico. E, no entanto, a cidadezinha nunca conheceu ninguém mais envolvido com as pulsações de vida (vida dividida, mas ainda assim, vida em alta intensidade) do que estes dois.

Mariana, na pele de Helena Ignez, experimenta o suplício dos suplícios ao ver sua vida presa em diversos níveis ao “senhor feudal” do lugar e ao próprio feudo como espaço enclausurante. Afinal, a vila é vila por não ser o mundo, mundo vasto de grandes possibilidades naturais para os jovens, mundo este sempre ausente. Não há um plano que não seja do mundo particular de São Gonçalo do Rio das Pedras, à exceção da fuga, evidente. Ao entregar sua juventude àquele lugar pequeno onde nada acontece é sua própria vida que resta sacrificada. Vida sufocada pela opressão do tempo que passa e do próprio peso do tempo do velho que desaba sobre si à noite. Vida morta. E este mundo, não exatamente por ser pequeno ou quieto demais, mas por não comportar suas necessidades de movimento e energia, impede as possibilidades de vida plena, compatível com sua natureza inconformada e desafiadora.

Sua interpretação cheia de nuances é achado precioso, ainda mais valorizado pela costumeira ausência de bons papéis femininos no cinema. Por vezes apontada como confusa e insegura, na verdade sua composição joga com contradições complexas que tornam sempre mais rico um personagem de dimensões míticas dramáticas. Tédio e medo, desejo e escárnio, raiva e humildade, vários são os terrenos emocionais que Helena consegue imprimir com vigor e intensidade. Antes de comunicar a emoção superficial de uma cena com Lago, interessou mais à Ignez penetrar em lugares emocionais com matizes múltiplas. As variações sutis numa mesma cena são um mérito por si só e se afastam do caminho mais fácil, mais tranquilo da comunicação direta que acontece geralmente través de uma única emoção básica e forte, cristalinamente expressiva. Seu desespero com a relutância do padre em aceitar a união é um dos pontos altos do filme em que a fotografia e a atuação complementam-se em construção sensorial magnética. Por estes e outros motivos a personagem da moça por vezes parece ser a mais bem construída e interessante de todo o filme; gravitando em seu entorno tudo acontece e muitas vezes sendo ela o vetor da ação.

No papel de antagonista principal Mário Lago encarna a elite branca, tacanha e mesquinha que vampiriza a cidade e, principalmente, a juventude e a beleza da moça. O que seu perfil tem de lugar-comum pode ser lido como representante humano do superego ou arquétipo do poder, associado à velhice opulenta. Não por acaso a imagem cristalizada no imaginário dos cristãos sobre Deus é o deus de Michelangelo com aspecto de velho de cabelos brancos.

O personagem de Fauzi Arap é verdadeiramente fascinante ao destoar da lógica de oposição velho/novo, pois ele parece sempre, e ao mesmo tempo, novo e velho. Da mesma faixa etária que o padre e a moça seu personagem é fusão de características associadas comumente à juventude e à velhice: carrega a amargura e a paixão, o furor iconoclasta e um peso rabugento, a ambição sexual da juventude e uma impotência em vários sentidos. É algo sugerido na estranha e um pouco indiscernível cena de aparente flashback onde a moça e ele tem um encontro frustrado. A impotência de mudar a relação de forças do lugar (vila e moça dominadas pelo fazendeiro rico) teria reflexo de sintonia também numa espécie de impotência sexual? Seu tom raivoso parece evocar impulsos assassinos que poderiam explodir a qualquer instante, contudo nunca acontecem. Arap parece carregar então as duas pulsões num só corpo, pulsões de vida e morte. Talvez por este motivo não chegue nunca a, de fato, rivalizar agressivamente com o padre no afeto da moça. Seu anarquismo oferece estranha solidariedade entre “iguais”.

Os silêncios e vazios do filme colocam o espectador na esteira certa dos tempos e sentimentos dos personagens numa cidade pobre, isolada e decadente de cidadãos anciões e conservadores. O fulgor da juventude encontrando a força das tradições e da religião como antagonista maior. A suposta pequenez dos indivíduos perante o julgamento moral hipócrita e castrador do senso comum moralista provinciano. Mas nenhuma aproximação descritiva poderá dar conta das sutilezas desenhadas pelo preto-e-branco de Mário Carneiro.

A mise-èn-scene de Joaquim Pedro instaura uma duração de convivência tempestuosa entre a escuridão agressiva da atmosfera aprisionadora da cidadezinha e o calor sexual da moça e do padre, sintoma da pulsão de vida dos jovens. A luz, especialmente expressiva, capta a atmosfera enfastiada e opressora que é melhor percebida através dos planos longos e pelas pausas destacadas quando da interação dos personagens. Há tempo para o espectador preencher mentalmente a atividade interior dos personagens ao passo que constrói imaginativamente seu passado ao assistir ao filme.

A montagem de Eduardo Escorel encadeando estes vários planos extensos será decisiva para a construção da tensão sexual no aguardado encontro entre o padre e a moça nas paragens desertas de sua fuga. Neste momento há descontinuidades e rapidez de cortes constituindo um clímax específico que oferece uma fruição não tanto racional, mais sensorial à apreensão da cena. A perseguição que, depois do retorno ao vilarejo, culminará no crime do assassinato dos dois também ganha em impacto dramático porque vem após toda a calmaria sufocante percorrida pelo filme até então.
O músico Carlos Lyra distancia-se do seu porto mais famoso (a bossa-nova) e elabora digressões e arranjos de coro feminino de beatas em temas latinos caros à tradição católica com extrema felicidade. Suas entradas induzem uma elevação da emoção a partir do material visual, contudo sem chamar a atenção demais para si, integrando-se à narrativa de forma orgânica.

O Padre e a Moça serve ainda a um debate de estilos, a uma discussão sobre identidade visual de um povo. O quanto de sua forma austera e universal pode ser creditado a uma filiação estética européia na tradição de um Bergman? Haveria um caminho visual autônomo para o filme sem adestramentos culturais neo-coloniais? Ou haveria condicionamentos na recepção ao filme e não necessariamente em sua realização?

Seja como for, pouco se discute sobre sua força, sua permanência e coesão conceitual. A obra permanecerá viva e instigante por várias gerações por ser não de um tempo-lugar referência, mas por pertencer ao terreno-tempo eterno sem fronteiras do desejo humano.




REFERÊNCIAS

http://www.contracampo.com.br/42/frames.htm
http://www.filmesdoserro.com.br/noticias.asp?task=mostrar&id=84
http://www.imdb.com/title/tt0059560/

"Terra em Transe" por Marina Paula


No calor de seu tempo, Glauber Rocha foi uma das vozes decisivas a incitar um levante revolucionário no que dizia respeito às produções cinematográficas brasileiras. É sobre técnicas de total rompimento com a estética e narrativa clássicas - importadas do cinema americano - e o engajamento político-social característicos do Cinema Novo, que o cineasta firma a sua filmografia. Terra em Transe (1967), seu terceiro longa-metragem, é um registro caótico e alegórico de uma América Latina pré-regimes ditatoriais.

Para tanto, criou-se Eldorado, país dos trópicos que, se não existia, serviu como uma perfeita caricatura do momento político pelo qual passava o Brasil no início dos anos 1960. Eldorado vive uma crise política, ideológica e social. O povo sobrevive à miséria, característica inata à sua condição terceiro-mundista; os políticos aliam-se ao que podem para chegar ao poder; a burguesia apóia quem lhes for favorável e os intelectuais perdem-se entre o fervor de suas crenças e a certeza do caos. Paulo Martins (Jardel Filho) é um poeta e jornalista contrário ao atual governo do país. Ao romper os laços com o autoritário senador Porfírio Diaz (Paulo Autran), ele migra para a província de Alecrim onde, ao lado da ativista Sara (Glauce Rocha), trabalha a candidatura de Felipe Vieira (José Lewgoy), político populista que se une ao povo e promete a salvação do país.

Toda a tensão de Eldorado é refletida áudio e imageticamente durante o filme. Em Terra em Transe, o movimento é constante, o som, a confusão de sons é precisa. A câmera quase não para, e quando para, é porque decidiu nos chamar atenção para um primeiro plano, um close-up, é para nos aproximar das feições ou dos sentimentos do personagem. Com este artifício, Glauber Rocha dinamiza a relação do espectador com o filme. Estamos de fora, mas nossa vista está por dentro dos acontecimentos, caminhando por entre os personagens, movimentando-se com eles, com os seus olhares nos questionando e acusando todo o tempo.

Também a narrativa não-linear tenciona, confunde e movimenta o filme. É mais um elemento responsável por embriagar o público, que o faz mergulhar de vez no transe vertiginoso daquele país à beira do abismo.

