domingo, 18 de abril de 2010

"O padre e a moça" por Bárbara Araújo


o diretor Joaquim Pedro de Andrade

O Padre e a Moça, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, é um retrato de uma cidade decadente no interior de Minas Gerais, talvez até se possa dizer que é uma cidade esquecida pelo próprio país como tantas outras; um lugar em que seus habitantes também foram esquecidos sem esperanças de mudança, até mesmo para a única personagem jovem do filme, Mariana (Helena Ignez), desejada pela maioria dos homens da cidade, até mesmo por seu pai de criação, que insistia em se casar com ela, mas o padre da cidade reprovava essa união. Mariana, parece conformada com a vida dura que leva ao lado desse “pai” e com o futuro que a esperava ao lado dele. Até que o velho padre morre e um novo padre chega à cidade (Paulo José), este se apaixona por Mariana, mas não consegue aceitar, ele acredita ser pecado; Mariana já não pensa da mesma forma, ela não apenas se apaixona pelo padre, mas também o vê como uma mudança de vida, daquele rosto triste logo no início do filme, surge um rosto esperançoso em Mariana. Os dois amantes tentam fugir juntos, para Mariana é um escapismo, uma chance de ser feliz ao lado de um homem que ela amava, para o padre era a mesma coisa, sendo que ele não admitia por acreditar ser um pecado, ele tenta durante a longa fuga afirmar que só está fazendo tudo para ajudar a moça a fugir de tudo que a oprimia naquela cidade, incluindo os abusos do pai adotivo. Quanto a esse pai, Honorato (Mario Lago), ele é um homem que domina a cidade porque fornece tudo que os pobres moradores precisam em troca de pedras preciosas que esses últimos retiram dessa região da Diamantina.

É interessante que esses três protagonistas se destacam do resto da cidade pela idade e pelos traços físicos, também por que se dão conta da realidade local, coisa que os moradores não parecem ter, estes últimos vêem a situação de desgraça e abandono como algo natural e única possível, enquanto que os protagonistas, no mínimo, sabem que isso não é algo que deveria ser aceito, apesar de não acreditarem numa mudança drástica para melhor.

Apesar de o filme fazer uma denúncia social e política da situação do povo nas cidades esquecidas no interior do Brasil, ele não é um filme necessariamente voltado para isso, como os filmes do cinema novo; ele é primeiramente um filme que desperta o afeto do espectador, retratando sentimentos que o fazem imergir na tela do cinema, na história.

Contudo, o filme foi considerado um fracasso financeiro e extremamente enfadonho, eu creio que isso tenha acontecido pela mudança de temporalidade do filme, que começa num ritmo acelerado e passa para um ritmo lento drasticamente, quando vemos a fuga do padre e da moça; é um filme que começa fazendo bom uso da imagem-movimento, em um segundo momento quebra para a imagem-tempo e ainda teria um terceiro momento, quando eles voltam para a cidade que é um ritmo ainda mais acelerado que no primeiro momento, talvez para dar um misticismo ao filme, que seria quando eles são perseguidos por várias mulheres da cidade, chocadas e enlouquecidas com o acontecimento.

Essas mudanças de ritmo podem incomodar, mas ao mesmo tempo se adequam perfeitamente as sensações dos personagens, aquele ritmo lento e o uso de uma câmera subjetiva enquadrando o padre durante sua longa jornada com a moça, sugere o quanto o mesmo estava “perdido”, sem saber como agir e reagir, enquanto o ritmo acelerado do começo, sem o uso da câmera subjetiva, sugere a determinação ou impassibilidade dos personagens, a certeza de que haveria uma ação e reação a determinadas situações. Nessas mudanças de ritmo, planos, enquadramentos e uso de imagem-movimento alternando com imagem-tempo, nota-se uma construção não apenas brasileira, mas também comum aos países da América Latina, partindo já da história, da simplicidade de seus personagens e sua dura realidade; o uso de muitos planos abertos, planos médios e poucos closes, como no cinema europeu.

Outra coisa que colabora muito com os ritmos do filme é a trilha sonora composta por Carlos Lyra, ela cria uma sensação diferente para cada um dos três momentos, adequando-se ao ritmo de cada um deles sem qualquer problema.

É um filme que tem um efeito agradável sobre o espectador, porque cria sensações, mesmo dentro de um cenário de denúncia social, ele não se distancia do afeto e consegue criar três momentos distintos através do ritmo e da trilha, que podiam assustar e afastar o espectador, mas para mim surpreende e me leva a imergir ainda mais nos acontecimentos.

"O senhor mentiu pra mim, Senhor Jabor" por Maria Cecília Shamá

E a propósito, não está tudo bem.







“E nós, hoje, nesta infernal transição entre o atraso e uma modernização que não chega nunca? Quando o Brasil vai crescer? Quando cairão afinal os "juros" da vida? Chego a ter inveja das multidões pobres do Islã: aboliram o tempo e vivem na eternidade de seu atraso. Aqui, sem futuro, vivemos nessa ansiedade individualista medíocre, nesse narcisismo brega que nos assola na moda, no amor, no sexo, nessa fome de aparecer para existir. Nosso atraso cria a utopia de que, um dia, chegaremos a algo definitivo. Mas, ser subdesenvolvido não é "não ter futuro"; é nunca estar no presente”, Arnaldo Jabor.


Existe um grau de permissividade na sétima arte, julgado pelos revolucionários de plantão, como um tipo de alienação social. A tal da identificação com uma obra cinematográfica, seja ela fictícia ou baseada em fatos reais, seria então, ponto de confusão numa análise crítica. E essa eterna crença na necessidade extrema da quarta parede, nos leva a uma simplificação do pensamento, tão reacionária quanto vazia. No filme do Jabor não existem mais paredes, o diretor derruba a casa inteira.
A figura da classe média, ampliada em sua mediocridade por certo olhar burlesco, expõe a todos que um dia, viram aquele mesmo casal, aquela mesma família, aquelas mesmas paredes. Pais, mães e filhos, sobrevivendo através do retrato social. E os operários de construção, de uma nação chamada Brasil, presos no salto alto da madame, enquanto a mesma delibera incansavelmente tarefas domésticas. Quando o custo de vida acompanha a exaustão das práticas e cobranças sociais, e expõe a qualquer um, como manter uma lógica imparcial?

Afinal de contas, há de chegar um tempo em que os anos serão cobrados. Os vinte e seis anos passados juntos. E enquanto as paredes mofavam, assim como o casamento, os filhos cresceram e foram criados pela sociedade. A má criação tão constituinte de vários de nós, relegados à prisão domiciliar ou à falsa noção de consciência de si e do mundo. O ato de consciência espelhado nos tiques sociais, nos trejeitos de uma classe sempre mediana em essência. O casal principal interpretado por Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo ofusca a falta de tesão sexual entre eles, na contabilidade dos fundos monetários da família. São as cifras o ponto de interesse do marido, passional em relação às notas e externo ao próprio corpo. Enquanto a esposa e filha (Regina Casé) compram identidades na loja mais próxima e o filho do casal (Luiz Fernando Guimarães) proclama aos quatro ventos a igualdade de tratamento entre as classes, são as empregadas domésticas as verdadeiras donas do lar.

Zezé Mota e Maria Sílvia constituem, juntamente com os operários que estão reformando o apartamento, o corpo explorado pela elite brasileira, econômica e social. A lógica econômica é dúbia: economizar no que é dado ao menos favorecido, para se poder extrapolar nas reuniões e festas dadas pelo quarteto. Os trabalhadores pagam diretamente pelo luxo de seus patrões. E a corda tende a arrebentar pelo lado mais fraco.

