domingo, 30 de outubro de 2011

"Cidade Oculta", por João Paulo Maciel de Araujo


Além da estética anos oitenta, o filme cidade oculta revela-se como um filme extremamente simbólico no que concerne ao modo como a trama vai se desenrolando. Temos ai uma São Paulo embebida pela marca da imoralidade e do caos num tom pós-moderno e totalitário, uma vez que para sobreviver na paisagem de concreto metropolitana é preciso jogar as regras do jogo. O filme mostra-nos toda uma cultura do neon, com trilha sonora própria da época beirando o exótico em muitas passagens musicais que estranha o nosso ouvido devido ao tom dodecafônico que muitas vezes deixa transparecer. O dodecafônico pode ser tomado no filme como uma subversão de toda pretensão de linearidade e harmonia, se a proposta do filme é o de uma Sampa caótica, nada melhor do que a musica serial ou dodecafônica para expressar esse caos aparentemente sem nexo, mas que vai fazendo sentido onde a principio não teria sentido algum.

A vida e a morte são representações fortes no filme que no decorrer da trama vai ficando claro que diante das relações de poder e corrupção, estas duas estâncias vão sendo suprassumidas pela marca do dinheiro e da ganância. O destino um tanto representado pelo fatalismo teológico ganha acessibilidade através de um playtime que brinca com as vidas de Shirley e Anjo em tiragens virtuais dos arcanos de tarô. Neste sentido cidade oculta além de todo o fatalismo, corrupção e decadência, mostra-nos também num tom de numerologia e astrologia taróloga uma certa pretensão de buscar certezas num oceano de incertezas. O destino somente Deus tem acesso, mas para as personagens do filme, este parece ter morrido a séculos. Como numa película Deus é o único que consegue vislumbrar de uma vez só o começo meio e fim da trama, a tacada inicial já fora dada, o resto é só deixar a causalidade agir. A escolha? Esta a cada momento do filme revela uma ilusão criada pelo conceito de livre-arbítrio que ainda deixa transparecer um tom de esperança na personagem Shirley, mas a cada consulta com o oráculo virtual, ela percebe que ficará sem saída.

Quando apontamos para o simbolismo do filme através do tarô é para frisar que não fora jogado à toa no filme. Existem três momentos no filme em que a personagem Shirley consulta o tarô virtual que também pode ser tomado aqui como uma metáfora para a não existência de Deus e sim a existência de um gênio maligno aos moldes cartesianos que emprega toda a sua indústria a nos enganar sempre. O virtual, a ideia de matrix poderiam ser expressões da metáfora do gênio maligno, e o oráculo virtual do tarô seria somente para apontar o téllos determinado por um software enganador. A primeira carta consultada pela personagem fora a Estrela (arcano de nº XVII), isto é, a estrela dentre os seus significados também significa esperança, ajuda inesperada, clareza de visão e por fim a ideia de que um grande amor aparecerá em sua vida, trata-se de uma carta auspiciosa e espiritual. Na segunda carta que a personagem consulta temos o enforcado (nº XII); o Enforcado já revela uma outra tendência do filme voltado para a personagem Anjo. Tal carta é marcada pela rejeição de uma dominação, o anjo passara sete anos na prisão, e depois de solto, todos parecem persegui-lo, querendo sempre algo dele. A carta é marcada também pela desilusão e estancamento de objetivos, que no filme mesmo nos fornecendo uma sensação de que o Anjo ficaria bem no final, ao percebermos sua morte, nossa consciência retorna para o determinismo anunciado pelo arcano do enforcado. Por fim, temos o ultimo arcano consultado pela personagem Shirley; tal arcano fora a Torre (nº XVI) que de forma direta e definitiva revelaria o destino da personagem Anjo. A Torre em como simbolismo a transformação de que nenhum reduto é inteiramente seguro, a desgraça de qualquer pretensão de sucesso, interrupção externa e por fim, a desgraça que marca a trama do filme cidade oculta. O tempo todo, o filme quiz nos mostrar a sua teleologia, ou causa final, que iria marcar o destino das personagens, que numa espécie de jogo do destino com leis e regras bem determinadas, removessem nossas esperanças de que um filme de caráter sombrio e ofuscante pudesse-nos oferecer um final feliz.

Para concluir, o filme revela-nos uma tendência que de uma certa forma já vinha sido marcado pelo clássico Blade Runner de Ridley Scott, a própria capa do filme cidade oculta revela um traço direto dessa influência, uma vez que a capa mostra-nos aos moldes de Blade Runner as personagens em estilo caricaturais de uma espécie de quadrinhos. Claro que a ficção científica não é marca do filme como no caso do Blade Runner, mas temos presente no filme, o traço polical que é bem característico do filme do Ridley Scott. A estética do filme cidade oculta tem muito do Blade Runner, mas também teria muito mais de um outro filme do Ridley Scott chamado Chuva Negra se este não fosse de 1989 claro. A corrupção como fora aludida no texto, é marca do filme cidade oculta, todos estão envoltos por ela, sejam de forma inocente ou não. No Blade Runner o policial Harrison Ford é o tipo mocinho, no cidade oculta, todos são vilões a diferença é somente de grau. A figura que se revela mais antagônica no filme seria a do policial Ratão que tomado pela corrupção faz de tudo para realizar seus objetivos. Minha opinião pessoal é que o filme cidade oculta tem elementos muito originais uma vez que flerta com um lado de São Paulo que não havia sido ainda explorado pelos diretores brasileiros. A música, o gótico, o sombrio, a paisagem soturna e melancólica, o relacionamento interessado e largado das personagens são palavras chaves que marcaram a experiência que tive ao assistir cidade oculta. Um filme profundamente anos oitenta, isto é, com todos os elementos que estavam sendo explorados na época. Um filme que com certeza verei mais vezes e recomendarei para muito amigos uma vez que também sou fascinado por essa década, sobretudo pela música, filmes e demais formas de arte que expressassem esse tempo que não volta mais.

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