sexta-feira, 25 de junho de 2010

"O homem em cena", por Marina Paula


Na década de 1990, em meio às crises econômicas de uma Argentina recém saída da ditadura, registra-se a emergência de um fenômeno cinematográfico. É Pizza, Birra, Faso, estréia de Adrian Caetano e Bruno Stragnaro, em 1997, que marca o início de um novo cinema feito no país. Filmes independentes, de baixo custo, realizados por jovens ousados, que resolvem nos trazer um lado ainda não muito explorado pelas produções portenhas anteriores. Em vez de um discurso político repleto de alegorias que representassem todo um país, é dado lugar ao indivíduo. Os olhares agora centram o cotidiano dos personagens, que, muitas vezes, nada têm de incomum, e a aposta é que seja mesmo essa falta de grandes explosões e viradas de jogo que cause algum fascínio no espectador. Algo que Mundo Grua, primeiro filme de Pablo Trapero, faz com maestria.

É já numa das sequências iniciais, com imagens em preto e branco e uma instável câmera no ombro, que o cineasta nos convida a (literalmente) seguir seu personagem principal. Rulo (Luis Margani) é um homem de 49 anos de idade à procura de emprego. A situação atual em nada pode nos remeter à sua vida anterior. Agora muito acima do peso, seus cabelos desgrenhados e semblante cansado destoam completamente de sua imagem na juventude, quando tocava numa conhecida banda de rock. Dependendo da ajuda de amigos para conseguir trabalho, acompanhamos todas as etapas do seu processo de contratação, até a posterior rejeição.

À primeira vista, por dar tanta ênfase à questão do trabalho e do desemprego, pode parecer que o filme mantém-se preso a uma tradição de cinema “denuncista”, mas não demora muito para percebermos que Trapero está muito longe de assumir tal posição. É, inclusive, uma grande característica de seu cinema saber mostrar esses problemas sociais sem necessariamente erguer bandeiras. Focando todas as atenções no protagonista, Mundo Grua consegue funcionar, sobretudo, como um registro da situação da classe média durante o malogro que assolava o país à época. Um registro de como a situação passava a condicionar certos aspectos na vida de cada pessoa. São as dificuldades do momento que fazem com que Rulo deixe de lado o desejo de viver como músico para se deixar levar por trabalhos maquinais, destino seguido também por seus outros companheiros de banda, e que, posteriormente, o farão deixar de lado sua própria casa, família e relacionamento para trabalhar em outra cidade.

Acompanhar os dias de Rulo, conhecer o seu apartamento emporcalhado, seu relacionamento com sua mãe e seu filho, que, de alguma forma, parece tentar repetir o sucesso musical do pai (sem sucesso, vale dizer), os problemas de saúde, seus risos, novos amores e amizades, tudo mostrado sem grandes elipses e sem maquiagens, parece realmente nos fazer ter a sensação de estar sendo apresentado a uma pessoa real.

Talvez o sucesso de Mundo Grua, e dos filmes de Trapero, em geral, esteja mesmo em saber combinar a ousadia de reproduzir numa tela a vida de uma pessoa de forma altamente verossímil e o bom senso de saber quais momentos desse dia-a-dia aproveitar, balanceando essas escolhas de maneira a não se arriscar por um radicalismo como o de La Libertad, filme posterior, de Lisandro Alonso, nem precisar criar alguma pequena trama paralela que possa fazê-lo ganhar interesse. Agora, seus cenários e personagens reais bastam como representantes de um cinema argentino que nos traz, finalmente, o homem em cena.

"morango e chocolate", por Luizy Silva

Vladimir Cruz

Alea


Morango e Chocolate integra a filmografia de um dos cineastas de maior relevância de Cuba. Tomás Gutiérrez Alea, autor de obras primas como: A morte de um burocrata (1966) e Memórias do Subdesenvolvimento (1968) teve bastante reconhecimento internacional com o filme Morango e Chocolate (1994), co-produzido por Juan Carlos Tabío. Atuante desde os anos 40, ainda com documentários, foi o principal cineasta do governo de Fidel Castro, a partir de 1959, e refletiu sobre a prática de cinema num país subdesenvolvido. Mesmo sendo um cineasta político e pró-revolução, Alea sempre buscou a reflexão e fez questionamentos ao regime cubano. Assim como outros realizadores, fez parte de um movimento de resgate da identidade do cinema latino-americano (décadas de 60/70), em oposição ao modelo Hollywoodiano. Acreditava no cinema como instrumento político e de transformação social, ponto forte em suas obras.

O filme se passa em Havana pós-Revolução e mostra o surgimento de uma amizade entre dois cidadãos cubanos, Diego e David, que vivem em universos totalmente diferentes. Diego (Jorge Perugorría) é um artista homossexual, inconformado com a repressão da sociedade cubana. Ele é um crítico ferrenho à atual situação de Cuba, à falta de liberdade de expressão e à impossibilidade de abertura cultural da Ilha. David é um jovem estudante e integrante da Juventude Comunista, que se apresenta com uma postura moralista.

O encontro dos dois acontece, casualmente, numa lanchonete em Havana, após uma desilusão amorosa de David. Diego interessou-se por ele, inicialmente como uma possibilidade de romance, depois pela possibilidade de ajudá-lo a conhecer melhor o seu país e outras culturas (ampliar a sua visão de mundo).

Ao longo de todo o filme percebemos a presença de elementos que remetem à situação política do país. Imagens de Guevara ao longo da cidade, frases da revolução, enfim, são indícios de uma posição política do autor. Outro ponto que me chamou a atenção foi o sincretismo religioso. Imagens de santos (um altar com a imagem de Santa Bárbara) são misturadas a rituais da matriz africana (na cena em que Nancy faz um “trabalho” pra “amarrar” David ).

Assim como em outros filmes de Alea, Havana nos é apresentada com um caráter documental. O dia a dia da cidade, as pessoas, as habitações, tudo isso forma um painel de como é a vida em Cuba.

O apartamento de Diego é um universo a parte. Inúmeras referências à cultura latino-americana, como livros e discos (um livro de Mario Vargas Llosa e um disco de Maria Calla entre outras coisas), despertam a curiosidade de David, que passa a freqüentar o lugar. Percebe-se um amadurecimento dos personagens ao longo da narrativa. Não apenas a ampliação da visão de mundo de David, mas um olhar menos intransigente por parte de Diego. Os personagens vão influenciando um ao outro, construindo uma amizade sólida e mudando a visão de cada um sobre sexualidade, arte e, principalmente, sobre a situação política do país. David sai da condição de alguém autoritário e moralista para a de libertário.

Em resumo, Morango e Chocolate promove um embate entre dois personagens distintos, como forma de refletir sobre as conquistas e os problemas do comunismo, apontando para um novo caminho possível para a Ilha. O filme venceu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Cinema de Berlim, em 1994. Foi o primeiro filme cubano a receber uma nomeação do Oscar para melhor filme estrangeiro.

'Maria Candelária (1943)", por Lucas Caminha



Do consagrado diretor Emílio Fernandez, Maria Candelária é um clássico do cinema mexicano. O filme traz o casal mais emblemático da cinematografia mexicana: Doleres Del Río, como Maria Candelária, e Pedro Armendáriz, como Lorenzo Rafael. O longa foi produzido na chamada “época de ouro” do cinema mexicano.

Maria Candelária é uma indígena que vive isolada no lago de Xochimilco, descriminada pelo seu povo pelo fato de ser filha de uma indígena que se havia prostituído. O que ela mais deseja é que sua porca cresça e tenha filhotinhos, para vendê-los, e com o dinheiro poder se casar com Lorenzo Rafael, seu namorado. Ao longo do filme, vemos Maria Candelária enfrentar a fúria dos que a desprezam pela sua condição de filha de uma prostituta. Além de Lorenzo Rafael, o padre local sempre intervém como mediador de conflitos entre Maria Candelária e os outros indígenas, projetando a idéia de uma Igreja conciliatória.

O que mais me chamou atenção nesse filme foi a fotografia. Gabriel Figueroa, renomado diretor de fotografia, que trabalhou tanto no México quanto em Hollywood, parceiro de Luis Buñuel, trabalhou na fotografia desse filme. Vemos ao longo do filme uma riqueza de imagens, que nos mostra paisagens desse México indígena.

Outro ponto muito forte no filme é a trilha sonora, muito presente desde a primeira cena. Composta por Francisco Dominguez, ela tem um toque melódico que se adéqua muito bem ao enredo do filme e a triste vida de Maria Candelária.

A atuação dos atores é algo, que na minha opinião, ficou devendo um pouco no filme. Contudo, esse fator não consegue tirar a qualidade do filme, até porque sabemos que naquela época as propostas e técnicas de atuação eram diferentes das de hoje em dia.

Maria Candelária, além de ser um filme espetacular, ganhador de diversos prêmios internacionais, como a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, confirmava a grandiosidade do projeto cinematográfico mexicano. É um excelente exemplo de como o repertório de signos desta mexicanidade, que vinha se construindo desde os anos 20, dá-se no interior de um produto cultural, consumido por milhões de mexicanos e latino-americanos continente afora.

"Sorria, você está na América Latina... e na poesia do homem comum universal", por Roger Bravo


Ninguém parece beber uísque em Whisky, o filme. Apenas o uruguaio que retorna ao país natal após vinte anos, vindo do Brasil onde é bem-sucedido, apenas ele, não parece precisar muito da sugestão do fotógrafo de pronunciar a palavra e assim conseguir um sorriso menos apático, mais sincero. Já o sorriso do espectador irrompe várias vezes em correntes de estranheza e deslumbramento com a certeira ironia, o instigante mistério e as situações desconcertantes da película.

A circunstância de ser o uísque a bebida preferida dos estadunidenses, contraponto cinematográfico e industrial aos países ainda em desenvolvimento da América Latina, coloca ironia extra na carga textual-simbólica do filme.

Whisky, de 2004, é uma pequena jóia da recente produção sul-americana que explora um certo sentimento de desânimo. Um torpor vesgo alcançável também pela bebida? Talvez uma lassidão própria da decadência de centros urbanos latinos ou ainda de um estilo de vida enfastiado ligado ao trabalho asfixiante em escala mundial. Dirigido e roteirizado por Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll tem ritmo que desperta curiosidade em sua lenta progressão através de expressivos e longos silêncios. Gonzalo Delgado Galiana assina também o roteiro e a impressionante Direção de Arte com sua riqueza expressiva hiperrealista de objetos e ambientações, especialmente na fábrica e na casa de Jacobo, o protagonista.

O filme evolui demonstrando grande segurança no desenvolvimento de narrativa minimalista traduzindo espécie de compaixão para com a simplicidade, com o homem médio e suas batalhas existenciais perpassadas por um universo trivial. É como se ultrapassando uma camada de superficialidade pudéssemos enxergar melhor a poesia presente no aparente mundo banal da sobrevivência diária de pessoas comuns.

É curiosa expressão cinematográfica do que poderia ser chamado uma eloquência da incomunicabilidade onde a rotina enclausurante parece enredar homens e mulheres num vazio cheio de pequenos grandes ressentimentos, frustrações e também esperanças.
Este trabalho se debruça essencialmente no estudo interpretativo da narrativa e dos personagens principais. Três preciosos personagens em atuações brilhantes: Andrés Pazos como Jacobo, um velho judeu do tipo casmurro, austero, dono de uma pequena e decadente fábrica de meias no Uruguai. Mirella Pascual como Marta, sua eficiente e cuidadosa empregada de confiança, antiga companheira de rotina, referência para quando está em apuros. Para quando não está também. Jorge Bolani como Herman, seu irmão emigrante, alegre e expansivo, empresário do mesmo ramo, natural rival nas conhecidas e atormentadas redes de família.