Terra em Transe consolidou-se, então, como o trabalho mais ousado de Glauber Rocha até o momento, tanto estética quanto tematicamente, sendo o primeiro filme que se prestava a analisar, passo a passo, o início da repressão e as consequências calamitosas das decisões tomadas, que, independente da fé do povo na igreja ou no estado, levariam o país a um fim “apocalíptico”.

Por seu caráter delator, o filme sofreu fortes pressões da censura, só estreando no Brasil após ter sido premiado em Cannes, para onde foi levado clandestinamente para ser exibido. Reverenciado por figuras influentes como Martin Scorsese, que se recentemente mobilizou-se em divulgar a obra do diretor baiano, o filme é hoje tido como um marco no cinema moderno.

"O padre e a moça" por Luciano Monteiro




Joaquim Pedro de Andrade bem que gostava de uma alegoria. Antes mesmo de filmar o clássico Macunaíma o cineasta enveredou por caminhos menos carnavalescos ao realizar O Padre e a Moça, baseado na obra de Carlos Drummond de Andrade. Aqui Joaquim Pedro cria uma pseudo-obra de influência européia. Sim, pseudo, pois o filme transpira latinidade nos tumultuados anos 60.

Paulo José, que viria a ser, mais tarde ícone tropicalista em Macunaíma, vive o Padre do título. Recém chegado a uma pequena cidade do interior de Minas Gerais para substituir o anterior pároco que acabara de morrer, o jovem vê-se envolvido no drama de Mariana, a moça interpretada por Helena Ignez, oprimida pelo pai adotivo que, segundo dizem na cidade, a abusa desde criança. A paixão entre os dois protagonistas é certa, porém, o que mais surpreende na obra é o desespero de Mariana em querer fugir do lugar e a incapacidade do Padre de tomar uma atitude.

Coberto de uma camada de formalismo e convencionalismo O Padre e a Moça aponta para uma direção nova para a época: a legitimação da cultura latina, brasileira, que até então oprimida pela cultura européia. Joaquim Pedro, busca, no formalismo europeu, subterfúgio para explorar o confuso papel do colonizador, o Padre, representante da cultura européia, jovem e cumpridor de suas ordens, frente ao misticismo e a sensualidade da pequena colônia, representada em especial pela jovem oprimida, aparentemente indefesa e alienada quanto a sua situação e ao mundo ao seu redor. Mariana, no entanto, seguindo a nova abordagem da mulher latina no cinema da época, não é totalmente inerte e sem iniciativa. Incita o jovem Padre a ajudá-la a fugir, apelando justamente para aquilo que o brasileiro latino possui de arma para combater o colonizador europeu: sua paixão pela vida envolta a doses certas de sensualidade e misticismo.

O filme é o prenuncio das revoluções tão em voga nos anos 60 e tão presentes nos dias de hoje, quando se fala, especialmente na identidade dos povos antes oprimidos pelo imperialismo secular europeu. O processo de descolonização ocorrido após a Segunda Grande Guerra deu ao terceiro mundo a oportunidade de jogar de volta nos rostos dos colonizadores de outrora toda a cultura antes imposta, desta vez, porém, com toques, temperos e sutilezas próprias de quem sofreu por séculos tal colonização. Prenunciada por filmes como Narciso Negro, de Michael Powell e Emeric Pressburger, que apesar de inglês, retrata neste filme um grupo de freiras missionárias no Himalaia que são literalmente enlouquecidas e deglutidas pela cultura local, também mística e sexuada, tal resposta dos agora chamados países emergentes continua atual e o Padre e Moça, assim como o filme de Powell e Pressburger, aponta para uma solução de menos impacto estético do que os filmes de Glauber Rocha.

Com seus contrastes quase noir, e de um tom negro profundo nas sombras, seus enquadramentos milimetricamente calculados e atuações de perder o fôlego, o Padre e a Moça bem que deveria ser um filme mais comentado, lembrado, revisitado. Alegórico, sim, porém preciso e comedido que nos serve de possível exemplo a ser estudado e quem sabe a seguido como fazem os argentinos e uruguaios. O Padre e a Moça é uma obra singular que nos aproxima como latino-americanos que somos.

" Bonança. Tempestade. (Post Hoc Ergo Propter Hoc) – Uma Visão De ‘Subida Ao Céu’ de Luís Buñuel" por Victor Laet



O mundo pode ter substituído as aventuras no mar por horizontes de carbono e areia, mas parece que, ainda sim, navegar é preciso. ¡Vale!, não, a navegação agora não proporciona mais os mistérios do mar, entretanto presenteia com estradas tão incertas quanto as ondas do sul e/ou personagens tão exóticos quanto sereias e leviatãs. Se esta afirmação soa boba, pelo menos cinematograficamente navegar é preciso. Andar é preciso. Locomover-se é preciso. Palavras de lado, filmes que abraçam a idéia de road movie sempre tiveram significativos resultados.

Podendo ser sentimentais como ‘História Real’ do David Lynch ou sentimentalóides como “Thelma & Louise” do Ridley Scott; cults como “Sideways” do Payne ou vanguardistas como “Viajo porque preciso, volto porque te amo” de Marcelo Gomes e Karim Aïonuz; honestos como “E tua mãe também” do Cuarón ou melodramáticos como “Central do Brasil” do Walter Salles; até mesmo nervosos como “O Estranho Caminho de São Tiago – A Via Láctea” do Buñuel. Enfim, é inegável o valor do road movie, especialmente no cinema ocidental não hollywoodiano.

Em 1952, Buñuel estava no México e 17 anos o separavam da feitura da cognominada heresia cinematográfica, “A Via Láctea”, contudo seus trabalhos em solo não-europeu já sugeriam características da sua linha de trabalho com a película. “Subida ao Céu” é o que o próprio cineasta caracterizava como um ‘cinema-para-comer’. Trabalhos mais comerciais os quais o ajudavam na arquitetura de produções mais ousadas. Mas apesar de não ser um clássico deste espanhol, naturalizado mexicano, “Subida ao Céu” pode ser considerado um road movie (independente da sua excelência)?

Uma narração onipresente [ - melodrama - ] apresenta e educa a platéia sobre uma remota cidadela litorânea e seus costumes. San Jeromito. Nesta vila um coqueiro vale tanto quando uma vaca e todos os recém-casados tem sua noite de núpcias numa ilha. Todos são festeiros e felizes. Outra coisa, não existe igreja nem padre na ilha. Talvez uma cutucada do ateu fanático e crítico extremo da igreja católica, mas um pífio talvez. A história tem seu ponto de partida quando dois jovens (Oliverio e Albina) recém-casados têm sua lua-de-mel interrompida pelo irmão de Oliverio. A mãe dos irmãos está no leito de morte e exige a presença do filho.

Na família de Oliverio existem, respectivamente, quatro homens: o irmão mais velho, Oliverio, o irmão caçula – todos adultos – e o netinho Chuchito. A pressa da matriarca se dá pela certeza de que seus dois filhos [o mais velho e o mais novo] querem a todo custo a partida da velha somente para serem donos definitivos dos bens [lembra Rei Lear...]. Ela ordena ao filho do meio que ele vá até uma cidade chamada Petlatan para poder passar os bens mais importantes para o neto, Chuchito. O filho, então, adentra um ônibus, onde se depara com inúmeros personagens, para enfrentar as falhas e segredos da eclética geografia mexicana.

Buñuel mostra – divertida e inteligentemente – que o trajeto é uma metáfora para a vida e, no caso, a vida da família do protagonista. Assim como as estradas, tem altos e baixos (Oliverio acaba de se casar e está prestes a perder a mãe), tem vilões e inocentes (os irmãos do protagonista e o neto de sua mãe), e escolhas essenciais (abandonar a moribunda para assegurar suas últimas vontades correndo o risco de ser vítima de fraude pelos irmãos). Face essas questões, “Subida ao Céu” é um filme assaz moralista, pois a viagem do ônibus age como uma réplica da dificuldade de fazer a coisa certa ante um mundo imprevisível [ - melodrama - ]. O percurso percorrido é preenchido com frustrações, distrações, tentações e metas de difícil alcance, tudo isso alternando entre momentos de felicidade.

Depois de uma parada num vilarejo entre as duas cidades, Oliverio segue guiando o ônibus por conta própria e somente na compania de Raquel (personagem mais bem desenvolvida e melhor atuação do filme), uma conterrânea a qual o segue durante a viagem com o único intuito de seduzir-lo [desejo esse brilhantemente enfatizado no hábito desta personagem em morder maçãs e cuspi-las depois de algumas mastigadas].