A miscelânea promovida pelo roteiro de Arnaldo Jabor em parceria com Leopoldo Serran é conflitante. Mistura de busca por uma identidade nacional e autoral, desfila para nós a figura da mulata, do carnaval, dos imigrantes. Trabalhadores de construção, instituições falidas, casamento e igreja, relações de poder. Sexo como escape, falta de sexo como escape maior ainda. No entulho vindo da quebra da antiga construção do apartamento, há também a efusão de obras de arte, impedindo a passagem dos tempos, atravancando a circulação das pessoas, emoldurando um tipo de retrato clássico e homogêneo, em reação contrária à configuração étnica do país.

Pois no apartamento da classe média, reforma-se a sala e não a cozinha. Ornamenta-se a casa de convidados e enfraquecem-se os laços familiares. Mesmo o desenvolvimento pessoal fica estacado diante das alegorias barrocas que integram a personalidade do intelectual de plantão, advindo de qualquer setor social. Crítica condizente aos anos dourados de 1978. Quando da esperança que pairava sobre a população diante de uma democracia recém-conquistada, dada pelos senhores do poder, uma liberdade feitas às pressas. Tal como o filme de Jabor. Havia muito a se dizer na compressão dos minutos e das horas. Havia muito que se queria dizer. E havia muito e nada ao mesmo tempo.

Pairou um sentimento de exposição ao término da sessão. Parecia um dos nossos, denunciando a dinâmica de nossa classe. Culpa burguesa, a se formar nas instituições de ensino. Institucionalizada pelos mesmos personagens, de um passado atrelado ao presente. Aos que possuem vinte e poucos agora, aos que possuíram os mesmos anos, décadas atrás.

Foi com certa amargura que veio a constatação. O senhor mentiu para mim, Senhor Jabor. Para todos nós. Se antes o peso da mensagem e a conscientização social eram a primazia, hoje em dia pesa o jornalista boçal, que revive seus ditos e os refaz, para festivais e linguagens mais apuradas. E nos deixa a missão de sermos e tentarmos preenchermos a lacuna, deixada pelo distanciamento analítico da forma e pela legitimação dos status do mundo intelectual de então. E sentimos mais de uma vez o incômodo de mentir por osmose sócio-cultural, que enquanto incômodo, faz-se um sentimento muito bem vindo.

"Crónica de um Niño Solo" por Amanda Xavier Beça



Leonardo Favio estreou sua carreira no cinema argentino com o Crónica de un Niño Solo, e, dedicado a Leopoldo Torre Nilson – outro reconhecido diretor argentino e que instruiu Favio no começo de sua carreira – o filme ganhou o Cóndor de Plata de Melhor Filme do ano de 1966, que é o prêmio da “Asociación de Cronistas Cinematográficos de la Argentina” (ACCA) e o mais bem concedido que qualquer diretor conseguirá na Argentina. Não só apenas este, o filme ganhou o prêmio FIPRESCI no Festival Internacional de Cine de Mar del Plata, também um festival argentino.

O filme nos conta a vida de Polín, interpretado por Diego Puente, um menino de onze anos abandonado pela família e deixado aos cuidados de um orfanato só para garotos, extremamente rígido e que supostamente deveria trazer uma vida melhor às crianças que sustenta. Não suportando ficar ali, Polín sempre pensa em planos de fuga, até que um dia ele efetivamente consegue fugir. A trama, então, é dividida em dois momentos antagônicos: o orfanato (que representa a prisão do espírito de Polín) e a fuga (que representa a liberdade do garoto).

O mundo é cruel para estes meninos, e eles acabam por não viverem devidamente a infância e a pré-adolescência que todos têm direito, ainda que não tenham consciência disso. Enquanto “preso”, Polín e seus colegas tentam exercer suas vontades às escondidas: eles fumam, eles causam intriga, eles cochicham as suas vontades e suas vidas anteriores ao orfanato. E o desejo de escapar dali é muito forte. Durante quase todas as cenas, quando não contam o cotidiano dos meninos e focam em suas vidas, ouve-se falar em planos de Polín para fugir, e até tentativas, como na enfermaria.

Apesar do nome do filme indicar uma possível história da solidão e abandono de um menino, Leonardo Favio não enfoca nisso, apesar desta questão estar presente sempre, ele dá atenção à como Polín se sobressai às durezas que a vida o traz. Nem ele e nenhum outro menino do orfanato são tristes. Eles não têm consciência da tragédia que estão vivendo.

Acontece que o pequeno protagonista é categorizado pelos seus “responsáveis” como um menino-problema, uma má influência para os outros garotos. O que é um pouco verdade, visto que é ele quem inicia as provocações para brigar com outro, é ele quem arranja as sedas para fumar tabaco e pensa os planos de fuga; ele até mesmo já havia fugido antes. Polín certamente causa agitação entre os meninos, e por causa disso é colocado isolado de todos, e daí consegue o que queria: fugir.

Na outra parte do filme, vemos que, mesmo conseguindo seu tão sonhado objetivo, os problemas da vida não param de encontrá-lo. Ao chegar onde morava antes do orfanato – num provável bairro pobre da cidade, que, por acaso, não é especificada – Polín já tem que se deparar com a morte de um conhecido e enfrentar os antigos rivais pessoais que competem o domínio do rio com ele. É aí onde o filme mostra que é realista: em qualquer canto que este menino for, ele sempre encontrará desgraças, porque é por estar preso à baixa camada da sociedade que ele está mais vulnerável a enfrentar coisas ruins e lidar com as durezas que crianças como ele não deveriam conhecer. De modo que, o caráter de menino-problema de Polín, o fato de ter furtado o velhinho do ônibus, e começar a fumar tão cedo, vem de um determinismo social, e não de um determinismo biológico. Estas são as maneiras que ele encontra pra se sobressair, pois o pequeno protagonista não escapa de seu destino.

Segundo conta o próprio Leonardo Favio em entrevista para Roberto Quirno: “em toda obra havia algo de autobiográfico. Em cada película os personagens vão responder como eu responderia nessas circunstâncias. Eu filmo apenas aquilo que conheço muito. E Crônica não escapa disso” (1) . Assim, fica claro que, como o personagem, o diretor também conheceu os orfanatos, e, segundo o próprio, sua intenção com a história do filme era mostrar o falido sistema educacional do governo argentino dos anos 60, em contradição com o regime de Perón. Crónica de um Niño Solo conta a história de um indivíduo, de uma vida. Ao assistir ao filme, o espectador fixa seu pensamento no menino Polín e ao mesmo tempo assiste uma critica a um sistema de governo ao jogar o personagem numa dura e difícil realidade.

1. http://www.youtube.com/watch?v=_ly2G_JdEvc /Youtube. Ralph Steiner Mechanical Principles 1930 User: rarodvdblogspot

"“A Montanha Sagrada” – Imersão surrealista num mundo paralelo" por Larissa Augusta Vasconcelos Cavalcanti



A “Montanha Sagrada” (“The Holy Mountain”, 1973) é um filme que não pode ser analisado sem mencionar o contexto que o circundava durante sua produção. No caso, o movimento de contracultura hippie, que pregava principalmente a paz e o prazer livre (fisicamente, sexualmente e intelectualmente). Esse contexto vai explicar parcialmente a grande aceitação da obra nos circuitos underground dos EUA, pois o filme é mais do que uma narrativa audiovisual, é uma viagem surreal ao mundo do excêntrico diretor chileno, Alejandro Jodorowsky.

A ideologia da subversão do pensamento estritamente lógico através do uso de drogas e outros métodos utilizados por hippies na década de 60 e 70 é o principal fator dessa ligação entre o filme e o movimento citado. “A Montanha Sagrada” é para ser captado pelo espírito, disse em entrevista o diretor. De certo, o filme é um complexo quebra-cabeça de símbolos religiosos, históricos, místicos e tantos outros, que fica impossível captá-lo inteiramente usando a racionalidade. Não é essa a proposta. Apesar de que, em vários trechos do longa é uma tarefa difícil não tentar decifrar os inúmeros códigos e apenas consumi-los sensorial e espiritualmente. Porém, é interessante verificar a utilização dos vários símbolos durante as quase duas horas de filme. Interessante, mas não necessário.