Quatro minutos se passam até que a primeira fala do filme aconteça. Na belíssima sequência de abertura as imagens de um deslocamento subúrbio-centro em carro defeituoso são intercaladas pelos créditos iniciais com música minimalista ao fundo executada pela Orquestra Reincidentes. Jacobo inicia sua jornada ao trabalho ainda na escuridão da madrugada. Pouco a pouco avança as ruas enquanto o sol nasce. Depois, estaciona o automóvel e vai à lanchonete onde toma o café da manhã de todos os dias. Lá pergunta se a luz do lugar não pode acender. Após umas batidas do garçom a lâmpada fluorescente volta a funcionar. Na vida de Jacobo tudo parece estar sempre precisando de reparos e não é ele que pode repará-los sozinho, ainda que o tente. A persiana de seu escritório cujo conserto nunca acontece, as suas máquinas obsoletas que causam estragos na produção, seu carro que sempre demora a pegar. Para todos os problemas Marta está sempre lá. Sempre, pontualmente. Chegando até mesmo antes do patrão na porta da fábrica.

Mas, acima de tudo, Jacobo parece tentar empreender uma jornada em direção à luz, à compreensão. À semelhança de um cego que precisa ser amparado por alguém, por isso busca sempre a luz. Whisky, todavia não mostrará sua redenção, seu sucesso.

É também a Marta que Jacobo recorre em estranho diálogo sobre a chegada do irmão para o matzeibe, ritual religioso em tributo à mãe, falecida há um ano. Diz com humildade o patrão: “Com meu irmão em casa as coisas ficam meio difíceis. Acho que vou precisar um pouco de ajuda. Havia pensado que, se não for incômodo, podias ficar comigo em casa por um par de dias apenas.” Marta fingirá ser esposa de Jacobo durante a estada de Herman. Close de Marta em que fica claro algum desconforto com a situação. E depois a aquiescência: “Sim, sim, claro. Perfeitamente.” Jacobo insinua uma compensação financeira ao que Marta o interrompe dizendo “não, não, eu entendo perfeitamente”. Mas o que é que Marta entende tão rápida e perfeitamente? A sugestão e, principalmente, a aceitação de pronto, são estapafúrdias numa relação convencional patrão/empregada, por mais sintonizados que sejam os dois. Fácil entender que o competitivo Jacobo (a única coisa que o tira da apatia e o anima para o prazer ou para a cólera parece ser uma disputa esportiva) não queira que seu irmão o veja tão sozinho e decadente. Contudo, a aparente naturalidade da prontidão prestativa de Marta, também nessa seara familiar, participando ativamente de uma simulação dessas proporções, permanece sem maior explicação. E que bom. O que seria um furo de roteiro transparece como uma teia de mistério e estranheza muito interessante conferindo uma curiosidade cada vez mais aguçada com relação às motivações e ao passado dos personagens. Elipses e cenas inconclusas de determinada ação constituem recurso fundamental do filme. O não-dito é arma poderosa nesta trama insólita e extremamente engraçada. Um riso dolorido é verdade, mas ainda assim, um riso.

Marta exibe, apesar de comportamento que poderia ser lido como subserviente e conformista, atitudes que demonstram busca pelo prazer. É a única que procura sair um pouco do ambiente fechado e sem janelas da fábrica. Reserva então tempo para a companhia do cigarro em intervalos no trabalho. Vai ao cinema, mesmo sozinha. Tem com seus fones de ouvido no ônibus e em Leonardo Favio cantando O Quizas Simplemente una Rosa, oportunidade para um pequeno sorriso. Marta sonha. Tem esperanças. Esperanças com Jacobo talvez? Dificilmente já que o homem é uma pedra. De toda forma, não se sabe. Ainda e sempre a prontidão para servir antes de tudo. As palavras mais repetidas de Marta são “permisso”, seguida de “preciosas” quando precisa falar que as coisas são (ou deveriam, no jogo social, ser) belas ou maravilhosas. As coisas são belas e maravilhosas apenas no discurso porque a realidade é bem outra: solidão e mesmice. Talvez apenas uma expressão seja ainda mais repetida: “Até amanhã, se Deus quiser”. O amanhã de Marta é um outro mistério. O de Jacobo é certo. Está perdido sem ela.

Herman provoca, com sua chegada, o turbilhão de acontecimentos deslocadores da rotina. Nada mais será como antes. É como se trouxesse consigo as promessas de entusiasmo e o sol do gigante tropical de onde retorna. Traz para Marta a utopia do paraíso grandiloquente das Cataratas de Foz do Iguaçu, paraíso a que ele próprio curiosamente nunca foi (apesar de morar perto) e onde Marta e Jacobo fingem ter passado lua de mel. O plano de Herman é fazer as pazes com o irmão, desculpar-se pela ausência durante a perda da mãe. Chega a oferecer uma soma em dinheiro vivo como forma de compensação.

É dele a idéia de uma rápida temporada dos três em Piriápolis, balneário turístico perto de Montevidéo. Propõe a pequena aventura no mesmo jantar em que fala de seu encontro com Tony Ramos, o famoso ator brasileiro. Marta aceita, claro, imediatamente. Há sempre muitas oportunidades para os dois, Marta e Herman, estarem sozinhos. Conversam na padaria ainda na capital, na piscina e na praia em Piriápolis. O encontro da praia é especialmente significativo pois parece repetir o enredo da canção de Favio. Na conversa animada riem, parecem se conhecer melhor e desenvolver uma identificação. No momento em que Herman diz que Jacobo vem chegando zangado e observa que este ganhara uma máquina fotográfica numa máquina de apostas, percebe-se que ele, Herman, é que ganhara enquanto Jacobo realmente perdera Marta, apesar de nunca ter lutado efetivamente por ela.

Marta e Herman também estão sozinhos quando ela se dirige arrumada para seu quarto. A ação de deslocamento é belamente executada mostrando-a em tempo real sem cortes, Marta atravessando longo corredor onde se escutam apenas seus passos com o salto alto. Herman a recebe, ainda ao telefone com a esposa, sinalizando para ela se sentar ao seu lado na cama. Ela aceita.

Numa das melhores cenas do filme, Herman cumpre promessa e canta num karaokê do hotel para uma platéia diminuta. Parece cantar para Marta olhando sempre para ela que retribui o olhar com leve sorriso. A letra da canção ajuda a dar a impressão que ele canta para ela, afinal, aqui e ali conta um pouco da história dos dois e os momentos na praia. Ela acompanha sutilmente alguns versos, acende um cigarro e ouve as palavras doces que o sisudo Jacobo nunca poderia dizer:

“Hoje colhi uma flor. E chovia, chovia. Esperando o meu amor. E chovia, chovia. As pessoas passavam apressadas. E a cidade ficou deserta pois chovia. Nós iremos andando pelas ruas vazias. E eu fiquei pensando em tantas coisas bonitas como aquele dia na praia quando nos conhecemos. O vento brincando com seu cabelo de menina. Ai que sorte, que sorte você agora é minha. Quando meu amor chegar lhe direi tantas coisas ou talvez simplesmente lhe dê uma rosa. Porque eu colhi uma flor. Esperando meu amor.Que o seu canto me alegre. Que o seu riso me alegre. Que se alegre o silêncio, porque você agora é minha. Com certeza o melhor é uma rosa. Iremos conversando. Iremos nos beijando pelas ruas vazias. Sim, o melhor é a rosa. Sim.”

Ao observar os olhares dos dois Jacobo enciumado decide pegar o dinheiro de Herman que recusara antes. Em sequência extremamente feliz onde fica claro seu ressentimento com o irmão, aposta tudo no cassino onde crê que vai perder. Para sua surpresa ganha e guarda a fortuna retirando apenas uma pequeníssima parte e colocando a bolada num pacote. Já de volta a casa despede-se de Marta entregando-lhe o pacote com a pequena fábula. Marta volta de táxi, ignorante do conteúdo do pacote. Crê que seus dias de sonho acabaram e chora.

Ao final Jacobo executa seu pequeno ritual de abertura da fábrica. Os planos que exibem a ação são idênticos aos do início com uma diferença. Marta não está lá. Jacobo prepara sozinho seu chá costumeiro de começo de expediente talvez pela primeira vez. À pergunta de Karina, uma funcionária, que pede permissão para escutar um pouco o rádio, diz não. Apenas para corrigir-se e dizer que quando Marta chegar deve Karina perguntar a ela. As máquinas assumem absolutas e barulhentas e é o fim.

Marta voltará ao trabalho e a Jacobo? O que fará com tanto dinheiro? O que diz o bilhete que entregou a Herman às escondidas e que ele deverá ler apenas no avião? Ela, sonhadora de espírito, tem a chance de por fim na rotina massacrante, castradora do prazer e da beleza. O que fará Marta? O filme, na melhor tradição de obra aberta é muito estimulante para desdobramentos na mente do espectador. Há diversas possibilidades. Cá comigo gosto de ver Marta conhecendo verdadeiramente as Cataratas de Foz do Iguaçu e jantando com Herman após conseguir um autógrafo de um simpático Tony Ramos. Nosso grande ator popular de tevê simpatizará com o recém casal e dará um jeitinho brasileiro para que os dois possam dar uma volta pelas ruas vazias de algum cenário do Projac. Tudo debaixo de uma jubilosa chuva artificial e ao som de O Quizas Simplemente una rosa cantada, à capela, por um mais feliz e renovado Herman. Teria Marta então, no cenário construtor de ilusões das suas admiradas novelas brasileiras, um ânimo e uma alegria plenos, verdadeiros. Não precisaria de nenhum tipo de uísque para sorrir. Pobre Jacobo...

"Maria Candelária", por Luizy Silva

Gabriel Figueroa e Dolores Del Rio nas filmagens de Maria Candelária




Maria Candelaria (Emilio Fernandez, 1944) integra o pacote de clássicos do cinema mexicano. Ele faz parte de uma tentativa de reconstrução do imaginário coletivo, surgido na década de 30, com a ação de alguns cineastas que tentavam recriar a imagem do México, pós-revolução. Emílio “Índio” Fernandez e outros cineastas, como Fernando De Fuentes, uniram-se à ideia de um cinema ‘nacionalista’, que reafirmasse a identidade do povo mexicano, introduzindo elementos da sua cultura e da sua religiosidade na tela. Foi uma tentativa de desconstrução de estereótipos, tão firmemente reforçado pela indústria cultural norte-americana. O povo do México era ‘pintado’ de preguiçoso, bêbado e bandido e o trabalho desses cineastas, em especial, o de Fernandez, foi responsável por (re) colocar a figura do Índio no imaginário coletivo dentro e fora do México, ultrapassando as fronteiras da América Latina.

O filme se passa em Xochimilco, uma aldeia mexicana que vive, basicamente, do cultivo de flores e legumes. Maria Candelaria (Dolores Del Rio) e Lourenço Rafael (Pedro Armendáriz) rostos conhecidos do StarSystem da época, fazem o casal de protagonistas. O padre, Lupe (inimiga de Maria e apaixonada por Lourenço), o Sr. Damian, (comerciante), o pintor e a vila integram os personagens desse melodrama. A história de Maria Candelaria é contada em flashback e em terceira pessoa, pelo pintor, que se apaixona por sua beleza numa feira. Candelaria vive com o estigma de que sua mãe fora prostituta e morreu apedrejada naquela vila. Tudo lhe é negado. As pessoas não falam com ela e ela só tem Lourenço Rafael.