Nesse momento, os dois passam pela ‘Subida ao Céu’ (o título do filme vem de um trecho íngreme e estreito localizado no alto de uma montanha, o qual deve ser atravessado caso queira-se chegar à Petlatan, logo o título é um recorte da diegese). Bombardeados por (in)diretas de Raquel e dirigindo um trecho perigoso no meio de uma tempestade, Oliverio não resiste. Uma vez que chega ao topo, ele conhece a queda, pois se deixara tentar. Assim, o protagonista se devia do caminho da moral e trai tanto a esposa quanto os desejos de sua mãe. E como “Subida...” é um filme do Buñuel qualquer analogia com Cristo sendo tentado ou Eva ‘arruinando’ Adão não é nada errônea. A fraqueza do personagem o guia para própria derrota. E mais uma alfinetada do diretor, pois é no pico, no exato fim do percurso da subida ao céu, ou seja, em frente à porta de entrada do paraíso, ocorre o pecado. E a ironia persiste: sendo puro e agindo não por si, as circunstâncias o levaram a ser desonesto e doloso, como seus irmãos fazem na forma como tratam a partilha dos bens maternos.

No final desta puntiforme migração, o filme provê o público com o nascimento de uma criança, a morte de outra e outra a qual deve guiar àqueles que assistem a trama, o que deixa a sugerir uma possível continuação da história – mas isso nunca ocorreu.
“Subida ao Céu” é um grito fílmico cujo eco pode ser visto em “Caminhos das Nuvens” de Vicente Amorim ou “Histórias mínimas” do Carlos Sorín. Com a pretensão de apenas alimentar-se, Buñuel realizou um filme que pode agradar de otimistas – como pode ser visto na cena final, apesar de tudo, a vida sempre continua – ou pessimistas, pois uma vez que se sobre ao céu, não há lugar algum a ir, senão para baixo.

"Memórias do subdesenvolvimento" por Rinaldo da Silva Pereira Junior


Minhas lembranças da importância de “Memórias do subdesenvolvimento” para a história do cinema estavam associadas a idéias como: filme político, radiografia da America Latina, diatribe radical contra a exploração e o subdesenvolvimento dos países do terceiro mundo e um cartaz que vi uma vez em uma revista de assuntos políticos que me passava a idéia de algo extremamente sério e engajado com alguma coisa de arte política e engajada também (não lembro bem os detalhes do cartaz, mas era essa a impressão que ele me passava) , tudo isso criou em mim uma aura mitológica com respeito ao filme, além do fato de não telo ainda assistindo, nem em exibições nos cinemas alternativos locais nem na comodidade de seu sofá proporcionado pela benesse moderna do DVD player caseiro. No entanto, assistir a “Memorias del subdesarrollo” hoje, com o distanciamento que só o tempo permite e mais importante o distanciamento histórico que nos exime de posicionamentos obrigatórios e extremos (é exatamente disso que o filme trata), acabou por me proporcionar uma experiência extremamente diferente da expectativa. Vi um ótimo, excelente e importantíssimo filme, mas não um que trata estritamente de problemas políticos, mas um que discute a solidão de um homem que não quer tomar partido, embora tenha uma visão política ampla das coisas, um homem comum que prefere pensar em coisas mais perenes como arte, cultura que independem de estações políticas, e instabilidades históricas. Um homem comum que como qualquer outro homem comum busca o ideal feminino, busca encontrar o modelo ideal de mulher. É um filme sobre buscas individuais mais do que conflitos coletivos.

E onde fica no filme o tal debate sobre a América Latina? Sergio, protagonista principal do filme, parece ser, o filme não explicita, cubano nativo, habanero conhecedor dos seus arredores, mas, como ele mesmo a certa altura afirma ‘’Sempre tratei de viver como um europeu’’. A cuba e por extensão a America Latina de “Memorias del subdesarrollo” é um continente visto e pensado através de olhos eurocêntricos-nativos, criando o neologismo.

Sergio com toda sua cultura europeizada, cultura cultivada, de treinamento cultural, contrasta tanto com o subdesenvolvimento que ele encontra ao seu redor a cada minuto, e que nas suas memórias tanto pode estar associado a alguma “chica” com quem se envolveu quanto com eventos maiores de seu país, quanto com as imposições de um regime recém instaurado e com qual ele aparentemente não opõe nenhuma resistência, mas que na serenidade intelectual de quem sabe que as coisas vão e voltam prefere esperar para ver o que acontecerá.

“Memorias del subdesarrollo” é inventivamente narrado com base nas memórias de Sergio. Todo o filme nada mais é que memórias suas, que ele aparentemente tenta passar ao papel quando seus pais e sua ex-esposa deixam o país logo depois do golpe castrista para Miami, paraíso do que é moderno e chique para a burguesia cubana da época. Com uma câmera documental e analítica, às vezes até intromissora, imagens de época, de arquivo, fotos e newsreels e até registros falados de Fidel Castro e Kennedy , Alea constrói o labirinto narrativo e afetivo de “Memorias del subdesarrollo”, através de uma narração fragmentada que tenta reproduzir a maneira como nossa memória funciona.

O subdesenvolvimento de sua ilha natal e da America Latina por tabela é descrito por Sergio de varias maneiras, às vezes de modo até contundente: o povo cubano não consegue relacionar as coisas, isso é o maior sinal de seu subdesenvolvimento, o ambiente é muito brando, o cubano gasta toda sua energia em tentar adaptar-se ao momento, as pessoas não são consistentes. Além disso, elas precisam de alguém que pense por elas. No subdesenvolvimento nada tem continuidade, tudo é esquecido, as pessoas não são conseqüentes. ‘’Nos trópicos tudo se decompõe mais rápido’’. A própria transitoriedade das relações sociais sobre determinados regimes é comentada: Quando é obrigado a comparecer à delegacia por causa de sua relação equivocada com Elena, ele afirma algo como ‘’Eu sou um burguês, eles são o povo. Todos me vêm como um burguês que explora de alguma forma o povo’’.

Mas a dimensão que Gutierrez Alea foca e enfatiza é o humano. Um homem comum tendo de posicionar-se entre ideologias antagônicas e da qual não quer tomar partido, mas simplesmente observar o que a história tem a ensinar. Sergio está só em seu próprio país, ele é estrangeiro e exilado. Ele não consome e não precisa de produtos americanos assim como não critica o socialismo do novo governo. ‘’Mantenho a lucidez, uma lucidez desagradável, um vazio’’. Quando era criança estudando com padres, aprende não somente as delicias do sexo por um padre livre-pensador, mas também ‘Conheci pela primeira vez a relação entre justiça e poder’’. Depois de um debate promovido pelo governo revolucionário Sergio filosofa sobre ‘’a inutilidade das palavras’’.

Creio que de todos seus pensamentos o que melhor resume sua visão de mundo e a complexidade da vida e das relações entre as pessoas, sejam suas palavras quando deixa a delegacia já livre: ‘’ vi demais para ser inocente, e eles (o povo) tem obscuridade demais na cabeça para serem culpados’’.

"O padre e a moça" por Kianny Martinez.



Segundo longa-metragem dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, O padre e a moça, possui uma instigante independência e até certa distância de tudo que já foi nos apresentado anteriormente a título de cinema brasileiro, apesar de evidenciar certa empatia com o cinema novo. Cinema novo sim. No aspecto que se refere, esteticamente, a uma visão totalitária do país. Assim usa a grande alegoria dos personagens que vão em direção ao horizonte que trará mudança ou representará grande luta. Fato que ainda hoje é existente, como dito por Arthur Autran no texto "Cinema e História nos anos 90" (Contracampo n. 26) – “Servem de apoio a diversos filmes conformistas, através da imagem de "um belo sol no horizonte" a exprimir que "a palavra de ordem é manter a esperança".

É um filme com um enredo quase que sufocante, com personagens presos as suas próprias vidas e a própria cidade onde vivem. Além de possuir vários saltos no tempo, cena confusa que não se sabe ao certo, mas parece ser um flashback, vergonhas escondidas, mistérios, contenção... A fotografia é em sua maior parte trabalhada com planos médios que reforçam ainda mais essa idéia de distância, de prisão dos personagens e num jogo de luz belíssimo, com um tipo de imagem mais europeu. Como a intrigante história amorosa, vemos ainda a estagnação social na qual vivem todos na pequena cidade e econômica, como no tempo do coronelismo onde até o Padre era meio que manipulado para ‘estar de acordo’ com tudo que acontecia numa certa conformidade que se expande a todos. Com tudo isso filme ainda possui um caráter bastante poético, principalmente a fotografia.

A Física não se sabe ao certo o que perdeu, mas o Cinema ganhou bastante quando Joaquim Pedro de Andrade nos agraciou com esta obra prima que é O padre e a moça. Joaquim que na maior parte de sua vida conviveu com um dos grandes poetas brasileiros, Manuel Bandeira. Viria desse convívio esse tom indiscutivelmente poético e sublime que este filme possui? Ou seria influência de outra obra prima que são os poemas do mineiro Drummond? Minas que serve também de pano de fundo para a trama. Dúvidas a parte o que vemos na tela é o resultado que mescla poesia sublime e conflitos da vida cotidiana e singela. Tão belo e tão mágico quanto Limite, de Mário Peixoto, no quesito fotografia.