O filme é dividido basicamente em duas partes: uma onde somos apresentados ao protagonista, um homem inocente e comum, vivendo em uma grande cidade, início onde ainda é possível se fazer digressões racionais; já a segunda parte começa quando esse homem, com a aparência do Jesus Cristo católico, sobe na torre de um mago e começa a participar de rituais alquimistas junto de um grupo, ritos estes com objetivo o desligamento das coisas mundanas para alcançar o topo da Montanha Sagrada e substituir os deuses imortais que dominam o mundo, parte evidentemente mais psicodélica e misteriosa.

A obra tem como características fortes as cenas marcantes e, muitas vezes, ofensivas para a maioria das pessoas, traço peculiar de Jodorowsky. A sequência inicial funciona quase como um prenúncio do universo mítico no qual o espectador está prestes a entrar. Minutos depois várias cenas de cunho religioso aparecem, tendo destaque a que várias pessoas carregam em procissão animais degolados e crucificados, os venerando. Uma possível manifestação do diretor contra a religião como instituição, o que a torna um mero produto humano criado sem valores transcendentais. Outro seguimento interessante é o que mostra os turistas vestidos com trajes típicos do México e que tiram foto de tudo. Tudo mesmo, até de um estupro (feito contra uma turista por um militar!) e de uma execução em massa. Cenas que retratam em parte uma visão sádica dos estrangeiros acerca da América Latina, vista como um mero produto da sua colonização. Além dessas, outras sequências como a da luta entre lagartos (astecas pagãos) e sapos (espanhóis católicos) num circo onde todos saem perdendo após uma sangrenta explosão (bizarra, mas interessantíssima visão da guerra) e uma onde um senhor entrega seu olho para uma jovem prostituta, exemplificam o grande conhecimento místico do diretor multi-artista (Jodorowsky é cineasta, roteirista de HQ, mímico e poeta).

Apesar de todo o excesso de sangue, de nudez, de mistério, do sobrenatural e de outras características, o filme consegue surpreender ainda mais no final, numa afirmação literal da não-realidade buscada pelo diretor, conclusão que decepciona muitas mentes majoritariamente racionais. Consagrando imagens fortíssimas em película, “A Montanha Sagrada” é um conjunto de delírios de um criativo chileno que buscava, através de suas obras, proporcionar mais do que uma experiência cinematográfica, e sim uma viagem espiritual, onde as perguntas são mais importantes do que as respostas e a obra entra em conexão direta com o inconsciente.

"Maria Candelária" por Lucas Caminha


Do consagrado diretor Emílio Fernandez, Maria Candelária é um clássico do cinema mexicano. O filme traz o casal mais emblemático da cinematografia mexicana: Doleres Del Río, como Maria Candelária, e Pedro Armendáriz, como Lorenzo Rafael. O longa foi produzido na chamada “época de ouro” do cinema mexicano.

Maria Candelária é uma indígena que vive isolada no lago de Xochimilco, descriminada pelo seu povo pelo fato de ser filha de uma indígena que se havia prostituído. O que ela mais deseja é que sua porca cresça e tenha filhotinhos, para vendê-los, e com o dinheiro poder se casar com Lorenzo Rafael, seu namorado. Ao longo do filme, vemos Maria Candelária enfrentar a fúria dos que a desprezam pela sua condição de filha de uma prostituta. Além de Lorenzo Rafael, o padre local sempre intervém como mediador de conflitos entre Maria Candelária e os outros indígenas, projetando a idéia de uma Igreja conciliatória.

O que mais me chamou atenção nesse filme foi a fotografia. Gabriel Figueroa, renomado diretor de fotografia, que trabalhou tanto no México quanto em Hollywood, parceiro de Luis Buñuel, trabalhou na fotografia desse filme. Vemos ao longo do filme uma riqueza de imagens, que nos mostra paisagens desse México indígena.

Outro ponto muito forte no filme é a trilha sonora, muito presente desde a primeira cena. Composta por Francisco Dominguez, ela tem um toque melódico que se adequa muito bem ao enredo do filme e a triste vida de Maria Candelária.

A atuação dos atores é algo, que na minha opinião, ficou devendo um pouco no filme. Contudo, esse fator não consegue tirar a qualidade do filme, até porque sabemos que naquela época as propostas e técnicas de atuação eram diferentes das de hoje em dia.

Maria Candelária, além de ser um filme espetacular, ganhador de diversos prêmios internacionais, como a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, confirmava a grandiosidade do projeto cinematográfico mexicano. É um excelente exemplo de como o repertório de signos desta mexicanidade, que vinha se construindo desde os anos 20, dá-se no interior de um produto cultural, consumido por milhões de mexicanos e latino-americanos continente afora.

"O padre e a moça" por Rafael de Almeida


Realizado durante a época do Cinema Novo Brasileiro, onde Glauber Rocha e outros cineastas usavam o cinema como um veículo transformador e revolucionário, o Padre e a Moça, de 1965, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, chega para ficar no limiar entre um filme dramático e denunciador do estado social presente naquele momento.

Baseado em um poema de Carlos Drummond de Andrade, o filme se inicia com a chegada de um novo padre (Paulo José) em uma isolada e paralisada cidadezinha de Minas Gerais para substituir outro que havia morrido. O novo padre mudará a vida até então imutável de algumas pessoas dessa cidade, em especial Mariana (Helena Ignez), uma jovem e triste moça (a única jovem que se vê na cidade), que vive com pai adotivo e ciumento Fortunato (Mário Lago). Mudará, acima de tudo, a vida do próprio padre.

O filme é bastante depreciativo em relação ao cenário, apesar da bela composição de imagens da fotografia de Mário Carneiro. Apesar dos planos não serem tão fechados, sentimos com muita clareza, a solidão, o abandono e a sensação de enclausuramento exalado pela cidade e seus habitantes nos claros e escuros que iluminam o quadro. Os próprios diálogos dos moradores reclamam sem entusiasmo da falta de mudanças no local e parecem vegetar em uma situação de desespero. Eis então que Mariana, a jovem que vive aprisionada por Fortunato, se apaixona pelo novo padre colocando-o em uma situação de extrema dúvida. Aliás, o pai de Mariana suspeitava que a moça tivesse um relacionamento com o padre anterior e nunca sabemos se isso ocorreu ou não. Em uma cena que mais parece um flashback, vemos Mariana se relacionando com o sempre bêbado Vitorino (Fauzi Arap) revendo traços de uma garota que não deseja ficar submissa. O filme se desenrola neste combate psicológico travado pelo padre que está sempre sendo tentado por Mariana que tenta a todo custo fazê-lo “cair em tentação”. Por fim, o padre toma uma atitude desesperada e atormentada pelas dúvidas. Resolve fugir com Mariana para Diamantina em uma jornada árdua onde ele deverá tomar sua decisão. Com este ponto de virada na história, também ocorre uma grande mudança na estrutura narrativa do filme. Até então bastante linear e até mesmo clássico, o filme seguia seu curso muito naturalmente sem grandes descontinuidades. No entanto, durante esta viagem, a dúvida carregada pelo padre é incorporada na montagem fazendo com que o espectador até então acostumado ao “modelo” anterior tenha uma reação de estranheza e confusão. No fim, o padre padece diante do desejo e entrega-se a Mariana em bela e metafórica cena onde uma vemos uma fogueira.

O filme não assume uma posição radical de denúncia como os exemplares do Cinema Novo mais emblemáticos, mas a maneira como mostra a estatização de uma cidade pobre e como uma medida desesperada e corajosa pode culminar em uma mudança mesmo que proibida revela sem dúvidas um traço funcional de cinema-panfleto da época. Porém, neste filme, este traço revela-se mais sutil pois o embalo do drama e das ótimas atuações mascaram essa posição tornando a tudo mais apreciativo.