Mesmo o México sendo um Estado laico, a figura da Igreja tem presença forte na narrativa. Seja pelo padre que sempre a protege, seja pelo paralelo entre ela e a Virgem de Guadalupe mostrado ao longo de todo o filme, mas em destaque numa cena quase no início, onde acontece uma fusão das imagens delas.

Para fortalecer a ideia de um cinema nacionalista, Fernandez, além das imagens, utiliza-se do discurso. Na cena em que o pintor é entrevistado por uma jornalista que quer escrever a sua biografia, ela pergunta sobre que temas ele gosta de pintar. Ele responde que não pinta temas, pinta o que vê, pinta o México. Numa forte alusão à Mexicanidade.

Maria Candelaria foi mais uma parceria de sucesso entre Emilio Fernandez e Gabriel Figueiroa (diretor de fotografia). Juntos, conseguiram produzir filmes visualmente extraordinários e interessantes, desvendando um México até então pouco visto nas telas e, com isso, conquistaram reconhecimento internacional e popularidade no próprio país.

MACHUCA (2004) – Andrés Wood, por Amanda Beçça


Dirigido por Andrés Wood, Machuca é um filme de 2004 que concorreu junto a Olga, o brasileiro de Jayme Monjardin, aos indicados para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Interessante observar que logo Olga e Machuca foram no mesmo ano enfrentar a mesma categoria de caráter mundial, pois além de fazerem dos seus personagens, título, contam a história de épocas em que a efervescência política em seus países (Brasil e Chile, respectivamente) estava a mil: Olga com a ditadura getulista e Machuca com o período de transição entre o governo Allende para a ditadura Pinochet. Ainda que tão comuns entre si, os dois filmes resolvem abordar temas quase-comuns de maneiras altamente diferentes. Para começar, Machuca, ao contrário de Olga, não é histórico e aborda um olhar infantil sobre a política. – neste ponto, é até mais cabível tentar comparar o chileno com O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias.

Comparações a parte, o filme de Andrés Wood nos conta a história de uma amizade inesperada entre um menino de classe rica, Gonzalo, com outro de classe pobre, Pedro Machuca; com o pano de fundo no ano de 1973 – um dos mais importantes da história chilena. A vontade do diretor-roteirista era de fazer uma obra política, mas não tentando retratar uma época, e sim fotografar. Numa fotografia, se acrescenta um tom pessoal à foto. No caso de Machuca, Wood dá um olhar subjetivo ao ano de 73 – especialmente com os “q’s” autobiográficos: Gonzalo, assim como ele na infância, estuda num colégio britânico para garotos coordenado por um padre, padre McEnroe, que tem o objetivo de ajudar na difusão das classes sociais ao matricular meninos da periferia em sua escola de elite.

O filme é facilmente aceito e interpretado por qualquer pessoa, mesmo quem não conhece a história do Chile, afinal, se trata mais de sentimentos do que ideologia. Apesar do filme ser totalmente alimentado por um fervor político, de vermos exibidos cartazes, anúncios e pixações que nos mantém acompanhando os acontecimentos do ano, de mostrar todas as características essenciais da época – por exemplo, a favela onde Pedro Machuca mora é a representação das ocupações territoriais muito freqüentes no governo de Allende – ele retrata o tema da amizade entre um rico e um pobre, e não entre um direitista e um esquerdista. Ou seja, um tema humano num ambiente político.

Como se trocassem figurinhas em um álbum, os dois meninos trocam vivências um do mundo do outro sem se darem conta. Gonzalo descobre o que é ter que trabalhar duro para ter comida em casa e Pedro tem acesso a histórias em quadrinhos de Zorro e tênis da Adidas. Enquanto o muro ainda exibe “Viva la Revolución” a mistura entre pêra com as maçãs acontece de forma inocente e natural.

Com o passar dos meses de 1973, vão se passando os minutos de Machuca: o espectador percebe a crise política aumentar acompanhando junto aos personagens os noticiários da televisão. Vai se tornando cada vez mais difícil para os dois meninos manterem uma amizade sem que ninguém tenha algo contra a comentar, seja enfrentando brigas e bullying no colégio, seja tendo que ouvir os xingamentos de Silvana ou do namorado da irmã de Gonzalo. Isso não é nenhum problema para os meninos até o momento em que “Viva la Revolución” é trocado por “VivA la Guerra Civil”.

“Quando um branco vai ser amigo de um índio?” a pergunta de Silvana se refere a Zorro, mas não demora muito para um tio bêbado chegar jogando uma profecia no branco e no índio do mundo real. Os meninos não acreditam, mas no fim é isso mesmo o que acontece. Quem sabe, sabe. Os militares terminam por conseguir implantar uma ditadura no Chile, e é até ela aonde chega o filme. Propositalmente é até ela aonde chega a amizade dos dois meninos. Os conflitos ultrapassam o incômodo que algumas pessoas têm na amizade dos dois, se tornam efetivamente entre classes e terminam por colocar Pedro e Gonzalo nos seus respectivos lados do rio. A esta altura, o muro já não diz mais nada, está vazio.

A difusão de classes se perde na ditadura. E quer saber? Todos se perdem. Gonzalo sofre com as óbvias mudanças que estão acontecendo, mas nada que se compare ao que Pedro tem que sofrer. Afinal “os culpados são sempre os mesmos, assim como tem que ser, e ninguém os culpará por perpetuarem esta história” E muito menos culparão Andrés Wood neste belíssimo filme.

“Whisky”, por Kianny Martinez


Segundo longa-metragem de Juan Pablo Rebella, ‘Whisky’(2003) é um filme que vem para o ‘mundo’ perceber que não só existe o cinema brasileiro, o argentino ou cinema mexicano (que ocupam cerca de 95% dos filmes latino-americanos), se destacando assim dentro desta cinematografia latino-americana.

Filme uruguaio, co-produzido pela Argentina, escrito pelo Juan Pablo e pelo Pablo Stoll é uma película que surpreende pelo seu caráter um tanto quanto excessivamente minimalista, meio parado e se encaixa muito bem entre a comédia e o drama. A película é uma espécie de registro quase que ‘documentarista’, muito próximo a realidade, mostrando a vida de pessoas numa faixa etária entre 55-65 anos, a falta de diálogos, as repetições da vida cotidiana, seu caráter metódico.

Tomando por base a vida de Jacobo, dono de uma pequena fábrica de meias que fica situada em Montevidéu, e de Marta, sua assistente, vemos o quão tediosa é a vida destes personagens. Seus dias se resumem a trabalhar na fábrica (fato que é mostrado repetidamente, uma rotina metódica e sem grandes acontecimentos) e a trocarem pouquíssimas palavras. Parece não haver existência fora da fábrica, desse mundo dentro do mundo, como uma espécie de zumbis que estão apenas passando pela vida.

Essa rotina dura por muito tempo. E eis que surge um fato catalisador para mudar um pouco essa rotina: Herman, o irmão de Jacobo. Vindo do Brasil para a cerimônia de passagem do aniversário da morte da mãe judia a pedido de Jacobo, acaba por provocar mudanças na vida de cada um deles. Herman é o oposto do irmão, é bem expansivo, tem um estilo de se vestir bastante peculiar, possui família e duas filhas e evidencia seu sucesso financeiro. Jacobo, um tanto quanto apático, dono de uma fábrica de meias decadente, com vergonha de que o irmão perceba que ele é totalmente solitário e veja o quão sua vida é sem graça, acaba convidando Marta para fingir que é sua esposa e passar uns dias em sua casa no período em que o irmão estiver lá. Ela aceita. É quase que uma demonstração de amor por ele, seria? E nesse período ocorre uma grande mudança na vida desses ‘estranhos’ que passam a ‘viver’ juntos.

Por ser tão minimalista e sem grandes acontecimentos o filme depende muito da capacidade de expressão e interpretação dos atores para dar certo, e eles fazem tudo correr muito bem. Personagens bem trabalhados. Diria que o personagem que possui uma profundidade psicológica maior é a Marta. Ninguém sabe nada sobre seu passado, o que pensa, se ela fica seduzida ou não pelo Herman e se ela gosta do Jacobo. O contraste entre a vida desses dois irmãos parece até uma alusão a situação dos dois países latinos.

A fotografia valoriza enquadramentos mais estáticos, tomadas com total ausência de planos seqüência, a câmera parece estar parada durante todo o filme e isso destaca ainda mais a narrativa. Com um tom de sépia predominante, poucos diálogos e nenhuma música. Mais componentes que vem a reforçar a idéia de estático, de vida parada. Um filme sutil, que consegue cumprir com todas as questões técnicas e encanta todos que possam assisti-lo.

Pablo Stoll, que co-dirigiu o longa com Juan Pablo Rebella, afirmou em entrevista para o Le Monde que ‘‘o importante é o coração, o sentimento, a idéia, e não o virtuosismo técnico’’. Parece que a beleza um tanto quanto triste está na simplicidade.

Tentando entender a película a partir do seu título, “Whisky” parece que assistiremos a um filme regado com litros e litros de álcool, fato que nem chega perto de acontecer. Veremos um filme bem lúcido, lento, num ritmo tranqüilo, mas com grande capacidade de prender o espectador. “'Whisky” é apenas a expressão utilizada por eles para que a pessoa sorria na foto, como o nosso “diga x”.

Premiado nos festivais de Roterdã e Havana, além de ser vencedor de três troféus em Gramado e indicado ao Oscar como melhor filme estrangeiro, é uma película rara da cinematografia latino-americana. Com uma história simples, nos conquista e em certos momentos nos ‘apresenta’ um pouco que seja do Uruguai. Um filme repleto de sutilezas que deve ser bem observado.

"O Cachorro", por Luizy Silva


El Perro é um filme do cineasta argentino Carlos Sorín (Histórias Mínimas, A Janela), filmado na Patagônia em meados dos anos 2000. A narrativa traz a história de Juan Villegas, um senhor de 56 anos, que se vê desempregado, após 20 anos trabalhando como mecânico num posto de gasolina. Ele mora de favor na pequena casa da filha, enquanto tenta arrumar outro emprego. O pano de fundo é a crise econômica argentina, que afetou todo o país. A chegada de Bombón de Le Chien, um Dogue Argentino, traz para Villegas a possibilidade de esperar por algo e não apenas viver mais um dia.

Villegas, assim como outros atores do filme de Sorín, não é ator profissional, mas passa muita verdade na sua interpretação. Ele expressa a melancolia do filme com o seu olhar. Villegas é um personagem real. Ele poderia ser um vizinho ou um amigo nosso. Em tempos de forte desemprego e crise econômica, ele faz de tudo para ‘ se virar’. Artesão, confecciona cabos de facas e tenta vendê-las em todos os lugares por onde passa; na fábrica, e até numa agência de empregos.

Tudo começa a mudar para Villegas quando ele encontra uma mulher na estrada e a ajuda a consertar o seu carro. Como pagamento ele recebe um Dogue Argentino, chamado Bombón de Le Chien. É a partir da chegada de Le Chien que a vida de Villegas toma novos rumos. O cachorro abre caminho para que seu dono viva outras situações, conheça novas pessoas. Passam na sua vida, o dono da fazenda (o primeiro a lhe oferecer um emprego temporário), o gerente do banco (que percebe o potencial do cão e indica um treinador para colocá-lo em circuitos e exposições), o treinador (Walter Donado, que com seu trabalho com Le Chien proporciona momentos de alegria e esperança à Villegas), e a cantora Susana, uma mulher solitária, que constrói uma relação afetuosa com ele.