Sem mais comparações e indagações é um filme que possui destaque na filmografia brasileira, não tanto quanto Macunaima, do também Joaquim Pedro, mas é bastante válido vê-lo tendo em vista sua história cheia de conflitos e questionamentos morais e sociais, sua fotografia esplêndida, além de ótimos atores.

Como aluna do curso de cinema da Universidade Federal de Pernambuco, fico convicta que é de grande validez ter tido a oportunidade de conhecer esta espécie rara de tesouro cinematográfico nacional que é O padre e a moça. Recomendo a todos.

"A Vista no Topo da Montanha" por Filipe Marcena


As imagens que dão início ao filme A Montanha Sagrada, continuação do western El Topo que marcou uma geração na época do Flower Power, são exemplares no que concerne capturar a atenção do espectador e oferecer um índice do que se verá em seguida. Ainda antes dos créditos, duas jovens e vaidosas loiras são despidas e tem seus cabelos raspados por um homem vestido de preto – interpretado pelo próprio diretor do filme, o chileno Alejandro Jodorowsky -, num ritual de purificação inspirado no budismo. Planos inacreditavelmente belos que lembram mandalas, rigor estético assombroso e design de produção impecável explicitam na tela a atmosfera geral do filme.

Um homem que lembra Jesus Cristo passeia pelo México em meio a uma sociedade brutal e desorientada. No caminho cruza com turistas que tiram fotos de um massacre infantil, por um circo que conta a sangrenta história da conquista do México com sapos e iguanas devidamente vestidos, conhece um grupo de “Maria Madalenas”, carrega sua própria cruz e assim por diante. Quando chega numa altíssima torre laranja acaba encontrando seu mestre, um alquimista (Jodorowsky). O mentor o apresenta aos nove homens mais poderosos da Terra e, junto com eles, deverá procurar a montanha sagrada para substituir os deuses que moram lá e tornarem-se imortais.

Jodorowsky faz uma alegoria grotesca, escatológica, transcendental e carregada de simbolismos nem sempre óbvios, mas muito intrigantes. As representações surrealistas de certos grupos da sociedade como policiais, empresários e socialites são abertamente críticas, mesmo que a viagem do filme esteja mais próxima do fantástico e longe do real. Chocante mesmo é o quão A Montanha Sagrada é anticristão, com várias alfinetadas à igreja católica (que tal um Papa dormindo agarrado com uma estátua de Jesus Cristo?) e ao cristianismo. Para Jodorowsky a busca pelo esclarecimento espiritual começa em si mesmo, e se a piada metalingüística ao final soe um tanto anticlimática, é poderosa em sua verdade.

"Terra em transe e o Cinema novo no Brasil e na América Latina" por Renata Rodrigues Alves Monteiro


Glauber Rocha foi o roteirista e diretor de Terra em transe, ele foi a figura chave do Cinema novo e seu filme um dos maiores representantes do movimento no Brasil. Terra em transe foi produzido em 1966 e estreou em 1967, inserido no período da ditadura militar no país, esse filme é uma síntese não só da situação nacional, mas de toda a problemática política na América Latina. O filme traduz os ideais desejados pelo Cinema novo, além de utilizar inovações estéticas, que busca filmar de uma forma diferente do estilo norte-americano importado, é um filme que aborda as questões políticas nas quais estavam inseridos os países latino-americanos, conceituando a arte engajada, e fazendo uma crítica social feroz à realidade desse contexto. Com a ditadura instalada no Brasil, e a nova Constituição do governo do general Artur da Costa e Silva, na qual determinava a censura prévia à imprensa e meios de comunicação, foi um filme de muita polêmica, já que tratava dos problemas sociais, políticos e econômicos de um país fictício que muito se assemelhava à situação nacional. Terra em transe é de certo modo a discussão das questões latino-americanas e a encarnação dos conceitos do Cinema novo.

Terra em transe nos apresenta a República fictícia de Eldorado (uma alusão ao ideal Ibérico da riqueza que representava a América Latina), onde vive o jornalista e poeta Paulo Martins (Jardel Filho). Envolvido com um político conservador, Porfírio Diaz (Paulo Autran), que se tornou senador, Paulo se afasta dele por não suportar a sua visão elitista e seu comportamento déspota, e segue caminho a cidade de Alecrim. Lá ele conhece Sara (Glauce Rocha), uma ativista que está ligada ao político Felipe Viera (José Lewgoy). Paulo e Sara iniciam um romance, e juntos eles apóiam o vereador Viera na candidatura a governador. Paulo acredita que Viera é um líder populista capaz de mudar a situação de Eldorado, de salvar o país do subdesenvolvimento. Eleito, Viera não confirma as expectativas de Paulo, cedendo e sendo controlado pelas forças econômicas locais que o apoiaram nas eleições. Paulo desiludido deixa Sara e a cidade de Alecrim, e retorna a capital de Eldorado. Nas noites, como o mesmo descreve: cede aos desejos da carne, que é o que lhe resta. Ele se aproxima do maior empresário do país, Julio Fuentes (Paulo Gracindo). Busca o apoio do empresário para impedir que Diaz, candidato à presidência com o apoio do atual presidente Fernandez, se torne presidente, alegando o apoio de uma empresa multinacional chamada Explint, que explora as terras de Eldorado, ao político, e que esse apoio possa acarretar no controle da maioria capital nacional pela empresa. Pois é a Explint que mantém Fernandez na presidência e que financiou a campanha de senador de Diaz. Fuentes sente seu império dentro de Eldorado ameaçado pela projeção do controle econômico por parte da Explint, e se compromete a salvar a economia do país das mãos da multinacional. Julio Fuentes entrega o seu jornal a Paulo, para ele atacar o candidato Diaz. O Jornalista se sente mal por ferir o homem que fez tudo por ele, mas amava a Sara e sabia que destruir Diaz era estar livre e voltar para ela e para as promessas de Viera. Depois dos pedidos de Sara e de seus companheiros,

Paulo e Viera se unem novamente, para a candidatura do político a presidência. Viera mantém sua política populista, como prega: “... A força é o povo!”; e tem apoio da Igreja. Mas Fuentes trai ambos aliando-se agora a Diaz e a Explint. Álvaro (Hugo Carvana), conta a traição para Paulo. Ele quer reagir, partir para a luta armada, mas Viera desiste, não quer ver o sangue do povo derramado. Paulo questiona a sua liderança. Uma sucessão de cenas segue, nas quais aparecem Diaz proferindo seus ideais conservadores, onde ele “colocará as histéricas tradições em ordem”, e a revolta de Paulo que sai do Palácio num carro com Sara e é alvejado por policiais culminando numa cena épica onde ele segue com sua a arma cambaleando pelas dunas e a apontando para o céu. É o fim, e não parece, Paulo morre, mas a luta continua.

Inserido nesse contexto onde a maioria dos países latino-americanos sofriam imposições de ditaduras, mas cada um a seu modo. Os países que mais se destacaram nessa época foram Brasil, Argentina e México, nações que não tiveram um período tão sangrento como em outros, o que influenciou esse destaque. Cada país com sua realidade, mas que se traduziu no mesmo desejo, surgindo de várias formas seja Cinema novo no Brasil, ou Libertação na Argentina, Independente no México, ICAI em Cuba, grupo ukamu na Bolívia, Terceiro mundo no Uruguai, Experimental e Novo Cine chileno, Novo na Venezuela e Documental na Colômbia, o mesmo desejo de denuncia da realidade do subdesenvolvimento, da permanência do colonialismo cultural e mais do que tudo da consolidação de um cinema original latino-americano, sem importação do norte-americano ou europeu. Sobre essa formação e seu combate Glauber escreveu: “nosso cinema é novo porque o homem latino-americano é novo, a problemática é nova e nossa luz é nova, por isso nossos filmes são diferentes. O cineasta do futuro deverá ser um artista comprometido com os grandes problemas de seu tempo. Queremos filmes de combate na hora do combate”. O filme retrata a realidade da América Latina desde os pequenos detalhes como nomes (de origem espanhola: Fuentes, Martins, etc), música (às vezes sinfônicas, outrora de característica indígena), caracterização dos personagens e ambientação, à questões sociais como populismo, conservadorismo, religião, empresas multinacionais, dinheiro, numa desconstrução muito pessimista do contexto no qual estava inserido o Brasil e os outros países. Para entender o filme tem que saber desse contexto, a fim de identificar a feroz critica social presente.

Dessa posição,podemos sublinhar a importância do filme para a história do cinema nacional e latino-americano, que é o seu caráter de denúncia, sem esquecer a originalidade estética (que possui influências da escola soviética de montagem) e o incrível tom poético da obra. Junto com Fernando Solanas, Tomás Gutiérrez-Alea e outros, Glauber Rocha ajudou na formação desse cinema latino-americano, e com engajamento caracteristico, suas realizações repercutem muito no que é realizado na atualidade. Com um reconhecimento internacional, recebeu prêmios nos Festivais de Cannes, Havana e Locarno, Terra em transe é um épico, um filme marcante, que expressa intensamente o espírito latino-americano da época, o espírito revolucionário.