"Alejandro Jodorowsky" por Thiago Rocha





O tipo de produção cinematográfica do chileno radicado no México Alejandro Jodorowsky chama a atenção pela singularidade de seus temas e projetos inusitados. E é interessante observar o quanto ele registra o seu tempo apoiando-se numa tradição e deixa herdeiros dentro do cinema mexicano.

A tradição na qual se ancorou o cinema de Jodorowsky foi o cinema surrealista que Luís Buñuel realizou no México. Muito embora haja semelhanças tanto na trajetória como no cinema, é preciso ressaltar as diferenças entre essas duas cinematografias. Jodorowsky irá retomar calor vanguardista do final dos anos 1920 e começo dos anos 1930 dos filmes O Cão Andaluz e A Idade do Ouro. Já os filmes de Buñuel no México não estariam dentro da tradição surrealista que ele próprio afirmou com Salvador Dalí. Muito tolhido pelas produtoras, Buñuel se vê limitado a desenvolver sua verve mais contestadora. Daí passara a fazê-lo de forma mais contida e sorrateira. Vai filiar-se a tradição realista do cinema latino sem deixar de lado seu estilo surrealista, que vai se impregnar nos meandros das historias e no comportamento dos seus personagens. Poderíamos dizer que um cineasta como Pedro Almodóvar, por exemplo, estaria mais próximo desse surrealismo em seus primeiros filmes do que Jodorowsky. Quando Jodorowsky retoma esse surrealismo mexicano ele trás um artifício mais delirante e mais teatral. Alguns de seus filmes como o primeiro longa metragem Fando e Lis (1967) e A Montanha Sagrada (1973) foram baseados em peças teatrais.

Jodorowsky era mais homem dialogava com seu tempo. O teatro no cinema também se encontra em outras cinematografias latinas como a de Glauber Rocha. À seu modo, trata de temas como o da incomunicabilidade em Fando e Lis quando esse tema estava em voga com Antonioni, por exemplo. Ou mostra as engrenagens do fazer cinematográfico em A Montanha Sagrada como aparece em outros filmes do mesmo período como One Plus One de Godard, O Anjo Nasceu de Julio Bressane ou até Fellini 8 ½. O problema é que quando ele usa desses artifícios, não o faz com a intenção de problematizar o cinema mais do que o teatro. Não se mostra eficiente na tela e soa datado.

Mas se por um lado o cinema de Jodorowsky estaria ultrapassado por motivos estilísticos, o tipo de produção não é e foi importante. Deixou marcas no cinema mexicano da época e em trabalhos mais atuais. Colaborador de Fando e Lis e El Topo, Juan Lopez Moctezuma vai filmar Alucarda – La Hija de las Tinieblas em 1972. Trata-se de um filme de terror, um pouco diferente do estilo de jodorowsky, mas é emblemático pelo fato de fugir também do caminho realista tradicional de produção latino americana, semelhante ao que José Mojica Marins já fazia no Brasil. Outro traço da herança dessa grande produção pode-se encontrar num filme mais recente como O Labirinto do Fauno de 2006 de outro mexicano o Guillermo Del Toro. São grandes produções de capital internacional que se vale de uma conjuntura política para criar alegorias e mundos fantásticos sem necessariamente ter a America latina como pretexto. Não se trata do cinema político da tradição de Glauber Rocha ou Fernando Birri. Del toro, por exemplo, desloca seus personagens do contexto mexicano e vai filmar sobre a guerra civil espanhola. Jodorowsky vai filmar o velho oeste, fará filmes em inglês. A crítica à situação nacional existe, mas é mais pontual do que decisiva na narrativa.

O legado maior de Alejandro Jodorowsky não é tanto a de tradição autoral, e sim de uma política mais globalizada para o cinema mexicano, e por que não latino americano. Ele deixou marcas para outro cinema latino possível e sem apegos ao realismo cinematográfico. E isso é fundamental.

"Terra em Transe" por Heitor Felipe Cartaxo Fernandes



Uma das coisas mais perigosas a que uma obra de arte pode ser submetida é o rótulo de “clássico”. Esse carimbo lhe traz garantias nem sempre desejáveis: a de ser citada nos mais diferentes contextos, a de ser referência obrigatória para futuros aspirantes a artistas, a de ser alvo de estudo nas academias e, principalmente, a de ser muito comentada por pessoas que nunca tiveram contato direto com a mesma.

“Terra em Transe”, de Glauber Rocha é o que pode ser chamado de um clássico do cinema brasileiro. Pode-se dizer que, ao entrar para a história, cumpriu em parte o objetivo que permeava o contexto no qual foi produzido. Recuperar a história brasileira pelo cinema, se livrar do ranço colonial artístico, criar uma forma de angariar a consciência nacional para a realidade social do país, e tudo isso com orçamentos de fome: esse era o sonho do Cinema Novo. A história não foi recuperada, mais continuou a ser escrita com novos heróis. Mas isso é detalhe.

Mas do que trata esse clássico? Mas fácil dizer do que não trata. Sem dúvida não é uma história maniqueísta. No mundo fictício de El Dourado, nada é preto no branco. O filme se passa em diferentes tons de cinza, como as próprias imagens projetadas na tela. Um senador com nojo do povo que representa, um demagogo populista que seduz operários e camponeses para depois fuzilá-los, um burguês industrial cujo lucro é mais importante que a lealdade. Esses personagens duelam entre si pelo poder, tudo com a santa benção da igreja. Luta essa onde o povo é massa de manobra e bucha de canhão, quando não o próprio inimigo a ser vencido. Nesse contexto, surge um jornalista idealista, Paulo, que busca desmascarar a hipocrisia desse sistema político. Um paladino dos fracos e oprimidos? Se for, um muito estranho, confuso, fraco e raquítico frente às forças envolvidas, que precisa se aliar com o inimigo para conseguir ter alguma chance.

A narrativa é descontinua, caótica, dinâmica, misturando um triangulo amoroso, crises ideológicas, indecisões intelectuais, golpes e reviravoltas políticas Em “Terra em Transe”, mocinhos e vilões não existem; apenas seres humanos ocupando papéis diferentes. Há, e aqueles pobres coitados do povo que sempre perdem, claro.

O filme foi proibido pelo ditadura militar. Polêmica, mais pontos na escala dos clássicos. Por quê? Sem dúvida algum censor reconheceu em El Dourado o próprio Brasil. Na verdade, se um censor argentino ou paraguaio da época tivesse assistido a película, possivelmente haveria uma disputa sobre a identidade nacional da obra. A realidade do continente é mostrada com tanta força que as metáforas ganham imediatamente nomes locais. Talvez por isso tenha sido exigido posteriormente que o padre do filme fosse batizado com alguma alcunha, pois caso fosse apenas mais um clérigo poderia ter chovido cartas do Rio Grande a Terra do Fogo de párocos se dizendo inspiradores do personagem. Nas palavras do próprio Glauber Rocha: “É um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e podre na América Latina. Não é um filme de personagens positivos, não é um filme de heróis perfeitos”

Terra em Transe poderia ser comparado com o grito do menino que revela que o rei está nu. Mas diferente da certeza do menino, esse é um grito cheios de angustias pois não se sabe se iram acreditar ou não nas suas palavras, ou ainda, se elas preferiram fingir não ouvir. Bom, levando em conta que o rótulo de clássico, acho que foi um brado tremendo. Só não sei se o eco foi aquele que se esperava.

"O Anjo Exterminador" por Ariana Gondim


Nos quinze minutos iniciais de O Anjo Exterminador mal vemos a mão de Buñuel tal como ele ficou conhecido em O Cão Andaluz. Sem olhos cortados ou formigas passeando por onde não devem. O filme parece mais saído de um daqueles containeres hollywoodianos de onde milhares de filmes são fabricados para o mundo. Claro que conseguimos distinguir a obra mexicana, não apenas pela língua falada pelos personagens, mas também, pela péssima qualidade que o som é captado. Pode ser que nossos ouvidos foram culturalmente colonizados a ouvir o inglês, em matéria de cinema, mas, se não fosse a legenda do meu exemplar deste filme eu não teria feito muito progresso entendendo os diálogos sozinha.

