domingo, 30 de outubro de 2011

A VANGUARDA CONTRARIADA, por Hermano Callou


LA HORA DE LOS HORNOS (Fernando Solanas e Octavio Getino, 1968, Argentina)

La hora de los Hornos é um filme sobre um encontro e também sobre um desentendimento: o encontro e o desentendimento entre o que chamamos de vanguarda política e de vanguarda estética. A vanguarda política em questão são, evidentemente, aqueles que militavam pela “revolução tricontinental”, no caso específico da Argentina, o peronismo revolucionário; a vanguarda estética, o Cinema Novo argentino, que naquele momento conquistava com La Hora seu filme mais emblemático. Se existe desentendimento é porque o encontro das revoluções estética e política não pode partilhar uma idéia unívoca de vanguarda. A equivocidade da própria noção de vanguarda, que o filme de Solanas e Gentino atualiza, talvez seja capaz de revelar a força de sua própria obra.

Um primeiro conceito de vanguarda é o conceito militar e topográfico da força que marcha a frente e determina o sentido do desenvolvimento histórico. Tal idéia de vanguarda encontra no partido, a cabeça dirigente do movimento das massas, seu princípio de formalização. Tal idéia de vanguarda política é evocada no dispositivo didático de La Hora. A capacidade dirigente do partido é análoga ao papel que a voiceover ocupa no filme. A incapacidade de localizar tal voz no quadro, a subtração de tal fala à diegese, sua origem indeterminada e a ausência das marcas que situariam seu lugar de enunciação, oferecem as condições privilegiadas para que tal voz se transforme na voz do Mestre. O Mestre é aquele cujo papel é ler nas imagens os signos da História. A voz que revela aos dominados a verdade de sua dominação apenas o faz reproduzindo a própria forma da dominação: a existência da voz do Mestre pressupõem continuamente o déficit de saber dos dominados de sua condição e de seu destino e, portanto, precisa reinserir de modo contínuo a distância que os separa da emancipação.

O que é importante apontar é que a voz do Mestre é continuamente contrariada pelas imagens que pretende sustentar seu discurso. Uma imagem nunca é redutível a um enunciado. Existe uma incomensurabilidade entre ver e falar, entre o objeto visível e o objeto discursivo, que mina o dispostivo didático de seu interior. Onde ouvimos que “o proletariado é a base do peronismo”, vemos a distância de Perón, discursando do alto da Casa Rosada, da multidão que o aclama. Perón é sempre filmado de perto e sempre surge iluminado e enquadrado como se exige os códigos da democracia espetacular, freqüentemente em contra-plongée, como em geral se deve figurar líderes carismáticos e populistas como Perón. A multidão sempre aparece indistinta em suas formas, esmaecida entre a luz e a sombra, filmada do alto e de longe, como que para “contá-la e, imaginariamente, metralhá-la”, diria Daney. A disjunção entre o visível e o enunciável suturada pelo dispositivo didático de Solanas e Getino ressurge como um retorno do recalcado que fratura a própria idéia de vanguarda política.

O segundo conceito de vanguarda talvez permita reconhecer a força da La Hora de los Hornos. Vanguarda é nome – dentro do modelo schilleriano - de uma antecipação estética do futuro. Vanguarda, em sentido propriamente estético, é a invenção de formas sensíveis que anunciam uma comunidade por vir. La hora de los Hornos é um grande filme na medida em que, nas fissuras de seu dispositivo, novos visíveis e dizíveis são postos em jogo. O lugar decisivo para tal redistribuição do sensível são as imagens do povo. Não se trata, evidentemente, do povo como substância da Nação, como evocado pelo discurso peronista, mas do povo como devir, o povo como comunidade genérica que se constitui no processo revolucionário e não existe anteriormente a ele. As imagens do povo que assaltam às ruas e tomam a palavra, os depoimentos e testemunhos decisivos que atestam a capacidade de qualquer um tomar as rédeas de seu destino, os encontros dos anônimos com o poder que as imagens registram, mapeiam uma nova comunidade sensível que se constituía no processo político. Tal estética é irredutível o dispositivo didático e atualiza uma outra promessa própria a uma arte de vanguarda..

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