“Maria Candelaria”, por Paulo de Sá


Ao começar sua carreira nos anos vinte como figurante de westerns em Hollywood, Emilio ‘El Indio’ Fernandez trouxe, alguns aspectos da cinematografia norte-americana para o cinema latino-americano, e mais especificamente para o seu próprio país, o México. Há, porém, vários elementos que retratam sua nacionalidade, sendo facilmente identificáveis dentro de sua filmografia. São estes mesmos elementos as grandes marcas de Fernandez e que o fizeram se tornar reconhecido no meio cinematográfico.
Maria Candelaria, obra que retrata pequena parte da vida de uma índia a qual vive em uma pequena aldeia no México, se encontra perfeitamente no quadro anteriormente descrito. Filha de prostituta assassinada pela comunidade local, justamente pelo julgamento do modo com o qual “ganhava a vida”, Maria Candelaria, interpretada por Dolores Del Rio, sofreu durante toda sua vida com a humilhação a qual era imposta, tal como os preconceitos por causa de sua falecida mãe e também com a marginalização que ela era obrigada a se submeter, vivendo sempre longe do centro de sua aldeia.
Lançada em 1943, esta obra apresenta vários aspectos que aos poucos se concretizaram na cultura audiovisual mexicana, sendo ‘El Indio’ um dos responsáveis por tal acontecimento. A presença precursora de elementos novelísticos, por exemplo, como o exagero narrativo em cada ato da pobre Maria Candelaria, assim como do sofrimento vivido por Lorenzo Rafael, seu amado, interpretado por Pedro Armendariz, formaram uma verdadeira base para a produção que existe hoje de novelas mexicanas, as quais exploram de forma melodramática temas como o preconceito, o sofrimento e o amor. A presença de personagens que se eternizaram no audiovisual melodramático também é de suma importância; exemplos são os próprios mocinho e mocinha, o vilão, entre outros. Vale ressaltar que é possível estabelecermos conexões com o período da Vera Cruz no Brasil, a qual também trilhou caminhos explorados pelo cinema mexicano, o qual havia se concretizado um pouco antes.
Desejando impor um tom artístico ao seu filme, Emilio Fernandez trabalhou com Gabriel Figueroa, fotógrafo internacionalmente reconhecido e concorrido no mercado de trabalho entre os grandes cineastas. Figueroa, com sua brilhante fotografia em preto e branco nesta obra, soube fazer o que poucos na América Latina daqueles tempos conseguiriam. Com o contraste genial de luzes e sombras, e o uso da luminosidade das chamas de fogo (cena em que os aldeões correm para expulsar Maria Candelaria da aldeia, por exemplo), Figueroa conseguiu, inclusive, dar ótimo suporte não só para a estética do filme, mas como também para sua narrativa.
Há, porém, aspectos presentes no filme importados da produção hollywoodiana. Para exemplificar, a trilha sonora se assemelha bastante com os dramas da época produzidos nos Estados Unidos, sendo este um dos aspectos que não demonstram aspectos nacionais e sim remetem a elementos já concretizados na produção cinematográfica norte-americana.
Uma das grandes obras de Emilio ‘El Indio’ Fernandez, Maria Candelaria teve sua participação e incrível importância para mostrar as bases de toda uma cultura audiovisual e, em parte, cinematográfica que estava por vir no México, sendo portanto de relevância inquestionável para a cinematografia não apenas do país, mas de toda a América Latina.

quarta-feira, 31 de março de 2010

“O padre e a moça” por Maria Cecília Shamá


Dessa vez o problema foi a janela. Interrupção da opressão, quadrado minúsculo de novidades ultrapassadas. O ir à janela tinha sido uma provocação. Se não há nada para ver, ninguém para falar, um outro alguém sequer para escutar, porque se insiste em ficar na janela? Afinal, uma janela é só uma janela. Nada mais. Ou teria a janela mais conteúdo do que a moça? A janela era a solidão acalentada, agarrada a um fiapo de esperança. A questão não era a janela. Era a rua, eram os outros. Afinal, era só uma janela. Não era?

É dessa forma que se inicia O padre e a moça, quando do tom inquisitivo de Honorato para com Mariana, num jogo incessante de respostas sem perguntas. São as elaborações de um homem enciumado indagando a uma moça enclausurada numa cidadezinha isolada do mundo, acerca do por que dela procurar. Ato desesperado que se instala como forma de expectativa, transforma-se em amor mal concebido pela figura do padre recém chegado, e exaure não só a moça, mas a quem assiste sua trajetória preenchida pelo nada.

Mariana (a atriz Helena Ignez) é vista pelo prisma de sua mocidade sufocada pelas crendices e hierarquias sociais de pessoas arcaicas, tanto quanto a paisagem em que estão estabelecidas as construções da cidade. É no enterro do antigo padre que vemos o delineamento sócio-cultural dos habitantes daquela região. São velhas beatas fofoqueiras, orações culpadas visando o perdão advindo da confissão do pecado e não do arrependimento do gesto, um tutor abusivo legitimado pelo status da família e a religião hermética que circunda a atmosfera do local. A denúncia social cabe ao bêbado da cidade, o farmacêutico Vitorino, figura recorrente na filmografia mundial. É aquele personagem relegado às margens sociais e visto com incredulidade, em nome dos bons costumes. Sua embriaguez e falta de estabilidade social são a expressão de condescendência adquirida tanto por ele mesmo quanto por Joaquim Pedro de Andrade. Uma denúncia social com ares de derrota, manifestada por picos de sentimentalismos convenientemente freados.

Os habitantes da cidade não se tocam, não conversam entre si, nem ao menos se olham detidamente. O tom de fofoca fica claro no uso da câmera ao captar a linguagem corporal dos atores, sempre de costas, sussurrando segredos, ocupados demais em se manter enclausurados de si e para si. A sociedade legitima seus desvios e vícios desde que recolhidos ao universo do alheio. O ser humano é então visto como um conjunto de partes incompletas, agregadas à escassez de não querer ser algo mais.

O padre encarnado por Paulo José, misto de revolta e ingenuidade, vê Mariana mais como causa social do que como mulher. A fuga é um ato desesperado por liberdade. Mas não há ninguém lá fora, as casas estão vazias, a estrada é grande demais para ser percorrida por apenas dois sujeitos, em busca de um futuro incerto. Na vontade de ter um futuro, na necessidade de controlar o presente a todo custo. Mas a vida é imparcial e não permite escapismos a longo prazo.

A fotografia de Mário Carneiro nos lembra a todo instante o peso das convenções. O cinza das pedras se mistura à pele dos moradores da cidade, e as edificações suportam o peso das tradições. A igreja imponentemente clara retrata a ilusão de perfeição designada aos seres superiores. As paredes sufocam, impedem a passagem, o chão que limita o tombo é o mesmo que conforma. E dessa forma constituímos a hierarquia social do conformismo, assim como muitos o fizeram antes de nós e o farão por muito tempo depois.

Mariana rompe o invólucro do amor proibido. Permite-se ser vista como mulher e não experimento social, pelo homem para quem transferiu a responsabilidade da possibilidade. Na cena de amor entre os protagonistas se insere o erótico das partes, que vão dar vida ao todo.

Uma existência desgastada por tradicionalismos e abandono. Uma cidade do interior de Minas Gerais entregue a si mesma e por isso alheia ao mundo. Talvez fosse uma forma de traduzir certa falta de esperança que acometeu os brasileiros na década de 1960. Era um grito sufocado de uma nova geração, do próprio cinema novo, tendo que lidar com o passado evocado pela intransigência institucional. Vidas que precisavam ser, apesar delas e para além delas. Não só pelo ato de se estar vivo, mas de se sentir vivo.

sábado, 5 de dezembro de 2009

"E sua mãe também" por Camila Nascimento Martins


Um olhar maduro sobre jovens de idades diferentes. O filme de Alfonso Cuarón, “Y tu mama también” (2001) é um road movie que acompanha o amadurecimento dos personagens e do seu roteiro. A primeira vista parece uma trama adolescente sem maiores preocupações mas a medida que a viagem vai se tornando mais longa, os três personagens vão crescendo e o drama aflorando.