Em termos de conteúdo, a história surpreende. Eleito pelo The New York Times como um dos 1000 melhores filmes do mundo, O Anjo Exterminador retrata um jantar de um grupo de grã-finos que se reúnem após uma ópera. Depois dos convidados chegarem ao palacete do casal Leandro e Luzia Nobile, estranhamente os criados, que sempre estiveram satisfeitos com o emprego, partem, deixando o mordomo, Júlio, sozinho para dar conta da festa. As horas passam e todos festejam até que quando percebem já são quatro horas da manhã e estranhamente todos decidem dormir ali mesmo na sala, mesmo os anfitriões tendo oferecidos aposentos para os convidados. Ao amanhecer a festa continua. Júlio traz o desjejum e sai para buscar uma colher de açúcar. Não consegue. A partir deste momento percebemos os dedos do surrealismo. Todos estão presos na sala por uma barreira imaginária.

Uma prisão da burguesia. Engraçado ver as relações pessoais se deteriorarem e a etiqueta ir se transformando em sobrevivência, instinto. Inicialmente cercados de máscaras, convenções, vemos a realidade em momentos que chegam a constranger, mas que em meio à estranheza da situação parece mais que estamos acompanhando um desses Realities Shows, tão comuns, no canal mais próximo de você.

Segundo o autor, em sua biografia, o filme é sobre a vontade: o que faz alguém caminhar para alguma direção ou mover um braço, por exemplo? Os personagens querem passar pela porta, mas parecem que simplesmente se esqueceram como se faz para isto. Parecem galinhas presas sobre um círculo riscado por giz em torno delas. Aliás, o filme é uma grande análise do animal-humano, todos isolados em um laboratório numa situação limite que os faz manifestar os mais obscuros e selvagens instintos.

Não bastasse a situação ímpar, Buñuel ainda trabalhou os personagens, de modo que, apesar de pertencerem a mesma ‘classe social’ (tirando o mordomo, que é o único serviçal ‘socialmente aceito’, e por isso foi o único que não abandonou a casa), porém com realidades e manias (as vezes nem tão distintas), mas, que se divergem apenas pela convivência em demasia. E de maneira linear a narrativa de O Anjo Exterminador, dá um nó na sua cabeça. Um filme que parece ser leve, mas que cada cena contém uma complexidade e uma densidade... surreal.

Em suma, o filme brinca com que, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, defende:

“Todas as pessoas tomam os limites do seu próprio
campo de visão, pelos limites do mundo”

E, para não dar uma de spoiler, digamos que, uma das cenas finais transforma toda a situação da sala em uma “micro”, saímos da exibição imaginando como seria esse “macro” e também se realmente vamos conseguir abrir a porta e, o mais importante, passar por ela.

"A moça e o padre" por Roger Bravo


Confluência criativa singular de vários artistas diferenciados, O Padre e a Moça, segundo longa de Joaquim Pedro de Andrade, exibe rigor formal e sensibilidades raras na captação sensorial da saga, algo mítica, da relação impossível entre um religioso e uma jovem. A premissa atravessa o imaginário popular há séculos e remete à história real vivida por um professor de teologia e uma mulher incrivelmente à frente de seu tempo – a clássica história de Abelardo e Heloísa. Baseado no conto homônimo de Carlos Drummond de Andrade a estréia cinematográfica de Paulo José destaca-se também pelas precisas atuações de Mário Lago, Fauzi Arap e, sobretudo, de Helena Ignez.

Curiosamente incluído no movimento do Cinema Novo (pelo próprio Glauber Rocha inclusive) esta pérola do cinema brasileiro teve como produtor associado o lendário e controvertido Luiz Carlos Barreto. Foi restaurada, junto com a filmografia completa do diretor, em empreendimentos liderados por Alice de Andrade, filha de Joaquim Pedro, em esforço que reuniu mais de cem profissionais ao longo de cinco anos. Mas o que é O Padre e a Moça, o filme, passados quarenta e cinco anos de sua realização? Retomado nesta primeira década do século XXI, o filme motivou matéria especial na revista cinematográfica eletrônica Contracampo que lhe dedicou rica atenção. Na apresentação do estudo, a pergunta primeira. Como se aproximar do filme? Qual o melhor caminho a seguir?

Não por acaso a história carrega no título os personagens-conceito. Este é um filme de grandes personagens e, para deleite da platéia de qualquer época ou lugar, personagens com intérpretes à altura de seus desafios. Para investigar então o filme importa antes de tudo conhecer melhor a geografia humana e não física desta narrativa.

Uma aproximação primeira junto aos personagens principais toca aspectos delicados da formação do povo brasileiro especialmente os atinentes à aura divinizada-demonizada da figura dos religiosos católicos. Anjos-demônios na colonização dos aborígenes no solo do Novo Mundo da América do Sul o papel da história lhes atribui, atualmente, faceta mais francamente criticável. Contudo, não é sobre a herança maldita de padre Anchieta que o filme pode ser acessado. Não é sobre a chaga dos pecados da instituição Igreja Católica brasileira que o filme pode se tornar mais inteligível. Em outras palavras, o fato de que a Igreja ter papel ativo no regime militar instaurado no Brasil apenas um ano antes do lançamento do filme em nada ajuda a adentrar esta história. Este encontro, a natureza desta relação, deste padre e desta moça em particular não parece ancorar-se em deduções objetivamente histórico-políticas geograficamente localizáveis em termos nacionais, ou melhor ainda, em termos espaciais quaisquer. Este encontro guarda, de fato, inspiração imemorial, ontológica sem maiores determinismos de território. Seu espectro perpassa culturas, épocas e também continentes. Seu poder magnético convida a percepções de um não tempo-lugar.

Se, por um lado a crítica da arte precisa balizar uma obra por suas relações com o caldo cultural de seu tempo, certas obras, por vezes, pedem uma aproximação sem maiores condicionamentos histórico-estéticos em relação a seu significado. Parafraseando Ariano Suassuna ao citar Dom Quixote, de Cervantes, certas obras atingem melhor o universal por serem, paradoxalmente, muito locais. Nada mais mineiro do que a cidadezinha de nome poético, São Gonçalo do Rio das Pedras e, no entanto, nada mais universal, do que o drama da moça que sonha com liberdade e paixão ao fugir com o padre do vilarejo.

A textura humana do padre de Paulo José neste filme convoca o ideia da falibilidade em outro plano, outra dimensão que não aquela, antropológica, citada há pouco em associação à história da Igreja. Por óbvio, a sinceridade e a cadência pessoal de suas convicções altruísticas ultrapassam em muito a chamada caridade cristã. É claro, há muito mais. A questão também não se apresenta exatamente como a contradição, o simples dilema ético entre o voto de castidade e os impulsos sexuais inerentes ao ser humano. O ponto nervoso se dá realmente na tensão de vida e morte com que os dois são confrontados por todo o filme.

A construção contida e constrangida de Paulo José para o padre certamente pertence a um seleto grupo de grandes atuações de um cinema intimista de expressões delicadas e raras na cinematografia brasileira. Tão marcante o papel, tão definidor de suas possibilidades dramáticas como ator no cenário brasileiro que, após extensa carreira que atravessa décadas, coube resgate/homenagem da figura do padre no excelente A Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele, 2009.

