segunda-feira, 4 de julho de 2011

Lavoura Arcaica, por Yuska Ferreira


os pés gordinhos de Selton Mello...

O filme é o primeiro longa metragem de Luís Fernando Carvalho e pra manter a fidelidade ao livro de mesmo nome, no qual o filme é baseado decidiu filmá-lo sem roteiro prévio. Luiz dirige transformando as palavras do escritor Raduan Nassar em imagem poesia. O livro é narrado por Pedro. Pelo seu ponto de vista o protagonista e narrador nos leva a conhecer seus pensamentos, sua vida e sua família patriarcal e de origem libanesa. No filme a voz do locutor representa o pensamento de Pedro, que quase discorre o livro acompanhado de imagens. Não sabemos em que época ou lugar exatamente se passa a história, assim o contexto é quase deixado de lado e o foco está nas personagens.

Primeira cena, Pedro está num quarto de uma pensão quando seu irmão aparece para levá-lo de volta pra casa. A partir da sua conversa com o irmão viajamos pelas lembranças do protagonista. Somos levados ao quarto de pensão e a infância de Pedro alternadamente, os cortes são ao mesmo tempo frouxos e secos, acompanhando o fluxo de memória de Pedro.

Os cenários de sua infância são claros, as imagens e os sons nos fazem provar das mesmas sensações que o menino protagonista. Somos enterrados também nas folhas, sentimos a claridade de sua casa, os carinhos que sua mãe lhe dava escondidos do pai. E ao mesmo tempo também ouvimos o seu irmão conversando com ele no quarto de pensão. Na cena da festa o ritmo acelera e as imagens dançam junto com a família, sentimos Pedro encantado com a dança da sua irmã, ao mesmo tempo incomodado. A mistura de sentimento é passada pra nós, não sabemos o que ele realmente sente, mas podemos extrair um leque de significados.

Em meio a tochas e gritos de suas irmãs, somos levados também ao devaneio e a imaginação dele. Passado, presente e devaneio, o que Pedro acha que estar por vir, se misturam. O gesto do menino com as mãos entregue ao pai para bater se completa e se repete no quarto de pensão.

A câmera passeia lentamente, como se olhássemos escondido entre as paredes ou pelo buraco da fechadura. Vemos o que os filhos escondem do pai. O momento da partida de casa é lembrado pelo protagonista, a mãe está na cozinha com a mão na farinha, a câmera se aproxima lentamente traduzindo o receio e a vontade do garoto de falar com a mãe, mas de repente recua também lentamente, como o menino que em silêncio deixa a casa.

Já é noite no quarto de pensão, iluminado por apenas uma luz, as imagens escuras representam a embriaguez dos irmãos que aumenta. As imagens da infância aparecem mais e se misturam sempre com o devaneio de Pedro. Afirmando que há uma ligação não só com o passado e o presente. Mas que a repressão do pai desde sua infância contribui para seus medos e sonhos. Passamos a não saber o que mais intenso, o que afeta mais Pedro: lembranças ou delírios.

E no meio da história das lembranças, a câmera vaga pela casa velha vazia, a casa onde os irmãos incestuosos, consumaram o amor. E na casa vazia ouvimos somente a voz do narrador, quase que lendo para nosso deleite páginas do livro de Raduan Nassar. Com uma música de fundo somos envolvidos pelas luzes que entram na casa, pelas folhas no chão, o sensorial aflora. A poesia imagética transcende.

“o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição? que instante, que instante terrível é esse que marca o salto?. ”

A cena se livra de todas as ataduras sensório motoras. Criando sensações óticas e sonoras puras, que independem das ações. A câmera descreve o espaço. O plano sequencia, o traveling, a profundidade de campo e até os cortes são submetidos ao pensamento.

No começo do filme em um único plano Pedro olha sua irmã dançando, a câmera vai em direção ao jardim, e vemos então ele andando, na linha do trem, fugindo de casa. Não houve corte e em apenas um plano, duas temporalidades foram unidas. O importante não é como as imagens aparecem uma depois da outra, mas todos os signos que ela pode trazer consigo. E como a montagem pode contribuir para mostrar o desenvolvimento psicológico da personagem.