Julio e Tenoch são dois amigos adolescentes que convidam Luisa, uma jovem adulta, para uma viagem à praia. O tom da narrativa até certo ponto é de pura brincadeira juvenil. Eles conversam sobre sexo durante a viagem e vão ficando cada vez mais íntimos, amigos. A leveza destes momentos da estrada é quebrada, no entanto por um olhar para as margens das rodovias. Eles estão viajando por um México pobre e o filme registra o que está no acostamento daquelas vias. Pontuando os habitantes e os acontecimentos da beira da estrada, o filme parece querer metaforizar o que há de inato nos homens e nas relações humanas. Há uma intenção política neste registro, sem dúvida, mas há também uma metáfora para o que é inerente aos seres humanos de uma forma geral. Luisa precisa daqueles rapazes naquele momento da mesma forma que eles precisam dela; as pessoas se precisam, isto é o que há de estático (inerente, inato) nesta dinâmica que é a estrada da vida.

O envolvimento entre rapazes e a moça é inevitável. Ela está sofrendo pela traição da qual foi vítima e seduz um e depois o outro. Isto os deixa enciumados e capazes de se ferir mutuamente confessando que um já havia feito sexo com a namorada do outro. Estabelece-se o conflito e Luisa ameaça deixá-los. Ela desencadeia e resolve a situação.

Neste ponto o drama está mais maduro. Regado a muito álcool o envolvimento dos três personagens chega ao clímax. Eles fazem sexo a três. Uma experiência decisiva na vida dos dois adolescentes. Eles não estavam preparados para tamanha entrega. Luisa apesar de mais velha parece carregar a inconseqüência da juventude, e uma falta de limites entre a liberdade e a libertinagem está estranhamente presente nela. Isto nos é justificado somente no final quando sabemos que ela estava doente e sabia que ia morrer.

Aos rapazes, sobrou-lhes a lembrança de uma experiência vivida e o final de uma amizade. O filme começa alegre e jovem e termina com o pesar da maturidade. Assim mesmo como a vida.

"A menina santa" por Wilson Rocha


Quais os efeitos que uma sociedade repressora exerce sobre seus indivíduos ? Sejam por critérios religiosos, familiares, profissionais a sujeição a regras estabelecidas aprisiona o homem dentro de um dilema do que pode ser certo ou errado, isolando-o. Em “A Menina Santa” de Lucrecia Martel todos os três papéis principais direcionam-se a debater estes tipos de conflito.

Centrada na figura de Amália, a Santa a que se refere o título, a obra da diretora argentina navega por diversas situações sem proferir uma sentença favorável a um comportamento bastando-se apenas em desenvolver as questões de forma imparcial e livre de méritos pré-definidos. A conclusão é particular, e sendo assim, relativa.

Amália é uma jovem adolescente, filha de pais separados e onde as primeiras impressões sobre sexo e afetividade são confusas. As aulas de religião apenas fomentam essa dicotomia entre o que parecer ser sagrado e o pecado tentador. Os comentários maliciosos feitos por sua melhor amiga, a prima Josefina, muito mais experiente no que tange as tentações do sexo, apenas sublinham sentidos hipocritamente velados entre o que se diz e o que se quer. Josefina é o arauto do filme, que retira as pressões dos dogmas e traz a noção de realidade menos utópica que a educação tenta instituir sem se preocupar com as consequências.

O turbilhão de sensações invade o emocional de Amália quando o médico hospedado no hotel de sua mãe, Dr. Jano, tira uma ‘casquinha’ com a adolescente numa cena que os dois estão em um aglomerado na rua. A atração que Amália sente pelo Dr. Jano é irresistível e o médico passa a ser vigiado pela menina, que o torna ícone dessa sua fase de descobertas. Ícone este que também vive seu momento de ceder aos chamados pecaminosos e permeia um caminho que pode comprometer a sua reputação valorada de homem casado e de posição profissional respeitada.

Neste jogo de sentimentos contidos Helena, mãe de Amália, perfaz esse círculo e tenta restabelecer sua vida após a separação do marido e de saber que o mesmo espera filhos gêmeos de sua nova esposa. Vinculada aos mesmos ditames morais do ambiente que lhe cerca ela não se contém em se insinuar para o médico que já despertara em sua filha sentimentos adormecidos.

A câmera de Martel conduz o expectador, através das sutilezas das expressões faciais dos atores, aos seus mundos particulares, às suas almas. Amália é uma das figuras que tem menos falas no filme, contudo é a que mais se comunica e se deixa transparecer pelo seu semblante. Nessas cenas em que imagem dispensa um diálogo a lascívia, o medo e a insegurança não se ressentem de qualquer outra fórmula para indicar o estado interior dos integrantes do filme. Um olhar mais demorado e hesitante, um sorriso temeroso, um toque despretensioso tem uma carga erótica muito mais forte do que uma cena explícita de desejo. E é disso que se vale o filme de Lucrécia Martel: sensibilidade na captação, exposição e na forma como ela conduz o olhar para a leitura das imagens.

“A Menina Santa” radiografa tudo o que é incontido e o que aflora sem refutá-los ou questioná-los de forma a entendê-los como fazendo parte da natureza humana. Eximir-se dos mesmos pode parecer o mais sensato e menos ingênuo do que sucumbir, porém não mais humano. Essa carga particular do exercício secreto de uma intimidade guardada às sete chaves atrela a si um sentimento de solidão que acompanha e une os personagens na incerteza de seus futuros.

"SOY O NO SOY CUBA?- Resenha do Filme Soy Cuba, de Mikhail Kalatozov [URSS / CUB, 1964]" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Cuba, 1964. Com apenas uma semana em cartaz desde seu lançamento uma grande epopéia cinematográfica sobre a revolução daquele país é arquivada. Após 30 malogrados anos de esquecimento esta parceria entre Cuba e a antiga União Soviética foi redescoberta e restaurada pelos cineastas Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. Estou falando de Soy Cuba, a lendária superprodução regida pelo fotógrafo e diretor russo Mikhail Kalatozov. Que motivos levariam a esse engavetamento repentino, visto que atualmente o filme é considerado uma obra prima do cinema mundial e seu ressurgimento é tratado como um achado arqueológico?

Durante dois anos uma equipe mista de soviéticos e cubanos trabalhou na elaboração desse filme, um extraordinário poema visual de exaltação à então recente Revolução Cubana. Buscando retratar o período que antecedeu a queda do ditador Fulgencio Batista, a obra é claramente dividida em episódios que representam os momentos de dominação americana nos contextos urbano e rural e a resistência do povo cubano no apoio à militância estudantil e à guerrilha na Sierra Maestra. São capítulos intercalados pela narração em off da própria nação cubana, uma voz feminina que recita poeticamente sua situação social e política. A obra segue a forma de construção eisensteiniana, com partes, que funcionariam de maneira individualizada apresentando os diversos momentos da revolução, porém com o sentido definitivo fechado da maneira que é disposta na composição total.

As elites culturais dos dois países recusaram a proposta. O lado cubano não se sentiu representado no filme. De fato há uma excessiva estetização, principalmente visual, da história, dos tipos humanos, sociais e indumentárias. O olhar estrangeiro predominou na representação do povo e na dramaticidade exagerada de algumas seqüências. Embora todo virtuosismo da equipe técnica, principalmente da impecável, acrobática e belíssima fotografia [lente grande angular / filme infravermelho], torne a obra um primor de qualidade estética, toda essa beleza desagradou justamente por não ser Cuba. Já o lado soviético, acredito que com todo esse foco na construção formal e dramática, recusou o filme por achá-lo pouco revolucionário. Seus elementos narrativos são trabalhados de maneira intensamente poética, porém enfatizando uma postura mais defensiva das massas, e freqüentes situações de opressão e humilhação da parte do ocupante americano.

Conceitualmente Soy Cuba é um grande filme e sua força está concentrada mesmo na forma: além da já citada fotografia, aliada à grandiloqüência dos seus planos-seqüência estão os competentes recursos de sonorização e montagem, que criaram diversas e criativas soluções narrativas para exaltar ainda mais a estética do filme. No entanto, toda essa habilidade técnica dos soviéticos pareceu não ser suficiente para um registro fidedigno da realidade cubana, talvez por uma falta de aprofundamento nos estudo da cultura do país. As pessoas pareceram um tanto artificiais, a imagem dos heróis cubanos é apenas sugerida, o nome do filme se mostrou pretensioso... e a voz em off soou mais como uma senhora de sotaque eslavo ao dizer: “Sou Cuba”. Mesmo sem ser.

"Whisky" por Cleiton Costa


Nos últimos dez anos, a America latina chamou a atenção do mundo para o seu cinema. Entre diversas produções de vários países, alguns filmes se destacaram por encarar um tema ainda pouco explorado pelo cinema ocidental (e improvável em Hollywood): o cotidiano comum. A argentina Lucrecia Martel encabeçou tal iniciativa com Pântano (La Ciénaga) e nos seus filmes seguintes, explorando o cotidiano ao extremo, onde tudo indica algo, mas nada acontece no sufoco da rotina. As Luvas Mágicas (Argentina, 2003) do diretor Martín Rejtman leva de uma forma mais descontraída essa abordagem da rotina entediante dos seus personagens. Mas, o melhor exemplo (a meu ver) da perfeita construção do tédio do cotidiano é Whisky (Uruguai, 2003) dos diretores Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Filme que alcança o equilíbrio entre o fascinante e o maçante (o desequilíbrio é um perigo constante de filmes com essa proposta).