É um filme de uma história simples e bela, mas não comum. Pega o mote da amizade, tão usado, mas o mostra de uma forma sensível e sutil. A trilha sonora, composta por Nicolas Sorín, filho do diretor, peca pelo excesso de dramaticidade, imprimindo um tom melodramático ao filme de belas imagens e paisagens desconhecidas. A escolha da Patagônia para as filmagens, segundo Sorín, se deu pelo fascínio que ele tem pelo lugar, desde criança, e por acreditar no seu caráter místico.

Esse não é o primeiro filme de Sorín que apresenta cachorros. Em Histórias Mínimas (2002), o diretor também fez uso do animal. Na narrativa, Don Justo tenta reencontrar seu cachorro que está perdido. Em El Perro, ele afirma: “ na Argentina, devido à crise econômica, muitas vezes você não tem direito a uma segunda chance, mas Le Chien traz essa segunda chance”.

El Perro recebeu 7 indicações ao Condor de Prata (o Oscar argentino), inclusive nas categorias de Melhor Filme e Direção, e foi premiado no Festival de San Sebastian, na Espanha.

Alea viu uma certa menina de Guantánamo, por Roger Bravo


A famosa canção cubana,Guantanamera, rendeu não apenas a ótima troça carnavalesca em paródia pornofônica, “Quanta Ladeira” de Lenine e Cia., mas também mote para o último filme de Tomás Gutierrez Alea, o mais conhecido cineasta cubano. A melodia é usada, ao longo de todo o filme, também com letras modificadas em relação às clássicas da Poesía I dos Versos Sencillos, de José Marti em 1891. A letra no filme comenta o estado de espírito das personagens, com um humor bem diferente do Quanta Ladeira, é certo (sem seus os deliciosos palavrões e o tom direto), mas também com pinceladas de crítica social.

Dirigido em parceria com Juan Carlos Tabio, Alea desenha seu quadro amoroso, político e espirituoso da Cuba no final do século XX com roteiro escrito a seis mãos com Elisio Alberto. A dupla de diretores há pouco saída de estrondoso sucesso com Morango e Chocolate, arriscou-se no terreno dos chamados filmes de estrada.

Alguns dos mais famosos road movies são, em parte, famosos e precisamente isto – road movies – por terem sido feitos nos Estados Unidos da América, nação reconhecidamente obcecada por carros, gasolina e... filmes. Os EUA, a superpotência atual e Cuba, a pequena ilha, pobre, revolucionária e exuberante, exercem antagonismo político desde 1959 quando da Revolução Socialista que levou Fidel Castro ao poder. Dramatica e geograficamente próximas as duas nações opõem-se num embate ideológico e econômico, uma contenda interminável que já foi apelidada de Davi contra Golias. Bom, não deixa de ser curioso ver um road movie justamente cubano feito para a tela do cinema, mídia dominada comercialmente pelos estadunidenses há quase um século. Como se não bastasse esta aproximação é impossível desconsiderar que a Guantanamera do título significa mulher nascida em Guantánamo, lugar que também serve à conhecida base naval dos EUA em pleno território cubano.

Indo de encontro ao pensamento mais comum acerca do castrismo sobre liberdade de expressão é bom ver um filme, realizado logo embaixo da barba do “Homem”, cheio de detalhes da dura vida dos cubanos, em sua essência alegórica, um filme anti-castro. Contudo, seria mesmo uma crítica apenas ao regime de Fidel Castro ou, principalmente, ao cruel e injustificável embargo econômico do Golias do Norte? Seria ele, o embargo afinal, o grande culpado pelas mazelas do povo cubano? Ou, ainda, seria Guantanamera, o filme, uma crítica a ambos, ao embargo e ao regime castrista?

Seja como for, a aposta do autor de Memórias do Subdesenvolvimento e seus camaradas não se dá tanto por mensagens tão obviamente políticas e, sim, no bom e velho amor, compañero de siempre en nuestro cinema de lágrimas.

É em nome do amor que Yoyita, guantanamera de 67 anos, decide reencontrar antiga paixão juvenil após cincoenta anos de ausência na Guantánamo de Gina, sua sobrinha. Logo depois de ser homenageada em sua cidade natal encontra-se com seu amor de juventude. O encontro é breve, mas suficiente para trocarem recordações do passado saudoso e observarem foto antiga de uma menina. Yoyita, a poucos minutos da morte, diz que teve a impressão de ter visto a garota há pouco. Cándido não a reconhece. A brevidade do encontro dá-se por conta da morte repentina nos braços do amado. Neste ponto o filme ensaia interessante proximidade entre uma ternura bela entre velhos, uma certa comicidade e o tema da morte, no entanto o restante do filme não emplaca a mesma energia inusitada.

La Guantanamera é uma manifestação do folclore do cubano campesino, o guajiro. Todavia, a expressão “me cantó una guantanamera” significa dizer que alguém contou alguma história triste, dada a ligação da música com um programa radiofônico antigo que narrava mortes em causos policiais. Se é estranho pensar na música romântica e alegre próxima deste assunto, o filme de Alea/Tabio soube transitar justamente neste terreno incomum com sua espirituosidade declarada em meio ao road movie de cortejo fúnebre.

A morte de Yoyita é o estopim para todo o enredo que consiste no transporte do corpo dentro do sistema criado por Aldo. O sucesso deste novo sistema é a alavanca para a ascensão na carreira pública de Aldo, pelo menos este é o seu sonho. Durante a viagem Gina encontrará diversas vezes o ex-aluno, Mariano, agora engenheiro formado que prefere ser caminhoneiro por ganhar mais dinheiro nesta profissão e poder também traçar muitas mulheres ao longo das viagens.

Personagem clássico, o cafajeste de bom coração, não hesita em dar no pé ao ser informado por uma de suas amantes que vai ser pai, contudo, acredita que pode “tomar jeito” ao lado de um verdadeiro amor, sua ex-professora. O boa-vida (que veste camiseta com desenhos de coqueiros e a palavra Copacabana estampada no início do filme) tem por companheiro de boléia Ramón, mulherengo experiente, criador da tese de que para ter menos problemas com las chicas é preferível pegar as gordas... Há boas piadas, nem sempre politicamente corretas ao longo do filme. Outras, bem simples, exploram a tradição física das gags. Nestas, Ramón é atingido acidentalmente por objetos voadores lançados, em fúria, por amantes desprezadas, na direção do garanhão, Mariano.

Entre um contratempo e outro, mais uma oportunidade para um encontro entre Gina e Mariano, desta vez às portas de um hospital para onde o comboio fúnebre, por decisão ética de Gina, decidiu levar uma parturiente desesperada. Já Mariano socorre o amigo atingido no rosto. À visão de quase uma dezena de profissionais recebendo a mulher grávida na entrada do hospital não cabe nenhum gesto de incredulidade, visto o conhecido alto nível do atendimento público de saúde naquele país. Para melhor realçar as dificuldades, melhor reconhecer o lado bom de ser cubano e não estadunidense, especialmente se for logo depois de ver Sicko, de Michael Moore, 2007.

Missivista por convicção, Mariano, por carta, declarou seu amor à Gina ainda nos tempos de universidade. Difícil disfarçar o incômodo com o flashback sentimentalóide e didático quando do primeiro encontro entre este e Gina no filme, seja pela aplicação grosseira do preto-e-branco seja pela trilha sonora melosa e pouco discreta.

Guantanamera não oferece desafios, ousadias formais. Sua narrativa e fotografia são inclusive, bastante convencionais. As situações e personagens guardam um sabor de velhos conhecidos e esta familiaridade guarda, curiosa e concomitantemente, mesmo no que tem de negativo lugar-comum, uma certa suavidade ou transparência cativante entre o grande público.

O ganhador do prêmio de Melhor Filme e Ator no Festival de Gramado é trabalho interessante sobre humor em mares politicamente calientes. O quanto de seu desacerto na comédia não pode ser tanto creditado à sua ligação com temas políticos, mas talvez a certas deficiências de fotografia e montagem. Ritmo claudicante em certos momentos aliado a cortes em tempos equivocados fazem naufragar o efeito cômico de certas cenas por mais habilidosos que possam ser os atores. A fotografia escorrega em outros momentos, transparecendo falsidade na movimentação dos personagens, quando, por exemplo, do tabefe de Cándido em Adolfo ao ouvir sua descrição vulgar da morte de Yoyita.

Ao contrapor a dignidade e o senso de liberdade da protagonista feminina com o pragmatismo truculento de seu marido, Adolfo, a película sinaliza mais uma nuance crítica ao regime.

Por todos os lados a moeda cubana não parece encontrar a menor receptividade e a procura incessante por comida é contrastada com mensagens radiofônicas (do governo, por certo) que alardeiam safra agrícola recorde. O motorista só poderia ser contrabandista do artigo mais desejado: comida. Curioso então que tanto Gina como Cándido não tenham tanta fome quando defronte de seus pratos em almoço tão esperado. Cándido estranha a falta de apetite de Gina e justifica-se comentando que em sua idade avançada não se tem mais tanta fome. A fome, a energia mobilizadora da mudança seria seu melhor conselho para Gina...

A garota da foto que acompanha Cándido por todo o filme em suas digressões oníricas/espirituais (afinal, a mais interessante e misteriosa guantanamera do filme), será a maior escarnecedora da solidão de Adolfo, em sua ânsia egóica e hipócrita ao destilar sua ode demagógica ao amor, amor que ele próprio não crê nem pratica.

O discurso inflamado do funcionário público servirá de fundo sonoro para o encontro final entre Gina e Mariano sob chuva torrencial triunfante. Posto que apenas os que estão próximos da morte vêem a menina, (dentre todos apenas Yoyita e Cándido a viram) fica clara a mensagem final – também Aldo morrerá em breve, também o racionalismo truculento de bases estatais morrerá. O Grande Orador, famoso pelos grandiloquentes discursos, também morrerá. A velha Cuba morrerá, não necessariamente as ideias socialistas morrerão, mas morrerá a condução deste legado pela geração revolucionária propriamente dita. Ao enterrar Yoyita enterra-se uma nação, ou melhor, uma determinada ideia de nação. O cortejo fúnebre – que é o filme – é o enterro desta nação. Cuba pertencerá ao amor dos que fazem o país agora.

No final da vida Alea também viu a pequena menina guantanamera. Teria dito a garota algo como na música: “Yo soy un hombre sincero...Y antes de morirme quiero/Echar mis versos del alma”. Após o encontro compôs um belo e esperançoso canto do cisne que é Guantanamera, o filme.