Cenas da infância de Pedro se intercalam com cenas de amor com Ana. Cuidadosa e ingenuamente o menino caça a pomba pra deixá-la livre, pois dela só quer o amor. Assim ele quer também Ana pra si, um amor também ingênuo,mas cheio de culpa. Os dois momentos lembrados pelo protagonista compõem o cinema do interstício, as imagens não se encadeiam, as imagens não são seqüenciais, mas elas resignificam uma a outra. O cinema transforma duas temporalidades, duas imagens, em uma. E ao mesmo tempo em várias, não é mais possível atribuir apenas um significado. E as imagens também fazem transparecer a desordem de pensamentos de Pedro.

Ele que antes estava tão certo em seu discurso, que se banhava no rio gritando querer ser profeta da própria vida. Agora, numa cena carregada de metáfora, ele está no mesmo rio, perdido e gritando por Ana. Ao mesmo tempo ele ainda é preso ao discurso do pai, ainda pede perdão aos céus.

No final a única a não se submeter ao discurso do pai. A única realmente a ser livre de toda a tradição, pegue sua liberdade com sangue.

O Sangue do Condor (Yawar Mallku) - Jorge Sanjines, Bolívia, 1969, por Pedro Coelho


Sangue do Condor compartilha muitos elementos com o cinema latino americano da década de 60: o esquerdismo, o discurso antiimperialista; a representação da realidade das camadas pobres da sociedade; a pobreza de recursos no sentido técnico. Mas é importante situá-lo como um filme especial dentro do novos cinemas.

Do ponto de vista técnico temos um filme que se aproximaria mais do neo-realismo de um Nelson Pereira dos Santos do que os convulsionais filmes do Cinema novo brasileiro ou do tom de documentário revolucionário muito praticado pelos argentinos. Isto é, uma linguagem clássica aplicada a um cinema feito com não-atores, em locações externas. Se no cinema novo brasileiro bradava-se por uma estética da fome, em sangue de condor temos uma estética da simplicidade, da espiritualidade e calma indígena: não há movimentos elaborados de câmera, nem o uso de câmera na mão, os planos não são extravagantes em composição e em beleza; a montagem também é simples e clássica, trata-se de uma montagem paralela decifrando o passado e o futuro dos personagens, mas sempre no sentido de tornar a narrativa clara do que em interferir propriamente nela, com exceção de uma seqüência onde a montagem vertoviana com rostos e mascaras nos coloca dentro da confusão de sentidos do personagem.

A história se desenvolve em duas direções através de montagem paralela: o líder comunitário que é gravemente ferido pela policia local após rebelar-se contra estrangeiros que implementavam um projeto de esterilização coletiva na pequena comunidade indígena. Temos a vida simples, com tradições e valores próprios que entram em confronto com os interesses e jogos de poder de estrangeiros. Esses fatos são narrados pela esposa do líder ao irmão que vive na cidade e que juntos tentam salvar a vida do herói gravemente ferido. Os custos do tratamento são altos demais e quase exclusivos para a autocentrada elite local. Encurralados e nos limites de si próprio, o véu de ilusões dos colonizadores terminam por cair e revelar a verdadeira
face do progresso prometido.

Talvez o atributo mais belo do filme, seja não a tragédia do próprio filme, mas a tragédia que o filme está inserida e que com ela tenta se comunicar. A Bolívia é o pais mais pobre da America latina e a quase cinco séculos sua população indígena vem sendo sistematicamente escravizada e exterminada. A sua sangrenta origem nas minas de prata de Potosi, que utilizava escravos indígenas de todo o império inca, que marchavam para a morte certa e dolorosa. Um pais que até hoje não conseguiu dar um passo adiante e sair do mar de sangue genocida. Um pais sem identidade e infértil que grita desesperado enquanto continua sendo saqueado.

O valor documental e alegórico somado ao esforço monumental, porém simples e sincero, que o filme em si representa é uma experiência formidável de conhecimento e compreensão dos povos e indivíduos que partilham