Whisky nos apresenta Jacobo Köller, um senhor judeu que está indo pros 60 anos, dono da mini-fábrica de meias Köller. Marta é sua funcionária antiga, que já beira os 50, e que cuida do fabrica junto com ele, além de fiscalizar as outras duas funcionarias. Jacobo é carrancudo, ranzinza, o típico judeu “econômico”, frio, mas educado. Marta é a uma mulher introspectiva, passiva, obediente. E o mundo dos dois é: chegar ao amanhecer no trabalho, sair à noite. Um mundo acostumado à repetição, às maquinas, à incomunicabilidade. Mas a relação dos dois é quase conjugal. O conjugal que virou rotina. Talvez nada mudasse esse modo de levar a vida, a não ser o elemento estranho ao meio: o irmão de Jacobo, Herman, que mora no Brasil e vem para as cerimônias de passagem do aniversário da morte da mãe judia. Herman, o oposto, moderno, simpático, extrovertido, inquieto. É o bastante para abalar a vida dos dois seres inertes.

Whisky toma como ponto de partida esses personagens e seus universos, mostrando um delicado cuidado na construção deles, e do modo minimalista de com eles se relacionam. Personagens que têm tantos detalhes que preencheriam páginas. Um desses mundos próprios é o que está entre os dois irmãos: a rivalidade de Jacobo para com Herman, tudo transmitido sutilmente através de pequenos gestos de antipatia, onde Jacobo faz de tudo para não ficar por baixo do irmão. Personagens que praticamente personificam a situação social do Uruguai (como o arcaico Jacobo) e do seu vizinho Brasil (como o moderno e desenvolvido Herman).

Apesar da força dos personagens dos irmãos serem sempre colocados em foco e darem mote a história, Marta consegue, com o decorrer da narrativa, atrair a filme para o seu mundo. Um mundo particular e fascinante. Uma mulher fechada que esconde a grande pessoa que é, e que só precisa de uma mão para se soltar: Herman, ele é que vai incentivar esse desabrochar, criando momentos em que ela aprenderá a se divertir e a sorrir de verdade (e não forçar, como ela costumava fazer), relembrando até seus tempos de garota, como na brincadeira de inverter as palavras. Todo o sentimento disfarçado dela por Jacobo, indo gradativamente se revelando aos poucos (mas até no máximo da revelação, ainda assim, sutil), e mesmo diante das claras/sutis declarações de afeto, a indiferença de Jacobo. Situação essa que provoca a grande transformação do filme: a Marta que vai ficando cada vez mais independente desses sentimentos, em uma crescente auto-valoração, até ao momento de libertação total, na cena em que ela fuma na frente dele.

E a grande ironia de Whisky é que o título, que remete à bebida alcoólica, não tem esse sentido no filme, porque, no Uruguai, essa é a palavra usada na hora de tirar uma foto. Momento que acontece duas vezes: com Jacobo e Marta, e entre os três. Momento que em que eles fingem estarem felizes e unidos. Mas logo depois, cada um segue seu caminho.

"As luvas mágicas" por Juliana Ribeiro


O porquê do título desse filme de Martin Rejtman se perde devido à quantidade de coisas extremamente absurdas que se passam num curto espaço de tempo. Vários relacionamentos se constroem e se rompem, e ao mesmo tempo pouco sentimos suas repercussões, pouco o tempo é dentre um fato novo e outro.

Alejandro é um taxista, tem amigos não tão convencionais, que gostam de música menos convencional ainda, e tentam a todo custo deixá-lo surdo, mas nem todos entendem essa surdez. Ele resolve vender seu carro para investir no negócio de luvas mágicas, que acredite ou não, realmente existe (nunca tinha ouvido falar), coisa de argentino. Bem, as situações mais cotidianas são retratadas de maneira tão peculiar e histérica, que fica difícil de acreditar que esse tipo de negócio realmente exista.

O novo cinema Argentino é bem recebido no cenário mundial principalmente pela forma como representa o cotidiano de maneira cômica, estranha, comum no aspecto da circularidade da vida de todo dia como em Whisky. A empatia que temos com os personagens de As Luvas Mágicas é criada pela forma como dançam, pelos diálogos entrelaçados, que começam numa cena e são reiterados em outra totalmente diferente, e no meu caso, pela hipocondria. A presença dos calmantes é posta de forma teatralmente hilária, só fico decepcionada pela dosagem ter diminuído com o tempo (quem começa com Valium e termina com Rivotril?), deve ter sido essa a intenção.

O filme é curto e quando termina passa a sensação que é cada vez mais comum no cinema Argentino de que o final ainda estaria por vir. O que é perfeitamente aceitável subentendendo-se que a vida dos personagens ainda continua, e que não é necessário um final real para cada passagem dessas vidas. É um tipo de abordagem que pode facilmente destruir o filme para o público, mas não é o caso de As Luvas Mágicas. O filme é tão prazeroso, que apesar do final súbito, passa a sensação de ter sido bem resolvido quanto à proposta.

"As luvas mágicas" por Paula Riff


Assim como outros filmes do cinema latino americano, “As Luvas Mágicas” também tem como tema central o cotidiano das pessoas. O que o diferencia dos demais filmes é a fuga nonsense que os personagens se utilizam para escapar do monótono e do previsível. Sendo assim, ao invés de utilizar-se de um enredo monótono e lento, de personagens densos e do anticlímax, esse filme opta por uma abordagem cômica e absurda, exatamente para servir de contraste a esse cotidiano simples e “normal” que estamos acostumados a ver. É através das relações esdrúxulas entre os seis personagens principais que a história se desenvolve e constrói situações tão ridículas que extrapolam o habitual e compõem cenas quase surreais.

Alejandro é um homem de meia idade que não tem família construída e que permanece em um subemprego. A sua rotina está aparentemente normal até que sua noiva, Valeria, resolve romper o relacionamento sem muitos motivos e concomitantemente surge uma relação repentina entre ele e Sérgio que, de apenas mais um dos seus vários clientes, se transforma em seu amigo, sócio e conselheiro amoroso.

Ao longo do filme notamos que o único personagem completamente acomodado e aparentemente satisfeito com sua rotina é Alejandro. Sendo assim, de todas as mudanças que acontecem a ele, nenhuma delas, tem iniciativa sua. Ele é, a todo o momento, forçado ou influenciado pelos outros personagens a mudar e consequentemente a fugir do que lhe é habitual. Desta forma, tanto o fim como o início dos seus dois relacionamentos não dependeram de uma ação sua, assim como a idéia de investir em um negocio e prosperar economicamente na foi sugerida por ele. Alejandro parece ser incapaz de agir sozinho, talvez por estar genuinamente feliz com seu cotidiano ou apenas por não ter nenhuma ambição, a realidade é que Alejandro é um personagem completamente dependente, e se a história fosse apenas sobre ele, o filme não teria ação alguma. Talvez seja por isso que o filme seja tão repleto de personagens e todos parecem ter relevância até maior do que Alejandro de quem, aparentemente, é o papel principal.

Cada personagem tem uma loucura a parte que expõe um pouco da urgência interior que todos tem em negar e fugir da mesmice do dia-a-dia. A mania de Sérgio em gravar músicas de heavy metal, o vício que Valeria adquire pela mistura de remédios e uísque e a obsessão de Susana em se intrometer na vida dos outros por não ter nada de excitante na sua própria vida são exemplos que ajudam o filme ao dar esse formato grotesco e completamente diverso dos demais.

O final é feliz para quase todos os personagens com exceção de Alejandro. Embora tenha, assim como todos os outros personagens, conseguido mudar sua vida, Alejandro não está satisfeito, quer voltar a sua normalidade, a ter o seu carro velho. Resta saber se ele vai tentar voltar ao seu status quo ou vai se conformar novamente e esperar que os outros tomem atitudes por ele.

“As Luvas Mágicas” é um filme que cumpre o que seu enredo propõe. Vai além dos filmes habituais e quebra com um tipo de cinema latino americano que já estava começando a virar rotina. Afinal, tudo que é demasiadamente repetido cansa, até mesmo o cinema.

"Pipoca para Pensar" por Nilson Braga de Almeida


O entretenimento no cinema é visto como algo sem valor para alguns especialistas. Talvez, apenas eles conheçam os reais motivos para isso. Porém, não precisa ser expert no assunto para identificar características que ajudem a confirmar tal afirmação. Olhando, por exemplo, para as diversas comédias românticas (O Amor Não Tira Férias, Se Eu Fosse Você 2) e filmes adolescentes (as intermináveis sequências de American Pie) que todo ano são lançados, dá pra facilmente perceber indícios do porquê da existência dessa linha de pensamento.