Paulo José chega ao vilarejo para substituir padre morto recentemente, cujas suspeitas de concupiscência são apontadas por outros personagens. A juventude (correspondente físico de pulsão de vida) da mulher, Mariana, destoa numa cidade de velhos com exceção de um comerciante iconoclasta, Vitorino, que flertou com a jovem e cuja persona permanece um tanto misteriosa por todo o filme. Não à toa o conflito de gerações. A vila e a própria Mariana são dominadas pelo líder local, o velho Fortunato, interpretado por Mário Lago que vive maritalmente com a moça. O final do padre e da moça, perseguidos por uma massa intolerante é trágico. E, no entanto, a cidadezinha nunca conheceu ninguém mais envolvido com as pulsações de vida (vida dividida, mas ainda assim, vida em alta intensidade) do que estes dois.

Mariana, na pele de Helena Ignez, experimenta o suplício dos suplícios ao ver sua vida presa em diversos níveis ao “senhor feudal” do lugar e ao próprio feudo como espaço enclausurante. Afinal, a vila é vila por não ser o mundo, mundo vasto de grandes possibilidades naturais para os jovens, mundo este sempre ausente. Não há um plano que não seja do mundo particular de São Gonçalo do Rio das Pedras, à exceção da fuga, evidente. Ao entregar sua juventude àquele lugar pequeno onde nada acontece é sua própria vida que resta sacrificada. Vida sufocada pela opressão do tempo que passa e do próprio peso do tempo do velho que desaba sobre si à noite. Vida morta. E este mundo, não exatamente por ser pequeno ou quieto demais, mas por não comportar suas necessidades de movimento e energia, impede as possibilidades de vida plena, compatível com sua natureza inconformada e desafiadora.

Sua interpretação cheia de nuances é achado precioso, ainda mais valorizado pela costumeira ausência de bons papéis femininos no cinema. Por vezes apontada como confusa e insegura, na verdade sua composição joga com contradições complexas que tornam sempre mais rico um personagem de dimensões míticas dramáticas. Tédio e medo, desejo e escárnio, raiva e humildade, vários são os terrenos emocionais que Helena consegue imprimir com vigor e intensidade. Antes de comunicar a emoção superficial de uma cena com Lago, interessou mais à Ignez penetrar em lugares emocionais com matizes múltiplas. As variações sutis numa mesma cena são um mérito por si só e se afastam do caminho mais fácil, mais tranquilo da comunicação direta que acontece geralmente través de uma única emoção básica e forte, cristalinamente expressiva. Seu desespero com a relutância do padre em aceitar a união é um dos pontos altos do filme em que a fotografia e a atuação complementam-se em construção sensorial magnética. Por estes e outros motivos a personagem da moça por vezes parece ser a mais bem construída e interessante de todo o filme; gravitando em seu entorno tudo acontece e muitas vezes sendo ela o vetor da ação.

No papel de antagonista principal Mário Lago encarna a elite branca, tacanha e mesquinha que vampiriza a cidade e, principalmente, a juventude e a beleza da moça. O que seu perfil tem de lugar-comum pode ser lido como representante humano do superego ou arquétipo do poder, associado à velhice opulenta. Não por acaso a imagem cristalizada no imaginário dos cristãos sobre Deus é o deus de Michelangelo com aspecto de velho de cabelos brancos.

O personagem de Fauzi Arap é verdadeiramente fascinante ao destoar da lógica de oposição velho/novo, pois ele parece sempre, e ao mesmo tempo, novo e velho. Da mesma faixa etária que o padre e a moça seu personagem é fusão de características associadas comumente à juventude e à velhice: carrega a amargura e a paixão, o furor iconoclasta e um peso rabugento, a ambição sexual da juventude e uma impotência em vários sentidos. É algo sugerido na estranha e um pouco indiscernível cena de aparente flashback onde a moça e ele tem um encontro frustrado. A impotência de mudar a relação de forças do lugar (vila e moça dominadas pelo fazendeiro rico) teria reflexo de sintonia também numa espécie de impotência sexual? Seu tom raivoso parece evocar impulsos assassinos que poderiam explodir a qualquer instante, contudo nunca acontecem. Arap parece carregar então as duas pulsões num só corpo, pulsões de vida e morte. Talvez por este motivo não chegue nunca a, de fato, rivalizar agressivamente com o padre no afeto da moça. Seu anarquismo oferece estranha solidariedade entre “iguais”.

Os silêncios e vazios do filme colocam o espectador na esteira certa dos tempos e sentimentos dos personagens numa cidade pobre, isolada e decadente de cidadãos anciões e conservadores. O fulgor da juventude encontrando a força das tradições e da religião como antagonista maior. A suposta pequenez dos indivíduos perante o julgamento moral hipócrita e castrador do senso comum moralista provinciano. Mas nenhuma aproximação descritiva poderá dar conta das sutilezas desenhadas pelo preto-e-branco de Mário Carneiro.

A mise-èn-scene de Joaquim Pedro instaura uma duração de convivência tempestuosa entre a escuridão agressiva da atmosfera aprisionadora da cidadezinha e o calor sexual da moça e do padre, sintoma da pulsão de vida dos jovens. A luz, especialmente expressiva, capta a atmosfera enfastiada e opressora que é melhor percebida através dos planos longos e pelas pausas destacadas quando da interação dos personagens. Há tempo para o espectador preencher mentalmente a atividade interior dos personagens ao passo que constrói imaginativamente seu passado ao assistir ao filme.

A montagem de Eduardo Escorel encadeando estes vários planos extensos será decisiva para a construção da tensão sexual no aguardado encontro entre o padre e a moça nas paragens desertas de sua fuga. Neste momento há descontinuidades e rapidez de cortes constituindo um clímax específico que oferece uma fruição não tanto racional, mais sensorial à apreensão da cena. A perseguição que, depois do retorno ao vilarejo, culminará no crime do assassinato dos dois também ganha em impacto dramático porque vem após toda a calmaria sufocante percorrida pelo filme até então.
O músico Carlos Lyra distancia-se do seu porto mais famoso (a bossa-nova) e elabora digressões e arranjos de coro feminino de beatas em temas latinos caros à tradição católica com extrema felicidade. Suas entradas induzem uma elevação da emoção a partir do material visual, contudo sem chamar a atenção demais para si, integrando-se à narrativa de forma orgânica.

O Padre e a Moça serve ainda a um debate de estilos, a uma discussão sobre identidade visual de um povo. O quanto de sua forma austera e universal pode ser creditado a uma filiação estética européia na tradição de um Bergman? Haveria um caminho visual autônomo para o filme sem adestramentos culturais neo-coloniais? Ou haveria condicionamentos na recepção ao filme e não necessariamente em sua realização?

Seja como for, pouco se discute sobre sua força, sua permanência e coesão conceitual. A obra permanecerá viva e instigante por várias gerações por ser não de um tempo-lugar referência, mas por pertencer ao terreno-tempo eterno sem fronteiras do desejo humano.




REFERÊNCIAS

http://www.contracampo.com.br/42/frames.htm
http://www.filmesdoserro.com.br/noticias.asp?task=mostrar&id=84
http://www.imdb.com/title/tt0059560/

"Terra em Transe" por Marina Paula


No calor de seu tempo, Glauber Rocha foi uma das vozes decisivas a incitar um levante revolucionário no que dizia respeito às produções cinematográficas brasileiras. É sobre técnicas de total rompimento com a estética e narrativa clássicas - importadas do cinema americano - e o engajamento político-social característicos do Cinema Novo, que o cineasta firma a sua filmografia. Terra em Transe (1967), seu terceiro longa-metragem, é um registro caótico e alegórico de uma América Latina pré-regimes ditatoriais.