Afinal, se os velhos têm de partir, não devem viver para sempre (como diz a narração mítica da lenda de Iku acerca de um certo dilúvio bem conhecido também na tradição judaico-cristã), que seu amor e sede de liberdade possam contaminar os homens e mulheres de hoje, Gina e Mariano. Estes farão, com sua fome de amor, uma Cuba melhor.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

"Aquele que nunca foi", por Victor Laet


“O que é um fantasma? Um terrível evento obrigado a repetir-se eternamente? Um instante de dor, talvez. Algo morto, que por um instante ainda parece vivo. Uma emoção congelada no tempo. Como uma fotografia embaçada. Como um inseto preso no âmbar (1) .”
(parágrafo de abertura do filme “A espinha do diabo”, México/Espanha, 2001, direção de Guilherme Del Toro)


“O que é um fantasma?”: Em 2004, Daniel Burman apresenta ao mundo “O Abraço Partido”. “Abraço” apresenta o mundo de Ariel: o dia-a-dia numa galeria onde imigrantes preenchem o espaço de antagonistas aliada a uma visão onde opacidade e transparência não se mostram tão homogêneas como se acreditava. Um mundo composto por coreanos, italianos, argentinos, peruanos, católicos e judeus – uma harmonia amistosa, onde a tolerância cultural acaba por acinzentar percepções de hierarquias familiares e conceitos avizinhados. O filme acaba por propor que as pessoas não são nem transparentes nem opacos, mas translúcidas – ou melhor, a transparência alheia primamente estabelecida pelo protagonista e depois revisitada como opacidade de outrem funciona, na realidade, como uma busca de si.

Ariel acredita saber identificar todas as pessoas da galera justamente por não saber sua identidade. Como judeu, não se reconhece na religião. Como argentino, não se reconhece no gentílico. Como arquiteto, não se reconhece na profissão. Como parente, não se reconhece como filho. E está última característica regerá a trama do filme: sendo abandonado pelo pai, Elias, aos seis meses de idade a única noção paterno-afetiva se dá uns rápidos fotogramas capturados num vídeo caseiro – todo o resto do pai são histórias dúbias e possibilidades que somente incrementa a imagem de um espectro, um vir a ser conhecido, um fantasma.

“Um terrível evento obrigado a repetir-se novamente?”: Ariel, interpretado por Daniel Hendler, não vê o pai, e a partir disso, não se vê no pai, não vê o pai em si e, então, não se vê. Frustrado com o futuro planeja torna-se polaco, onde lá, numa terra estranha, pretende se encontrar. No desenrolar da película, mostrada é Esther, sua ex-namorada. Esther está grávida e, mesmo recebendo não como resposta, Ariel se questiona se é ou não pai do bebê. E ao se questionar, conflita-se com a possibilidade de ser aquilo que não conhece: pai. E caso seja, como ser pai? Ser um pai a parte. Ser um pai partido. O trecho utilizado nesse parágrafo expressa não só uma sensação tida pelo personagem, como também sintetiza o enredo da “trilogia de Ariel”: Burman na primeira década do século XXI realizou filmes cujo mote inicial seria um personagem chamado Ariel (respectivamente: “Esperando o messias”, “O abraço partido” e “Leis de família). Em “Leis”, a história narrada é de Ariel, um empresário que vê-se seguindo os passos do próprio pai e caminha cada vez mais longe do filho pequeno.

“Um instante de dor, talvez. Algo morto, que por um instante ainda parece vivo.”: o filme, em suma, acaba por sempre escolher dicotomias – e dentre tantas, as mais interessantes seriam: dor/prazer e rir/chorar. Por mais intimista que o filme seja, ele é de um humor não só rarefeito, mas existencial – evitando assim que os temas tratados tediem os espectadores. Não possuindo um humor muito usual, o filme tem comicidade contrária de filmes que apostam na estratégia de “chorar de tanto rir” e põe a audiência na posição de “rir de tanto chorar”. Não só audiência, como os próprios personagens. É a dor – de não se identificar, de não saber se é pai, de não estar mais ao lado da namorada, de frustrações familiares, etc – que faz com que Ariel busque pelo seu prazer.

“Uma emoção congelada no tempo.”: Elias é, sem dúvida, “uma emoção congelada no tempo”. Ele nunca foi presente, nunca foi carne-osso, nunca esteve lá (apesar de, justamente por isso, sempre ter estado), Elias, aliás, somente foi um “e se”, uma consideração, um “fotograma capturado em vídeo caseiro”.

Victor Laet
Vinte de junho de 2010

NOTA:
1. http://lh6.ggpht.com/_rCJo-Oh4__M/TB49rZa-d2I/AAAAAAAAAck/hkOhu5fTLuA/s400/dfdsffsdsdf.JPG

A Batata Escabrosa, por Thiago Rocha Ferreira


Que filme estranho esse peruano "A Teta Assustada" de Claudia Llosa. Estranho por sua indefinição. Se por um lado temos o realismo fantástico e o kitsch das comunidades ao redor de Lima, por outro temos um registro histórico-politico, bastante esvaziado. E como se já não bastasse, é nessa zona turva entre ser propaganda turística e ser histórico e político, o filme insere ainda uma narrativa de embate entre classes.

A história é sobre Fausta, uma índia que tem uma batata na vagina por que tinha medo de ser estuprada. E que tem a doença da teta assustada, que segundo as crenças indígenas, fora passada de mãe para a filha durante a amamentação na época do terrorismo. A mãe de Fausta morre logo no começo do filme e ela não tem dinheiro para levar a genitora ao povoado de origem. Por isso vai trabalhar na casa de uma rica pianista.

As caracterizações da patroa/pianista não podiam ser piores. Ela é languida, branca, e muito rica. Enquanto que nossa protagonista é inocente, índia, pobre. A relação entre as duas parece estar à beira de uma detonação. Fausta parece esperar a todo o momento que a patroa a ponha pra fora. Até que um colar se quebra. E aí esse encontro entre classes ficará mais instigado: inicia-se uma relação de interesses entre a patroa e a empregada. Numa das muitas tentativas de mostrar a cultura peruana, dessa vez através das cantorias indígenas, que tanto a mãe como a filha cantam. São letras improvisadas que surgem em momentos de angústia e dor e são cantadas como forma de esquecê-las. Por isso não se pode cantar a qualquer momento. Daí o que a diretora faz: num momento desses a pianista ouve a empregada cantando. Pede para que ela cantar de novo, o que ela não obedece. No momento que o tal colar de pérolas que ela usa em casa diariamente, diga-se de passagem, se espedaça e Fausta vai ajudá-la, a patroa oferece uma pedra de pérola para que ela cante as melodias. Ou seja, uma música, uma pérola. Ou, no caso de a que se presta o filme, a música é uma pérola. Em meio a isso, estão os interesses pessoais: a pianista quer a música para usar num concerto, pois, está sem inspiração (o piano jogado da janela por ela sozinha representaria a “força” da sua falta de criatividade); Já a empregada quer as jóias para ajudar a pagar o enterro da mãe.

A forma alegórica como Llosa, que vale dizer, vive na Europa, trabalha o tema é no mínimo cansada. É o típico registro habitual dos filmes latino-americanos que se pretendem grandiloqüentes em seu discurso. Todas as vezes que Fausta se sente em perigo, ela sangra pelo nariz. Ela simbolizaria o povo peruano, cingido entre o medo, na possibilidade da volta do terror, e o desejo de esquecer o passado e viver tempos melhores. A diretora também não se esquece de vender o país por seu lado pitoresco. Momentos turísticos são protagonizados pelos habitantes dos bairros pobres. A cantoria já citada, a cauda do vestido da filha, a mumificação da morta, os casamentos com músicos e dançarinos peculiares, os caixões estilizados, a piscina que antes era para ser a cova da mãe da protagonista. Juntem-se a isso alguns planos “espertos”, mas nada significativos, da diretora como Fausta e o tio marcados milimetricamente por um X no quadro, e o vestido de noiva que se encaixa perfeitamente na mãe posta debaixo da cama, além das cores vivas da bela fotografia do filme, num registro quase documental.

No final das contas, a narrativa parece estar a meio termo do que há de mais válido no cinema latino: temos a intimidade, o cotidiano do personagem, como nas historias de maior vigor no cinema atual e, ao mesmo tempo, esse mesmo personagem serve de alegoria da nação, caracterização muito mais próxima do cinema praticado nos anos 1960. E a alegoria da batata? Melhor a se dizer sobre ela é que por fim, foi removida do corpo da pobre Fausta. De qualquer forma, o filme foi o vencedor do Urso de Ouro no festival de Berlim em 2009. “Ao vencedor, as batatas”.

“Temporada de Patos”, por Paulo Fernando de Sá


Filme que remete a moderna proposta do retrato das questões menos ou nunca militantes do cinema latino-americano contemporâneo. Assim poderia ser definida a obra do diretor Fernando Eimbcke, vencedora de vários prêmios em festivais ao redor do mundo e principalmente na América-Latina. O filme narra um dia de domingo na vida de dois adolescentes, Moko e Flama, os quais apenas se importam em curtir a morosidade do dia através do videogame, muita comida e muita coca-cola, após serem deixados sozinhos em casa. No decorrer da história, há espaço ainda para a vizinha de Flama, que pede para usar o forno de sua casa, além do entregador de pizza, que acaba passando o dia com os demais personagens no apartamento, devido a um desentendimento com os adolescentes.

Através de uma fotografia em preto e branco extremamente suave, enquadramentos que metricamente provocam dificuldades para apontar erros, planos longos, e seus silêncios intermináveis, o filme atende perfeitamente a sua proposta de tratar de um tema estritamente banal, um dia na vida de dois garotos da classe média mexicana – que não curiosamente poderiam ser de várias outras nacionalidades. Esta na verdade é a tendência que o cinema latino-americano vem seguindo desde que saímos aos poucos das abordagens temáticas da corrente dos nossos tão consagrados cinemas novos, onde Glauber Rocha e Fernando Solanas, assim como seus companheiros da mesma época e os seus sucessores, por exemplo, nunca pensariam em fazer cinema como o fez Fernando Eimbcke e tantos outros cineastas.

A rejeição a temas políticos e militantes, porém, não faz de filmes como Temporada de Patos obras não merecedoras de atenção. A estética fotográfica do filme, por exemplo, é um aspecto muito bem trabalhado e explorado, assim como a trilha sonora, com suas perfeitas sincronias – a seqüência em que o entregador de pizza está no caminho do conjunto habitacional, onde se encontram os garotos, é um ótimo exemplo de harmonia entre trilha sonora, sonoplastia e fotografia. É válido ressaltar a exploração de fatos e momentos na vida dos personagens que para outras épocas do cinema seriam completamente descartados – como as inúmeras seqüências de puro silêncio entre os personagens –, enquanto no filme de Eimbcke a proposta é mostrar justamente o conjunto de tais acontecimentos, fatos simples e recorrentes.
Diante de tais pontos e argumentações, não é difícil a percepção da real mudança no rumo temático e estético do cinema latino-americano contemporâneo, o qual continua demonstrando enorme riqueza em suas produções e cada vez merecendo mais atenção.

"E sua mãe também", por Thiago Pereira Francisco


A história que gira em torno da relação dos dois amigos Julio e Tenoch e, mais tarde, com Luisa, desperta várias situações que envolvem a vida privada das personagens e surpresas inesperadas ao longo de uma viagem. Antes, cabe comentar o recurso utilizado pelo diretor no uso do gênero Road Movie para sua intercalação da história fictícia dos personagens com uma situação política e social que permeia a realidade mexicana. É um filme que em muitos aspectos é fortemente politizado e de forma sutil, sem gerar grandes choque ao público. Para muitos críticos, essa constante e endêmica tendência da politização nos filmes latino-americanos é uma prática a ser superada para evitar modismos e, assim, permitir maior liberdade produtiva dos diretores contemporâneos. Este caráter engajado contínuo seria então um limitador nas atuais circunstâncias do cinema moderno, sendo necessária a exploração de outras temáticas e formas. Contudo, cabe a reflexão da opção do diretor quanto à escolha por um fundo político à sua produção. A exemplo deste filme de Alfonso Cuarón esta exploração temática não se esgotou e nem reduziu a qualidade como produção. As demandas de mercado são muito fortes sobre as formar de gravar, entretanto as escolhas do sentido, gênero, formas e demais componentes que existem num filme são fundamentais processos de decisão daqueles que o criam.

