segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Filme de amor", por Lucas Simões



O título é capaz de equivocar os distraídos. Mas não se engane, em “Filme de amor” existe, ao fundo, um nome de maior força - o intrépido Julio Bressane. O realizador, que foi um dos alicerces principais do cinema marginal brasileiro, permanece como exceção em um país movido em sua essência por produções de temáticas estritamente nacionais. Bressane, durante o regime militar, foi um dos cineastas que mais sofreram com a censura, tendo várias de suas obras rejeitadas pelas distribuidoras. Hoje, após certa abertura política e, sobretudo, cultural, o diretor pode enfim extravasar seus desejos reprimidos do passado.

“Filme de amor” faz parte dessa libertinagem bressaneana que busca contemplar a indefinição intrínseca do amor através de uma representação erótica imprecisa que dialoga a todo o momento com múltiplas manifestações artísticas. Já em seu começo, o filme vai surpreender o espectador, colocando-o em contato com uma cena em que exibe os bastidores da própria produção. Uma claquete surge na imagem e define a posição de sua realização como uma obra cinematográfica. Trata-se de um plano exterior ao contexto fílmico que serve mais como uma introdução metalinguística, porém essa cena é o ingresso para o mundo imagético de Bressane.

A história se baseia sutilmente no mito grego das três graças, mulheres consideradas deusas da beleza, felicidade, fertilidade, dentre outras características. De acordo com a mitologia, elas participavam de festas e encontros para promover a satisfação e despertar o prazer das pessoas. Em “Filme de amor”, o mito sofrerá uma adaptação contemporânea com duas mulheres (Hilda e Matilda) e um homem (Gaspar) que escapam de suas rotinas para viver um período isolados em um apartamento no meio do subúrbio carioca. Assim como as três graças, essas personagens participarão de um ritual dramático onde o jogo sensual de gestos e palavras busca evocar o prazer de um público não presente: aquele que assiste ao filme.

As ações teatrais dominarão todo o enredo. As falas, por exemplo, são constituídas não propriamente de diálogos, mas sim de pequenos monólogos. Trechos de clássicos da literatura como “Moby Dick” serão recitados. As palavras são proferidas como um apelo à reflexão sobre o amor, sobre a carne, sobre os segredos. As performances corporais potencializam um eroticismo que fica no limiar entre o vulgar e o puro, porém nunca atingindo esses polos. Durante essa encenação, alguns planos paralelos irão apresentar a estrutura urbana. Elementos como cabos elétricos, postes e concreto contrastam com toda dramatização incubada no apartamento.

O resgate renascentista também é outra opção estética evidente, desde a mitologia das três graças (que se torna um poderoso símbolo da época) até a constituição dos planos pictóricos, que dialogam com diversas pinturas como as de Boticcelli e Goya.

O trabalho peculiar com a câmera será refletido em diversos momentos do filme. Primeiramente, há uma preferência pelo plano-sequência, valorizando as atuações performáticas dos três personagens que em muitas cenas pertencem ao mesmo plano. Há também trechos em que a câmera permanece estática e na mesma sequência assume uma movimentação buscando novas perspectivas. Em parte de maior ousadia, os personagens estarão conectados na própria grua de captação e a imagem simula um poético voo pelo apartamento.

O poder visual é de agraciar os olhos. Em momentos, a fotografia de Walter Carvalho é preta e branca com um efeito que reforça a distorção entre a ausência e a presença de luz. Em outros trechos, as cenas ganham cores saturadas. A profundidade de campo produz a sensação de um motivo inatingível, como na cena em que, dentro de um trem, são filmados diversos vagões vazios. A iluminação atravessa os múltiplos níveis de um plano que tende ao infinito. O contraste de foco será outro recurso que, em geral, vai privilegiar o motivo mais próximo da câmera, porém irá contemplar imagens ao fundo que dirigem o olhar do espectador para uma realidade desfocada e ambígua. Como um exemplo, temos Gaspar em foco no primeiro nível que observa, ao fundo distorcido, as duas mulheres em um contato mais íntimo e carnal. O próximo plano, seguindo o mesmo recurso estético, exibe Hilda a observar Matilda e Gaspar em atos libidinosos.

Toda a plasticidade cinematográfica consegue elevar (ou transformar) as imagens em movimento à categoria pictórica. É o cinema impresso como uma pintura. Essas imagens estarão incorporadas de simbologias. Em uma cena de extrema maestria poética e domínio visual, Bressane apresentará uma das personagens recitando um trecho que relaciona o poder da lua e o ser humano. Inicialmente, a câmera foca na personagem Matilda e traduz apenas a representação de sua imagem. Nas palavras finais, Matilda profere: “Conhecer uma coisa viva é matá-la. É preciso matar a coisa para conhecê-la satisfatoriamente. Por essa razão, a consciência desejante, o espírito, é um vampiro.” Ao término, a câmera ganha movimento e segue em travelling até exibir de cabeça para baixo as outras duas personagens. A câmera agora possui contexto diegético, o vampiro está presente e observa o ato. Com o reforço sonoro, a perspectiva subjetiva finalmente é do morcego a espreitar. O efeito reproduz, dessa forma, uma sincronia homogênea entre o trecho recitado, as ações corporais, a movimentação da câmera e a banda sonora.

Ao falar sobre sua obra, Bressane comentou: “Filme de amor é sobre duas coisas: intervalos e sobrevivência. O intervalo é o que está entre as imagens. A sobrevivência fala das pessoas movidas por um impulso inconsciente, um desejo de recriar a existência para poder sentir aquilo que é duro demais para sentir-se, isto é, o sentimento de amor.”

Esses intervalos fragmentam o filme em pedaços, formando planos independentes, porém há uma relação de aproximação entre eles que mantém a harmonia de sua linguagem. Em uma comparação mais excêntrica, é possível relacionar o “impulso inconsciente” de Bressane com o impulso nervoso que atravessa os neurônios humanos. Apesar de bem próximos, os neurônios não se tocam, mas entre eles há uma série de elementos físico-químicos que servem para catalisar as reações na travessia do impulso. Similarmente, em “Filme de amor” há espaços entre as cenas, e a sobrevivência é o elemento perpetuador do seu impulso, da sua sinapse, da sua existência.

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