Para tanto, criou-se Eldorado, país dos trópicos que, se não existia, serviu como uma perfeita caricatura do momento político pelo qual passava o Brasil no início dos anos 1960. Eldorado vive uma crise política, ideológica e social. O povo sobrevive à miséria, característica inata à sua condição terceiro-mundista; os políticos aliam-se ao que podem para chegar ao poder; a burguesia apóia quem lhes for favorável e os intelectuais perdem-se entre o fervor de suas crenças e a certeza do caos. Paulo Martins (Jardel Filho) é um poeta e jornalista contrário ao atual governo do país. Ao romper os laços com o autoritário senador Porfírio Diaz (Paulo Autran), ele migra para a província de Alecrim onde, ao lado da ativista Sara (Glauce Rocha), trabalha a candidatura de Felipe Vieira (José Lewgoy), político populista que se une ao povo e promete a salvação do país.

Toda a tensão de Eldorado é refletida áudio e imageticamente durante o filme. Em Terra em Transe, o movimento é constante, o som, a confusão de sons é precisa. A câmera quase não para, e quando para, é porque decidiu nos chamar atenção para um primeiro plano, um close-up, é para nos aproximar das feições ou dos sentimentos do personagem. Com este artifício, Glauber Rocha dinamiza a relação do espectador com o filme. Estamos de fora, mas nossa vista está por dentro dos acontecimentos, caminhando por entre os personagens, movimentando-se com eles, com os seus olhares nos questionando e acusando todo o tempo.

Também a narrativa não-linear tenciona, confunde e movimenta o filme. É mais um elemento responsável por embriagar o público, que o faz mergulhar de vez no transe vertiginoso daquele país à beira do abismo.

Terra em Transe consolidou-se, então, como o trabalho mais ousado de Glauber Rocha até o momento, tanto estética quanto tematicamente, sendo o primeiro filme que se prestava a analisar, passo a passo, o início da repressão e as consequências calamitosas das decisões tomadas, que, independente da fé do povo na igreja ou no estado, levariam o país a um fim “apocalíptico”.

Por seu caráter delator, o filme sofreu fortes pressões da censura, só estreando no Brasil após ter sido premiado em Cannes, para onde foi levado clandestinamente para ser exibido. Reverenciado por figuras influentes como Martin Scorsese, que se recentemente mobilizou-se em divulgar a obra do diretor baiano, o filme é hoje tido como um marco no cinema moderno.

"O padre e a moça" por Luciano Monteiro




Joaquim Pedro de Andrade bem que gostava de uma alegoria. Antes mesmo de filmar o clássico Macunaíma o cineasta enveredou por caminhos menos carnavalescos ao realizar O Padre e a Moça, baseado na obra de Carlos Drummond de Andrade. Aqui Joaquim Pedro cria uma pseudo-obra de influência européia. Sim, pseudo, pois o filme transpira latinidade nos tumultuados anos 60.

Paulo José, que viria a ser, mais tarde ícone tropicalista em Macunaíma, vive o Padre do título. Recém chegado a uma pequena cidade do interior de Minas Gerais para substituir o anterior pároco que acabara de morrer, o jovem vê-se envolvido no drama de Mariana, a moça interpretada por Helena Ignez, oprimida pelo pai adotivo que, segundo dizem na cidade, a abusa desde criança. A paixão entre os dois protagonistas é certa, porém, o que mais surpreende na obra é o desespero de Mariana em querer fugir do lugar e a incapacidade do Padre de tomar uma atitude.

Coberto de uma camada de formalismo e convencionalismo O Padre e a Moça aponta para uma direção nova para a época: a legitimação da cultura latina, brasileira, que até então oprimida pela cultura européia. Joaquim Pedro, busca, no formalismo europeu, subterfúgio para explorar o confuso papel do colonizador, o Padre, representante da cultura européia, jovem e cumpridor de suas ordens, frente ao misticismo e a sensualidade da pequena colônia, representada em especial pela jovem oprimida, aparentemente indefesa e alienada quanto a sua situação e ao mundo ao seu redor. Mariana, no entanto, seguindo a nova abordagem da mulher latina no cinema da época, não é totalmente inerte e sem iniciativa. Incita o jovem Padre a ajudá-la a fugir, apelando justamente para aquilo que o brasileiro latino possui de arma para combater o colonizador europeu: sua paixão pela vida envolta a doses certas de sensualidade e misticismo.

O filme é o prenuncio das revoluções tão em voga nos anos 60 e tão presentes nos dias de hoje, quando se fala, especialmente na identidade dos povos antes oprimidos pelo imperialismo secular europeu. O processo de descolonização ocorrido após a Segunda Grande Guerra deu ao terceiro mundo a oportunidade de jogar de volta nos rostos dos colonizadores de outrora toda a cultura antes imposta, desta vez, porém, com toques, temperos e sutilezas próprias de quem sofreu por séculos tal colonização. Prenunciada por filmes como Narciso Negro, de Michael Powell e Emeric Pressburger, que apesar de inglês, retrata neste filme um grupo de freiras missionárias no Himalaia que são literalmente enlouquecidas e deglutidas pela cultura local, também mística e sexuada, tal resposta dos agora chamados países emergentes continua atual e o Padre e Moça, assim como o filme de Powell e Pressburger, aponta para uma solução de menos impacto estético do que os filmes de Glauber Rocha.

Com seus contrastes quase noir, e de um tom negro profundo nas sombras, seus enquadramentos milimetricamente calculados e atuações de perder o fôlego, o Padre e a Moça bem que deveria ser um filme mais comentado, lembrado, revisitado. Alegórico, sim, porém preciso e comedido que nos serve de possível exemplo a ser estudado e quem sabe a seguido como fazem os argentinos e uruguaios. O Padre e a Moça é uma obra singular que nos aproxima como latino-americanos que somos.

" Bonança. Tempestade. (Post Hoc Ergo Propter Hoc) – Uma Visão De ‘Subida Ao Céu’ de Luís Buñuel" por Victor Laet



O mundo pode ter substituído as aventuras no mar por horizontes de carbono e areia, mas parece que, ainda sim, navegar é preciso. ¡Vale!, não, a navegação agora não proporciona mais os mistérios do mar, entretanto presenteia com estradas tão incertas quanto as ondas do sul e/ou personagens tão exóticos quanto sereias e leviatãs. Se esta afirmação soa boba, pelo menos cinematograficamente navegar é preciso. Andar é preciso. Locomover-se é preciso. Palavras de lado, filmes que abraçam a idéia de road movie sempre tiveram significativos resultados.

Podendo ser sentimentais como ‘História Real’ do David Lynch ou sentimentalóides como “Thelma & Louise” do Ridley Scott; cults como “Sideways” do Payne ou vanguardistas como “Viajo porque preciso, volto porque te amo” de Marcelo Gomes e Karim Aïonuz; honestos como “E tua mãe também” do Cuarón ou melodramáticos como “Central do Brasil” do Walter Salles; até mesmo nervosos como “O Estranho Caminho de São Tiago – A Via Láctea” do Buñuel. Enfim, é inegável o valor do road movie, especialmente no cinema ocidental não hollywoodiano.

Em 1952, Buñuel estava no México e 17 anos o separavam da feitura da cognominada heresia cinematográfica, “A Via Láctea”, contudo seus trabalhos em solo não-europeu já sugeriam características da sua linha de trabalho com a película. “Subida ao Céu” é o que o próprio cineasta caracterizava como um ‘cinema-para-comer’. Trabalhos mais comerciais os quais o ajudavam na arquitetura de produções mais ousadas. Mas apesar de não ser um clássico deste espanhol, naturalizado mexicano, “Subida ao Céu” pode ser considerado um road movie (independente da sua excelência)?

Uma narração onipresente [ - melodrama - ] apresenta e educa a platéia sobre uma remota cidadela litorânea e seus costumes. San Jeromito. Nesta vila um coqueiro vale tanto quando uma vaca e todos os recém-casados tem sua noite de núpcias numa ilha. Todos são festeiros e felizes. Outra coisa, não existe igreja nem padre na ilha. Talvez uma cutucada do ateu fanático e crítico extremo da igreja católica, mas um pífio talvez. A história tem seu ponto de partida quando dois jovens (Oliverio e Albina) recém-casados têm sua lua-de-mel interrompida pelo irmão de Oliverio. A mãe dos irmãos está no leito de morte e exige a presença do filho.