Os protagonistas são oriundos das classes média e alta da sociedade mexicana, grupos de vida dos centros urbanos, da qual usufrui de grande proximidade com a elite política nacional. Na sua composição, são amigos de muitos anos que passam a maior parte do tempo realizando programas típicos de jovens de sua idade e camada social. A aproximação e, em seguida, a viagem com Luisa para uma praia inicialmente fictícia, um paraíso distante, revela vários aspectos que antes negligenciavam, mas, sobretudo referências pessoais.

O amálgama que o diretor cria na evolução do enredo entre a realidade da população rural mexicana e a história psicológica dos personagens gera diversas colocações. À medida que se afastam da cidade e viajam contando várias histórias, se deparam com um país bem distinto daquele que conhecem quotidianamente. Além disso, o contraste urbano-rural deixa clara a sutileza do realismo político do diretor. Mas os amigos são alienados a esse aspecto, vivem aquilo como transitório, importando apenas é o que vão extrair de sucesso junto a Luisa ao logo da viagem.

Contudo, o filme gera várias alegorias. Ao longo das descobertas e revelações que os personagens fazem um ao outro – traições amorosas – também se faz aos olhos do público revelações do que é o México fora do alcance dos olhos que focam apenas seus pontos turísticos. A descoberta de sentimentos ocultos entre os amigos também é a descoberta de um outro México. A fim da amizade dos dois coincide com mudanças partidárias na liderança nacional. O enredo, todavia, demonstra que no retorno e breve reencontro de Julio e Tenoch após sua separação por nove meses, destaca seres mais maduros e tragados por condicionantes que esperavam escapar, por carreiras que não desejavam seguir. Seus momentos de liberdade e oposição haviam passado, suas oportunidades foram aproveitadas, seus “crescimentos” foram requeridos pelas classes que pertencem. Suas mudanças pessoais durante e após a viagem, foram cruciais para o aparente fim da amizade.

Assim como Luisa foi uma catalisadora do conhecimento mútuo dos amigos, a viagem assim o foi para o público sobre um outro México envolvido por desigualdades. Enfim, o filme conseguiu misturar uma linguagem capaz de envolver o público por uma história comercial sem que perdesse o caráter artístico, trouxe um discurso politizado de forma sutil e conseguiu dar ao gênero que preza mais pelo trajeto do que o destino, uma produção com qualidade e enredo premiados.

MACHUCA (2004) – Andrés Wood, por Amanda Beçça


Dirigido por Andrés Wood, "Machuca" é um filme de 2004 que concorreu junto a Olga, o brasileiro de Jayme Monjardin, aos indicados para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Interessante observar que logo Olga e Machuca foram no mesmo ano enfrentar a mesma categoria de caráter mundial, pois além de fazerem dos seus personagens, título, contam a história de épocas em que a efervescência política em seus países (Brasil e Chile, respectivamente) estava a mil: "Olga" com a ditadura getulista e "Machuca" com o período de transição entre o governo Allende para a ditadura Pinochet. Ainda que tão comuns entre si, os dois filmes resolvem abordar temas quase-comuns de maneiras altamente diferentes. Para começar, Machuca, ao contrário de Olga, não é histórico e aborda um olhar infantil sobre a política. – neste ponto, é até mais cabível tentar comparar o chileno com "O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias".

Comparações a parte, o filme de Andrés Wood nos conta a história de uma amizade inesperada entre um menino de classe rica, Gonzalo, com outro de classe pobre, Pedro Machuca; com o pano de fundo no ano de 1973 – um dos mais importantes da história chilena. A vontade do diretor-roteirista era de fazer uma obra política, mas não tentando retratar uma época, e sim fotografar. Numa fotografia, se acrescenta um tom pessoal à foto. No caso de Machuca, Wood dá um olhar subjetivo ao ano de 73 – até mesmo “q’s” autobiográficos são introduzidos: Gonzalo, assim como ele na infância, estuda num colégio britânico para garotos coordenado por um padre, padre McEnroe, que tem o objetivo de ajudar na difusão das classes sociais ao matricular meninos da periferia em sua escola de elite.

O filme é facilmente aceito e interpretado por qualquer pessoa, mesmo quem não conhece a história do Chile, afinal, se trata mais de sentimentos do que ideologia. Vemos exibidos cartazes, anúncios, pixações e passeatas que nos mantém acompanhando os acontecimentos do ano, há todas as características essenciais da época – por exemplo, a favela onde Pedro Machuca mora é a representação das ocupações territoriais muito freqüentes no governo de Allende – e ainda assim, apesar de ser totalmente alimentado por esse fervor político, o filme retrata o tema da amizade entre um rico e um pobre, e não entre um direitista e um esquerdista. Ou seja, um tema humano num ambiente político.

Como se trocassem figurinhas em um álbum, os dois meninos trocam vivências um do mundo do outro sem nem se darem conta. Gonzalo descobre o que é ter que trabalhar duro para ter comida em casa e Pedro tem acesso a histórias em quadrinhos de Zorro e tênis da Adidas. Enquanto o muro ainda exibe “Viva la Revolución” a mistura entre as peras com as maçãs acontece de forma inocente e natural.

Com o passar dos meses de 1973, vão se passando os minutos de Machuca: o espectador percebe a crise política aumentar acompanhando junto aos personagens os noticiários da televisão. Vai se tornando cada vez mais difícil para os dois meninos manter uma amizade sem que ninguém tenha algo contra a comentar, seja enfrentando brigas e bullying no colégio, seja tendo que ouvir os xingamentos de Silvana ou do namorado da irmã de Gonzalo. Mas isso não é nenhum problema para os meninos até o momento em que “Viva la Revolución” é trocado por “VivA la Guerra Civil”.

“Quando um branco vai ser amigo de um índio?” a pergunta de Silvana se refere a Zorro, mas não demora muito para um tio bêbado chegar jogando uma profecia no branco e no índio do mundo real. Os meninos não acreditam, mas no fim é isso mesmo o que acontece. Quem sabe, sabe. Os militares terminam por conseguir implantar uma ditadura no Chile, e é até ela aonde chega o filme. Propositalmente é até ela aonde chega a amizade dos dois meninos. Os conflitos ultrapassam o incômodo que algumas pessoas têm na amizade dos dois, se tornam efetivamente entre classes e terminam por colocar Pedro e Gonzalo nos seus respectivos lados do rio. A esta altura, o muro já não diz mais nada, está vazio.

A difusão de classes se perde na ditadura. E não só isso. Todos se perdem. Se os dois se tratavam como igual no começo, reconhecem que vivem realidades diferentes. Gonzalo sofre com as óbvias mudanças que estão acontecendo, mas nada que se compare ao que Pedro tem que sofrer. Afinal “os culpados são sempre os mesmos, assim como tem que ser, e ninguém os culpará por perpetuarem esta história” E muito menos culparão Andrés Wood por este belíssimo filme.

"O amor atrás das cinzas", por Larissa Cavalcanti



Argentina, década de 60. Carro-forte que transporta os pagamentos da cidade de San Fernando (ao todo 7 milhões de pesos) é assaltado por três rapazes que matam todos os policiais responsáveis pela segurança do veículo. Esse episódio realmente ocorreu e inspirou duas obras homônimas em diferentes meios: um livro e um filme. Plata Quemada (Argentina, Espanha e Uruguai, 2000), filme dirigido pelo experiente diretor e roteirista argentino Marcelo Piñeyro e baseado no livro de Ricardo Piglia, narra uma intensa história de amor entre um casal de homens.

É isso mesmo. O filme focaliza o relacionamento de dois dos bandidos responsáveis pelo crime, sendo o ato ilegal e suas conseqüências o pano de fundo da narrativa. El Nene (Leonardo Sbaraglia), “Sua pele era muito pálida. Parecia que ele ficara mais tempo preso do que na verdade estivera.”, e Angel (Eduardo Noriega), “Via sinais negativos e superstições que complicavam sua vida.”, eram conhecidos como “os gêmeos porque eram inseparáveis”. Os dois foram convidados pelo experiente bandido Fontana (Ricardo Bartis), “o homem invisível, o cérebro mágico”, a se juntar ao grupo que roubaria o carro-forte. Corvo (Pablo Echarri) foi escolhido para ser o motorista da operação, “o limite entre a vida e a morte. Entre fugir e cair na armadilha”.
Em crise, o casal protagonista aceita a proposta, acreditando que ao trabalharem juntos seriam de novo “os gêmeos”. Porém, Angel leva um tiro e acaba matando, com ajuda de Nene, os guardas que transportavam o dinheiro. O roubo mais as mortes causam uma fúria nas autoridades argentinas que começam uma busca incansável atrás dos culpados. Cientes do perigo, o quarteto viaja em direção ao Uruguai para se refugiarem e providenciar os documentos necessários para fugir de vez rumo ao Brasil. Porém, o esconderijo funciona como uma espécie de prisão,e o tempo lá passado se esgota, é “uma batalha perdida”. Essa espera acaba por elevar o nível de tensão entre eles, que buscam várias maneiras de extravasar, caminhando assim, para um final trágico.

O filme se divide em três partes mais o prólogo. Este se constrói basicamente por narrações em off que descrevem os personagens com informações aparentemente banais, mas reveladoras da personalidade de cada um, ajudando o espectador a entender as ações que estão por vim ao longo do filme. A primeira parte, “o fato”, narra literalmente o seu título: o que aconteceu, o roubo. Já a segunda, “as vozes” é a maior e mais angustiante do filme. O quarteto está trancafiado em um apartamento pequeno no Uruguai, sem poder sair. Os ânimos estão à flor da pele, até que eles não agüentam mais e finalmente saem do cubículo em busca de uma falsa liberdade, de extravasar o que, dentro daquele imóvel, era impossível de ser feito. Nesse verdadeiro segundo ato, as vozes do título não são mais as do narrador onisciente; elas são as do casal protagonista que revelam seus mais profundos sentimentos de angústia e ansiedade. Nene começa a procurar satisfazer sua libido com outras pessoas, mas suas experiências parecem vazias ao lembrar o seu amado. Já Angel, com o braço ainda ferido do tiro que levou durante o roubo, começa a escutar mais ainda as vozes e ficar cada vez mais confuso e perigoso para si mesmo. A relação deles durante o período de reclusão se torna um conjunto de desencontros onde os dois saem magoados e sem se compreenderem. A terceira e última parte, “plata quemada”, nos mostra a fuga desenfreada e o cerco que se fecha em torno dos ladrões. Nesse momento, os três (visto que Fontana, sempre agindo com a cabeça, foge com sua parte do dinheiro, temendo o que estava por vir) já não escutam mais vozes e não há fatos para mostrar; o trio é pura emoção. O medo e a certeza de que seus planos não dariam certo afundam os personagens num mundo onírico criado a partir da ligação forte que se constitui entre eles ao longo do filme. As drogas ajudam a enfrentar os guardas que batem e atiram lá fora, e, finalmente, com a adrenalina pulsando no corpo, o casal se reencontra e se reconhece. Voltam a ser “os gêmeos”.