Piadas sem nenhuma graça e, por vezes, grosseiras. Situações forçadas que beiram o ridículo. Total previsibilidade. Estes são apenas alguns dos muitos erros que acometem a grande maioria desses filmes. Feitos exclusivamente para obterem êxito financeiro, usam fórmulas já conhecidas, sem nenhuma inovação.

Mas, ainda bem que algumas películas quebram essa regra e conseguem divertir com qualidade, contrariando a visão generalista dos já citados entendidos da matéria. No cenário latino-americano, que não é tão diferente no sentido comercial da coisa, obras como Lisbela e o Prisioneiro e O Filho da Noiva mostram que o sucesso econômico não é sinônimo de pobreza artística.

Neste último vemos, de um lado, um típico melodrama: a mãe de Rafael tem Mal de Alzheimer e o seu pai pede ajuda para realizar um antigo sonho. Do outro, um romance: a namorada dele se sente só, insatisfeita com a falta de presença do companheiro. Nesse meio, ainda há um relacionamento distante com a filha pequena e a chegada de um antigo amigo, pra lá de abusado. De quebra: situações cômicas a todo instante.

Só de pensar nesta mistura de gêneros, dá pra imaginar que não é nada fácil fazer a composição destas cenas e encaixá-las numa relação de coerência que agregue, ao mesmo tempo, dinamismo e simplicidade. Além de conseguir isso, a produção argentina faz com que o espectador e o protagonista se dividam entre a paixão, o compromisso, a família, a responsabilidade, tudo mostrado numa rápida passagem de tempo onde quase nada do que realmente importa na vida é aproveitado, como ocorre no mundo contemporâneo.

É isso o que permeia o homem moderno: o corre-corre comum dos dias agitados, numa constante aceleração, onde não se pode parar, nem pra pensar, nem pra perceber que ao redor existem coisas de grande valor, pessoas e momentos que não voltam jamais. Pena que só mais tarde vem o desapego ao que não interessa. Pena que depois já não dê mais pra fazer muita coisa.

Com certeza, a originalidade não é o trunfo desta obra de Juan José Campanella. Embora repleto de ingredientes exaustivamente testados, o filme serve para provar que o cinema pode, mesmo utilizando os mesmos temas, os mesmos enredos, se tornar interessante quando se usa a criatividade, encontrando soluções inesperadas para situações banais e explorando sabiamente os momentos-chave da trama. Ao assisti-lo, o público sai da sala de projeção com um gostinho de satisfação, com uma sensação de que o cinema pode fazer rir e chorar, além de pensar.

"Navegar impreciso- resenha sobre 'O canto do mar'" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Navegar é preciso, viver não é preciso... A beleza das ondas e o horizonte indefinido do mar sugerem caminhos turvos, trajetos e possibilidades nos quais uma pessoa pode projetar suas esperanças, seus sonhos, seus ideais. Talvez por uma imprecisão do destino em terra, muitos indivíduos enxergam na serenidade das águas a solução para seus problemas e a satisfação de suas necessidades. A incerteza deste caminho parece ser algo mais concreto, mais sólido que a rigidez da vida em terra firme. As palavras do poeta se aplicam muito bem à abordagem de o Canto do Mar [Brasil, 1953], filme de Alberto Cavalcanti em sua fase brasileira.

Gravado no Recife, a obra fala da miséria e da falta de perspectivas de vida do homem nordestino. Um grupo de retirantes do sertão passa uma etapa no litoral pernambucano enquanto espera pela partida rumo ao sul do país, em um navio. É durante esta fase de transição que nos é apresentada a família de Raimundo, residente na capital. Após um acidente seu pai torna-se inválido por deficiência mental. Maria, a mãe, toma a liderança da família, cabendo ao filho parte da responsabilidade pela subsistência de seus parentes. Além dos citados, a irmã mais velha Nina e o irmão pequeno, Silvino. Assim, Raimundo e as pessoas de seu convívio sofrem com a falta de perspectivas do meio em que vivem.

Cada um lida à sua maneira com a dura realidade: A mãe é bastante severa, trabalha como lavadeira e procura manter a unidade da família, no entanto seus esforços são em vão; Nina, desiludida, encontra no meretrício uma alternativa ao destino que lhe espera; E Raimundo, ainda esperançoso, encontra no mar a saída para seus problemas. Planeja fugir com a namorada para o sul, esforçando-se para conseguir o dinheiro para as passagens de navio para a cidade de Santos. Porém, como fala uma garota ingênua – interessante personagem secundária – o destino engana. E é com essa situação que o jovem aos poucos se depara.

O Canto do Mar é um remake do filme En Rade, do próprio Cavalcanti, produção francesa de 1926. Nascido em uma família de militares positivistas, não encontrava aceitação em casa, devido à sua homossexualidade. Estudou na Europa, onde fez carreira no cinema, tendo lugar de destaque nas vanguardas francesas e na escola documental inglesa. Após trinta anos fora do país, é convidado para o cargo de direção de arte na Vera Cruz, a grande tentativa de estabelecer uma indústria cinematográfica nacional. Junto com sua bagagem internacional, Cavalcanti traz uma série de profissionais estrangeiros para dar conta dos filmes, além de capacitar brasileiros para os cargos técnicos.

Como se sabe, a Vera Cruz foi um fiasco. Além do preconceito que sofreu por sua orientação sexual, o cineasta sofreu vários ataques tanto dos intelectuais conservadores quanto dos mais progressistas. Assistindo O Canto do Mar, pode se imaginar algumas das razões: O filme mistura elementos do então recente neo-realismo com aspectos mais tradicionais, principalmente na forma. É um filme de transição, precursor da temática nordestina tão abordada na década seguinte, com o cinema novo. Causou polêmica também ao expor para o mundo a miséria do contexto nordestino, além de elementos da cultura popular, o que deve ter incomodado bastante as elites culturais. Mesmo assim o filme é bastante equilibrado, tem um bom roteiro e qualidade na abordagem e na técnica. Mas a excessiva estilização fugiu um pouco do contexto nacional. O sotaque brasileiro parece forçado...

Assim como os personagens de seu filme, o cineasta se deparou com uma realidade que lhe foi hostil. Mesmo com o prestígio internacional, Cavalcanti não conseguiu se adaptar ao seu local de origem. Era um estranho no ninho, um estrangeiro no próprio país. Profundamente amargurado, o brasileiro partiu de volta para a Europa, onde também se sentia deslocado entre três países, França, Inglaterra, Brasil. A imprecisão do destino forçou-o a procurar por outras identidades, nacionalidades, navegar por outros horizontes.

“Whisky” por Rafaella Cavalcanti


Solidão, monotonia do cotidiano, inércia dos personagens, mecanização do ser humano. O tempo circular. Tudo isso perdura no premiado “Whisky” (2004) de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll.

A história é simples. Jacobo (Andres Pazos) é um homem de seus 60 anos que reside em Montevidéu, Uruguai. Vive sozinho e trabalha todos os dias em sua pequena fábrica de meias. Marta (Mirella Pascual, em brilhante atuação), 48 anos, é supervisora da fábrica e todos os dias espera na porta, exatamente no mesmo lugar, para Jacobo abri-las. A mesma rotina. Ligar as máquinas, preparar o chá, ajeitar as persianas. Tudo isso bem frisado por cenas demoradas e planos algumas vezes repetidos. Quando chega Herman (Jorge Bolani), o irmão de Jacobo que está há mais de 20 anos morando em Porto Alegre com a família. Ele também possui uma fábrica de meias, mas aparentemente os negócios vão bem melhor que os do irmão. Ele vem para a matzeiva da mãe, que os judeus fazem para a colocação da pedra do túmulo. Jacobo, por vergonha ou mesmo por algum instinto competitivo entre irmãos, pede que Marta se passe por sua esposa enquanto Herman se hospeda em sua casa.

É nesse fiapo de narrativa que “Whisky” se firma, marcado acima de tudo pela delicadeza, somado ainda à um humor peculiar. Aquela inércia dos personagens reflete-se nos cenários, nos carros velhos, nas poucas pessoas da cidade. Tudo lembra um Uruguai que já viveu melhores dias.

Os pequenos detalhes que vão sendo descobertos sobre cada personagem, tanto o espectador como eles mesmos, tornam-se mais próximos, gerando uma nova percepção sobre quem são aquelas pessoas, mas principalmente o que as fazem estar ali envolvidas naquela prisão de rotina que acabam por acomodarem-se.

Se a promessa da poética do cotidiano ordinário no cinema latino-americano de fato é uma promessa, o filme está em suas melhores definições. É um melodrama discreto, mas tão capaz que tentar inserir elementos que o deixasse “convencional” talvez simplesmente não funcionasse tão bem.

O final que surpreende mesmo sem grandes reviravoltas, é a prova de que fazer o simples ser tão bom pode ser mais difícil do que parece.