Plata Queimada foi comparado por muitos a filmes como Cães de Aluguel (USA, 1992) e Pulp Fiction (EUA, 1994), ambos do famoso diretor Quentin Tarantino. Porém, Marcelo Piñeyro não realiza um filme que se assemelha tanto aos citados acima, pois, extrai de um violento contexto uma história de amor, tornando os amantes uma dupla de heróis trágicos. Além disso, Piñeyro não hesita em criticar Buenos Aires, onde “as pessoas circulam caladas, secas, olhando de lado para não morrerem”, como numa prisão. Apesar de o filme seguir certas convenções, a montagem vez por outra nos presenteia com paralelismos ousados de cenas como Angel se ajoelhando diante da imagem de Jesus e Nene se ajoelhando ao praticar sexo oral com um homem desconhecido. Assim como impressiona com certos enquadramentos bem elaborados e super-closes.

Diante de tudo que foi exposto acima, resta aconselhar que assistam a esse interessante exemplo do cinema argentino moderno, onde a plata do título é subvertida de sua função/significação inicial e funciona apenas como combustível da explosão.

Jabor Tropicalista, por Ingrid santos


Anos 70. Teatro oficina, “O rei da vela”, “Galileu Galilei”, “Pequenos burgueses”, “Carnaval do povo”, Helio Oiticica, parangolés, “Seja marginal, seja herói”, Novos baianos, “acabou chorare”, Tropicalismo, Elis Regina.Tudo isso e uma ditadura militar. No auge da repressão nossa rebeldia chega ao ápice. Só depois de atos institucionais e combates armados é que chegamos ao limite do provocador. Zé Celso Martinez deglutia o mundo e expurgava Brasil por todos os orifícios de seu Teatro. Oiticica quebrava com limites entre arte e carnaval com seus parangolés, quebrava limites éticos com seu canto a “marginalidade”. Guitarras e violas soavam juntas numa mistura lúbrica de ritmos e culturas. E a maior cantora do país gritava dores e amores mil, clamava pelo corpo do amado, e entoava cantos a orixás e velhos revolucionários. E no meio de todo esse furdunço, Arnaldo Jabor faz “Tudo bem”.

O filme é uma grande alegoria desse Brasil. Temos uma família da classe média presa num apartamento onde a reforma nunca acaba. A semelhança com um país de promessas de melhora é mais que óbvia. Essa reforma tem sua origem numa situação tão nonsense, quanto à bateria de escola de samba que eventualmente passa pela sala da família. Em “Tudo bem” temos uma gente perdida num país que não está nem perto de entender. Isso fica claro na posição complacente em que a família se coloca diante dos desabrigados que ali ficam ou da procissão de crentes que louvam sua empregada.

Não seria o simples retrato o êxtase do diretor. Destoaria muito de seus contemporâneos setentistas se não chocasse a moral vigente. Tensões homoeroticas, iconoclastia e louvores etílicos ao sexo, pipocam no enredo. Numa cena que mimetiza todo o filme, ou antes, o objetivo deste, Juarez (pai de família interpretada por Paulo Gracindo) toma um porre e finalmente grita a estupidez de sua vida de classe média, só bêbado se da conta do sofrimento de seu empregados, e da superficialidade de seu casamento. É Num porre que grita suas vontades, de mulher, de uma vida melhor, de justiça. É só num porre tropicalista que o Brasil percebe e grita suas incongruências.

O filme se faz de momentos alegóricos. O que dizer de uma festa por sobre o sangue de um assassinato, de um sindico que expulsa pobres por não constarem nos livros, de um americano que vende satélites no Brasil, de um abraço entre uma empregada nordestina e outra ex-prostituta favelada ao som de uma ladainha? As metáforas aparecem de todos os lados e a todo o momento. Ostensivas, repetitivas e, aos nossos olhos contemporâneos, rasas.

Nem por isso o filme deixa a desejar. Talvez por sua amplitude, quase um parangolé costurado das verdades de nosso país, o filme tenha seu maior valor. Ele não se limita a uma denuncia chata de injustiças já cansadas. Arnaldo Jabor consegue zombar da e na cara de todo o povo brasileiro. Ninguém lhe escapa. Operários, feministas, madames, burgueses e idealistas, todos estão no filme. Como toda zombaria com propósito o filme levanta questões de ordem primeira na nossa realidade e, diferente do pretenso jornalismo que seu diretor pratica atualmente, incita incômodos debates sobre nós mesmos.

“Amores Brutos” de Alejandro Gonzalez Iñarritu, por Rafael de Almeida


Sempre gosto de escrever minhas críticas ou resenhas assim que termino de ver o filme. Até hoje não me lembre de ter escrito sobre um filme que vi a menos de 24 horas. É sempre assim: assisto e na primeira oportunidade diante do computador, vou digitando minhas impressões enquanto elas ainda estão fresquinhas na minha cabeça. No entanto, já faz, creio eu, uns três meses que assisti Amores Brutos de Iñarritu e a enorme quantidade de filmes que tenho para assistir e coisas que tenho para fazer me impedem de rever o filme para clarear minha memória. Mas uma vontade imensa de falar sobre este filme me fez fazer essa experiência: escrever sobre um filme que vi apenas uma vez há um tempo enorme. Por quê? É o que descreverei.

Naturalmente, fiz uma rápida busca no Google para lembrar os nomes dos personagens e algum detalhe importante da sinopse. Amores Brutos é um crossover de três histórias que estão pictoricamente interligadas pela figura de um cachorro (daí o nome original do filme “Amores Perros”). A primeira trama acompanha Octávio (Gael Garcia Bernal), um rapaz pobre, que está apaixonado pela esposa de seu irmão mais velho e violento. Octávio decide então, fugir com a garota e para isso junta dinheiro através de brigas ilegais com cachorro. Em contraponto Valeria (Goya Toledo), uma modelo rica e famosa, está se mudando para um novo apartamento para morar com Daniel (Álvaro Guerrero) que finalmente decidiu largar esposa e filhos para ficar com a moça. Ela não imagina que sua vida vai mudar depois que seu cachorrinho se meter debaixo do assoalho da casa. Finalmente temos Chivo (Emilio Echevarría), um velho de rua que foi separado da filha e ganha a vida matando pessoas. A solidão de Chivo é compensada por um bando de cachorros que ele cria.

Finalmente, um acidente de carro encontra essas três tramas, até então isoladas, unidas apenas por um crescente que anunciaria uma tragédia. O desenvolvimento das histórias serviria como pano de fundo excelente para telenovelas, mas até certo ponto. Iñarritu abre mão de um melodrama convencional e termina todas as tramas de uma maneira triste e solitária. A desilusão de um amor platônico, a solidão, o fim de toda uma vida, a saudade incurável são os temas pelos quais Iñarritu passeia sem dó e piedade. Mesmo a aparente redenção de um dos personagens termina sem uma conclusão esperada pelo mesmo (e pelo público também).

O realismo frio de Iñarritu é transpassado também através da fotografia escura, pálida e pouquíssima saturada. A agilidade da edição poderia ser uma contradição em uma história tão densa e pesada. Porém, a fragmentação das tramas (contadas em paralelo durante o filme), a câmera sempre a mão me parecem uma metáfora não só das mentes desfiguradas que preenchem o filme como também uma maneira de mostrar que tudo aquilo está sempre se movimentando para chegar a um ponto comum. Se Iñarritu pensou assim não poderia dizer, mas pra mim me parece uma interpretação cabível.

Diante de uma obra tão bem construída narrativamente, levando em consideração que o roteiro desconstruído do filme não causa confusão no espectador, dada a boa mão e timing de Iñarritu, e a um conteúdo tão tridimensional e duramente real, fica muito claro por que este filme ficou tão marcado em minha memória e por que consigo discorrer sobre ele com certa facilidade. É um filme muito humano, com personagens muito reais com uma conclusão surpreendente e reflexiva.

"E sua mãe também", por Luciano Monteiro


Na cinematografia latino-americana recente vimos surgir novas vozes que nos mostram não apenas a nossa atual conjuntura política, antropológica, social e cultural de nossa condição como latinos, como também uma revisão e reflexão a respeito de quem nós éramos, de onde viemos e para onde possivelmente iremos. Realizadores como Walter Salles, Iñarritu, entre outros, tem enchido nosso olhos de nós mesmos, com belas estórias que centram num olhar mais humanista e pessoal. Hoje o cinema latino americano busca estórias centradas em personagens individuais, ao contrário dos filmes do cinema novo ou do terceiro cinema que possuíam uma predileção pelo coletivo sobre o individual.

Alfonso Cuaron é um desses cineastas. Munido de poucos recursos, doses infinitas de paixão e determinação e uma vontade gigantesca de contar estórias o realizador mexicano nos apresenta, nesse belíssimo ..."E sua Mãe Também" é um exemplar perfeito de poesia cinematográfica, em uma dose mais que equilibrada de arte e entretenimento. Aqui o individual se sobrepõe abertamente sobre o coletivo e tal abordagem é única, criativa e possui sua razão de ser.

O ponto de partida do filme é aparentemente bobo e sem grandes promessas. Tenoch e Julio, dois jovens amigos em plena efervescência de seus desejos sexuais e de aventuras pouco ortodoxas fazem viagem através do México e levam consigo,Luisa, mulher mais velha e madura decepcionada com as infidelidades do marido. Juntos rumam em direção à costa mexicana, em busca de uma praia mítica. Obviamente que essa premissa é apenas um pretexto para tudo o que vem a seguir, ao longo da viagem. Essa jornada física nada mais é que pura alegoria na qual a jornada pessoal que cada personagem fará. Entre umas decepções e outras os personagens se revelam. Descobertas, bebedeiras e aventuras servem para mostrar, de forma sutil e genial, ao fundo, personagens secundários tão ricos, fascinantes e representantes da cultura mexicana e latina, quanto os três protagonistas. Ambulantes, pedintes, sem terra que sofrem ameaças de patrulhas do exército. A maneira como Cuaron as retrata é, sem sombra de dúvida, o que há de mais tocante no filme, sendo seu grande trunfo. Pessoas invisíveis ao nosso olhar de espectador, tanto nas telas quanto no nosso dia-a-dia são transeuntes que passam diante da câmera e tem suas estórias reveladas por uma narração pontual e sensivelmente posta. Nos revela o passado, o presente e o futuro destes meros figurantes. Os protagonistas, como nós, são meros espectadores alienados, mais preocupados pelos mesquinhos desejos de prazer do que o mundo a sua volta e que nunca se detêm a respeito destes cidadãos pequeninos, coadjuvantes da nossa existência latina.

Se hoje o cinema mundial procura o individual, Cuaron parece buscar, em "...E Sua Mãe Também" também uma reflexão sobre o fato de que hoje, num mundo dominado pelo neoliberalismo e pela livre concorrência, que não podemos esquecer o coletivo. Coletivo este constituído por seres individuais, esquecidos, invisíveis a olho nu e apenas vistos pelas lentes de um cineasta com a grandeza e sensibilidade de Cuaron.

"Plata Quemada", por Rinaldo da Silva Pereira Junior



Longe da preocupação política e social e da busca por uma identidade nacional que marcou em grande parte o cinema novo do final dos anos cinqüenta e inicio dos sessenta, e que na verdade foi sua principal característica determinando uma estética própria, revolucionária e temas condizentes com essas preocupações, o cinema dos países latinos onde esse sopro de cinema novo mais se destacou (Brasil, Cuba e Argentina) sofreu uma completa reformulação quando na virada da década de oitenta e inicio dos noventa em parte pelo processo de redemocratização que esses países passaram a viver, depois de um longo inverno de ditaduras militares e por outro lado pela formulação do que veio a ser chamado posteriormente cinema moderno que determina uma significativa mudança na maneira do cinema representar o mundo, determinando principalmente uma guinada temática e estética nos filmes produzidos a partir de então.

A Argentina que havia parido um dos mais combativos cineastas do cinema novo ao lado de Glauber Rocha, Fernando Solanas, famoso pelo seu manifesto onde estabelece os princípios do chamado tercer cine e por sua contundente revisão histórica do passado argentino com "La hora de los hornos", passa então, com seus novos realizadores, a uma visão menos engajada de sua história e assim como o cinema de seus vizinhos brasileiros, embora ainda preocupados com questões político-sociais, deixa de lado o tom messiânico e passa a retratar o seu povo nos seu dia, na sua luta cotidiana a partir de um tom não-idealista e mais humanitário.

O novo cinema argentino, como passou a ser chamado, inicia-se na virada para a década de noventa, paralelo ao surgimento de dois fenômenos que lhe fomentam: o aumento do interesse por cinema e do numero de alunos de cinema e pelo surgimento e ressurreição de festivais de cinema nacionais como o de Mar Del Plata e o Bafici de cinema independente. A vitória de la historia oficial como primeiro filme latino americano a ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1985, chama a atenção do mundo para o cinema do país.

Nesse movimento muitos jovens cineastas ganham relevância. Entre eles, e não tão jovem quanto, surge a figura de Marcelo Piñeyro, que havia sido produtor executivo de La historia oficial. Tomando as rédeas na direção Marcelo Piñeyro passa a ser sozinho responsável pelas maiores bilheterias do cinema argentino a partir de então e desde sua estréia com tango feroz em 1992 que registra recorde de bilheteria no país. Com seu segundo filme caballos salvajes consegue o segundo maior recorde de audiência além de participação em importantes festivais pelo mundo afora, projetando-o definitivamente como diretor de linha de frente do cinema latino.

Em 2000 com "Plata quemada", película baseada em um romance do escritor Ricardo Piglia que por sua vez foi baseado em um famoso assalto a banco e a resultante perseguição ao bando que envolveu a policia argentina e uruguaia e que durou quase três meses em 1965, Piñeyro extrapola e faz de seu filme o mais visto até então no Uruguai e novamente ganha ampla projeção internacional.

Refletindo a nova estética e as novas temáticas do cinema moderno e os esquemas de produção globalizados de realização, plata quemada é uma produção conjunta da Argentina, Uruguai, França e Espanha de narrativa eletrizante e de personagens extremamente complexos.

Nenê e Angel formam um casal de homossexuais marginais, engendrado nos banheiros de estações de trem em Buenos Aires e junto com El cuervo, viciado especialista em assaltos, serão recrutados por figurões que ficarão sempre por trás da cena para um ousado assalto.

Os três formam um grupo de figuras estranhas, marginais e muito distantes do argentino retratado no cinema clássico do país. Angel é altamente sensível e é constantemente perseguido por vozes, que o leva à dolorosos transes místicos. Nenê se divide entre a atenção incondicional ao seu amante e seu irreprimível desejo por sexo, o que o leva a mórbidas incursões ao submundo homossexual. E o assaltante profissional e drogado El cuervo, inconstante e explosivo. Juntos vão levar à cabo o ousado projeto que não resultará nada bem sucedido e que terminará em um apocalíptico, insano e irremediável fim.

Os cabeças da empreitada estarão sempre nos bastidores dando ordens, escondendo-se ou simplesmente indiferente à caçada que se abate sobre o trio. São figurões importantes que sabem apenas planejar e possuem um talento nato em tirar suas cabeças do cutelo e colocar outras no lugar, o que reproduz o esquema sujo, desigual e injusto em que esse tipo de empreitada é sempre estruturado. É um esquema que desvenda um conluio típico bastante comum em países subdesenvolvidos entre policia/figurões de poder político e econômico e marginais. Podemos vê-lo em outras películas contemporâneas como cidade de deus, por exemplo.

"Plata quemada" é um filme de narrativa múltipla, ás vezes contado pelas vozes dos próprios personagens, ás vezes por uma voz em terceira pessoa. A sensação de sufocamento, de isolamento, perseguição e irreversibilidade cresce à medida em que a paranóia e o ensimesmamento dos personagens em seu exílio forçado no Uruguai toma conta. A relação entre os três deteriorasse crescentemente, levando a crises violentas e demonstrações de intolerância.

Apesar do ritmo de loucura crescente, plata quemada é também uma história de amor incondicional, da necessidade de companheirismo, de compreensão e amizade. Destaque também para a montagem ágil e as ótimas interpretações, principalmente Eduardo Noriega como Angel. Sem duvida um excelente exemplar do moderno cinema argentino, que consegue responder à altura as novas demandas estéticas e temáticas do cinema pós-cinema novo.

"A aura", por Bárbara Souza


Um filme argentino, lançado em 2005, roteirizado e dirigido por Fabián Bielinsky, que simplesmente se destaca dos filmes argentinos anteriores a ele, porque se trata de mudar o gênero predominante, acredito que o que irei colocar em questão não se restringe apenas à produção cinematográfica argentina, mas à do cinema latino-americano, que por muito tempo, e ainda hoje, volta-se para a produção de dramas e comédias; mesmo que os filmes tenham ação, como “Cidade de Deus”, “Parada 174” ou “Verônica”, em que existe tensão, os filmes ainda são voltados para o drama, para a denúncia social, ou seja, essa tensão que tem potencial para gerar o suspense são momentos raros nos filmes de drama, quanto às comédias essa tensão nem sequer existe, a não ser para parodiar; mas são esses dois gêneros os mais vistos no cinema latino-americano. Contudo, “A Aura” é exatamente o filme que escapa dessa tendência, ele dá uma guinada nessa questão do gênero, quando filma uma história, que poderia ser mais um drama, transformando-a em um suspense usando das técnicas e criatividade do diretor.

Esteban Espinosa (Ricardo Darín) é um taxidermista tímido, que passa os dias isolado em sua oficina. Contudo, ele tem o grande sonho de poder planejar o crime perfeito, ele planeja vários em sua mente e conta a seu melhor amigo, este resolve levar Esteban para longe da oficina e tirá-lo desse isolamento em que vive nosso protagonista. Assim, Eles fazem uma viagem às florestas da Patagônia com o objetivo de caçar. Acidentalmente, Espinosa mata o dono do lugar em que eles se hospedam e acaba descobrindo que ele é um bandido comum esquema milionário de assalto a um carro-forte. Ele resolve então levar o plano adiante por si mesmo, no entanto, Esteban tem epilepsia e ele se dá conta de que está tendo um ataque um pouco antes de acontecer, o que os médicos chamam de A Aura. Na verdade, o título do filme é bem empregado por possuir um duplo sentido, tanto esse comentado acima, que é dito claramente pelo personagem do filme, no caso, a doença seria a AURA, como o espectador pode pensar que a AURA significa a verdadeira face do personagem, porque todo o tempo ele é visto como um personagem pacífico, que apesar de querer planejar um crime perfeito, nunca seria capaz de executá-lo. No começo, Esteban nem sequer gosta da idéia de caçar, mas o espectador já tem vestígios do potencial criminoso do personagem na sutileza com a qual ele aprecia uma arma, nota-se um prazer contido, que se esconde no homem solitário, tímido e medroso. A cena em que ele mata o bandido acontece, justamente, depois que ele sofre um ataque epiléptico no meio da floresta, ou seja, porque ele decidiu atirar? Ele e seu amigo haviam discutido, o amigo o abandonou no meio da floresta, mas isso seria suficiente para que um homem tão pacífico decidisse matar a primeira coisa que visse, logo depois de um ataque? Um homem como ele provavelmente voltaria para a cabana e pediria ajuda, mas ele simplesmente atira sem nem saber em quê.

Essa análise talvez pareça ir longe demais, mas é a sensação que passa para o espectador, porque ele decide seguir adiante com o plano no lugar do bandido, mas em muitos momentos ele vacila, quer desistir e correr dali, mas, então, ele sofre um ataque epilético e aparece uma outra pessoa, disposta a tudo para atingir seu objetivo, satisfazer seu desejo; além disso, depois de matar o primeiro, os outros ficam muito mais fáceis, ele mostra uma personalidade diferente daquela apresentada no início do filme, tranqüilidade e vontade de cometer crimes.

Tudo isso é criado numa atmosfera sombria, gerando o suspense, a fotografia é “fria”, ou seja, as cores não são saturadas, a iluminação é mínima mesmo nas cenas pela manhã e tarde (com exceção de uma, quando eles descobrem que o hotel onde iam se hospedar não tem vaga), não há nenhuma cena que seja clara como a luz do sol, é como se você coloca-se um filtro para amenizar a intensidade da luz solar, além possuir muitas sombras, além disso, o cenário ajuda bastante a manter essa luz “opaca”, porque no momento em que eles se hospedam em uma das cabanas do bandido, por ser um local mais afastado da cidade, praticamente dentro da floresta, a iluminação já se torna pouca, dentro da floresta o clima só fica ainda mais “frio”; quase tudo (objetos, figurino, cenário, etc.) são tons de cinza, apesar do verde das árvores. Mas a fotografia e cenário não são tudo, os cortes secos passam tanto a simplicidade do protagonista, como sua frieza diante das situações, o que faz parte dessa segunda personalidade que ele adota; os planos são gerais para mostrar a ação criminosa, médios para uma indefinição da personalidade do personagem e closes para os ataques epilépticos e momentos de muita tensão do protagonista, os outros personagens não tem closes, pelo menos, não marcantes, o que coloca o espectador no mesmo plano de tensão e mistério do filme, a câmera gira em torno do personagem, faz plongée, contra-plongée e planos-detalhes para sugerir o efeito do ataque, o que intensifica ainda mais a idéia de que não é um simples ataque epiléptico, vai além, o que para mim é a aura do personagem, a verdadeira personalidade dele, mas mesmo que não seja isso, haverá outras interpretações a respeito desses ataques, pois não são mostrados de uma maneira comum, cria um certo medo e mistério; combinada a tudo isso está a trilha sonora que surge nos momentos mais críticos do filme, em que existe mistério, descobertas e tensão, a trilha é típica do suspense

Portanto, eu ressalvo que o gênero de suspense se sobressai ao drama, que não deixa de existir no filme, mas ocupa um segundo plano, pois todos os elementos cinematográficos se complementam para desenvolver um suspense, que até a data de lançamento desse filme não se assistia com tal intensidade na Argentina, pois as histórias que tinham esse mesmo potencial de suspense acabavam sendo um filme de drama primeiramente. Isso ainda acontece aqui no Brasil e acredito que em toda a América Latina, o suspense tem sido um gênero cinematográfico pouco valorizado, existe lugar para a ação, afinal, não se desliga da violência; mas o suspense vai além da violência, isso não se encontra nas salas de cinema com tanta freqüência, nem nos projetos cinematográficos existentes até o momento, pelo menos, aqui no Brasil; alguns alegam que é a questão financeira, um filme de suspense sai mais caro, mas assistindo “A Aura”, que não foi um filme tão caro, eu começo a suspeitar dessa afirmação.