Na família de Oliverio existem, respectivamente, quatro homens: o irmão mais velho, Oliverio, o irmão caçula – todos adultos – e o netinho Chuchito. A pressa da matriarca se dá pela certeza de que seus dois filhos [o mais velho e o mais novo] querem a todo custo a partida da velha somente para serem donos definitivos dos bens [lembra Rei Lear...]. Ela ordena ao filho do meio que ele vá até uma cidade chamada Petlatan para poder passar os bens mais importantes para o neto, Chuchito. O filho, então, adentra um ônibus, onde se depara com inúmeros personagens, para enfrentar as falhas e segredos da eclética geografia mexicana.

Buñuel mostra – divertida e inteligentemente – que o trajeto é uma metáfora para a vida e, no caso, a vida da família do protagonista. Assim como as estradas, tem altos e baixos (Oliverio acaba de se casar e está prestes a perder a mãe), tem vilões e inocentes (os irmãos do protagonista e o neto de sua mãe), e escolhas essenciais (abandonar a moribunda para assegurar suas últimas vontades correndo o risco de ser vítima de fraude pelos irmãos). Face essas questões, “Subida ao Céu” é um filme assaz moralista, pois a viagem do ônibus age como uma réplica da dificuldade de fazer a coisa certa ante um mundo imprevisível [ - melodrama - ]. O percurso percorrido é preenchido com frustrações, distrações, tentações e metas de difícil alcance, tudo isso alternando entre momentos de felicidade.

Depois de uma parada num vilarejo entre as duas cidades, Oliverio segue guiando o ônibus por conta própria e somente na compania de Raquel (personagem mais bem desenvolvida e melhor atuação do filme), uma conterrânea a qual o segue durante a viagem com o único intuito de seduzir-lo [desejo esse brilhantemente enfatizado no hábito desta personagem em morder maçãs e cuspi-las depois de algumas mastigadas].

Nesse momento, os dois passam pela ‘Subida ao Céu’ (o título do filme vem de um trecho íngreme e estreito localizado no alto de uma montanha, o qual deve ser atravessado caso queira-se chegar à Petlatan, logo o título é um recorte da diegese). Bombardeados por (in)diretas de Raquel e dirigindo um trecho perigoso no meio de uma tempestade, Oliverio não resiste. Uma vez que chega ao topo, ele conhece a queda, pois se deixara tentar. Assim, o protagonista se devia do caminho da moral e trai tanto a esposa quanto os desejos de sua mãe. E como “Subida...” é um filme do Buñuel qualquer analogia com Cristo sendo tentado ou Eva ‘arruinando’ Adão não é nada errônea. A fraqueza do personagem o guia para própria derrota. E mais uma alfinetada do diretor, pois é no pico, no exato fim do percurso da subida ao céu, ou seja, em frente à porta de entrada do paraíso, ocorre o pecado. E a ironia persiste: sendo puro e agindo não por si, as circunstâncias o levaram a ser desonesto e doloso, como seus irmãos fazem na forma como tratam a partilha dos bens maternos.

No final desta puntiforme migração, o filme provê o público com o nascimento de uma criança, a morte de outra e outra a qual deve guiar àqueles que assistem a trama, o que deixa a sugerir uma possível continuação da história – mas isso nunca ocorreu.
“Subida ao Céu” é um grito fílmico cujo eco pode ser visto em “Caminhos das Nuvens” de Vicente Amorim ou “Histórias mínimas” do Carlos Sorín. Com a pretensão de apenas alimentar-se, Buñuel realizou um filme que pode agradar de otimistas – como pode ser visto na cena final, apesar de tudo, a vida sempre continua – ou pessimistas, pois uma vez que se sobre ao céu, não há lugar algum a ir, senão para baixo.

"Memórias do subdesenvolvimento" por Rinaldo da Silva Pereira Junior


Minhas lembranças da importância de “Memórias do subdesenvolvimento” para a história do cinema estavam associadas a idéias como: filme político, radiografia da America Latina, diatribe radical contra a exploração e o subdesenvolvimento dos países do terceiro mundo e um cartaz que vi uma vez em uma revista de assuntos políticos que me passava a idéia de algo extremamente sério e engajado com alguma coisa de arte política e engajada também (não lembro bem os detalhes do cartaz, mas era essa a impressão que ele me passava) , tudo isso criou em mim uma aura mitológica com respeito ao filme, além do fato de não telo ainda assistindo, nem em exibições nos cinemas alternativos locais nem na comodidade de seu sofá proporcionado pela benesse moderna do DVD player caseiro. No entanto, assistir a “Memorias del subdesarrollo” hoje, com o distanciamento que só o tempo permite e mais importante o distanciamento histórico que nos exime de posicionamentos obrigatórios e extremos (é exatamente disso que o filme trata), acabou por me proporcionar uma experiência extremamente diferente da expectativa. Vi um ótimo, excelente e importantíssimo filme, mas não um que trata estritamente de problemas políticos, mas um que discute a solidão de um homem que não quer tomar partido, embora tenha uma visão política ampla das coisas, um homem comum que prefere pensar em coisas mais perenes como arte, cultura que independem de estações políticas, e instabilidades históricas. Um homem comum que como qualquer outro homem comum busca o ideal feminino, busca encontrar o modelo ideal de mulher. É um filme sobre buscas individuais mais do que conflitos coletivos.

E onde fica no filme o tal debate sobre a América Latina? Sergio, protagonista principal do filme, parece ser, o filme não explicita, cubano nativo, habanero conhecedor dos seus arredores, mas, como ele mesmo a certa altura afirma ‘’Sempre tratei de viver como um europeu’’. A cuba e por extensão a America Latina de “Memorias del subdesarrollo” é um continente visto e pensado através de olhos eurocêntricos-nativos, criando o neologismo.

Sergio com toda sua cultura europeizada, cultura cultivada, de treinamento cultural, contrasta tanto com o subdesenvolvimento que ele encontra ao seu redor a cada minuto, e que nas suas memórias tanto pode estar associado a alguma “chica” com quem se envolveu quanto com eventos maiores de seu país, quanto com as imposições de um regime recém instaurado e com qual ele aparentemente não opõe nenhuma resistência, mas que na serenidade intelectual de quem sabe que as coisas vão e voltam prefere esperar para ver o que acontecerá.

“Memorias del subdesarrollo” é inventivamente narrado com base nas memórias de Sergio. Todo o filme nada mais é que memórias suas, que ele aparentemente tenta passar ao papel quando seus pais e sua ex-esposa deixam o país logo depois do golpe castrista para Miami, paraíso do que é moderno e chique para a burguesia cubana da época. Com uma câmera documental e analítica, às vezes até intromissora, imagens de época, de arquivo, fotos e newsreels e até registros falados de Fidel Castro e Kennedy , Alea constrói o labirinto narrativo e afetivo de “Memorias del subdesarrollo”, através de uma narração fragmentada que tenta reproduzir a maneira como nossa memória funciona.

O subdesenvolvimento de sua ilha natal e da America Latina por tabela é descrito por Sergio de varias maneiras, às vezes de modo até contundente: o povo cubano não consegue relacionar as coisas, isso é o maior sinal de seu subdesenvolvimento, o ambiente é muito brando, o cubano gasta toda sua energia em tentar adaptar-se ao momento, as pessoas não são consistentes. Além disso, elas precisam de alguém que pense por elas. No subdesenvolvimento nada tem continuidade, tudo é esquecido, as pessoas não são conseqüentes. ‘’Nos trópicos tudo se decompõe mais rápido’’. A própria transitoriedade das relações sociais sobre determinados regimes é comentada: Quando é obrigado a comparecer à delegacia por causa de sua relação equivocada com Elena, ele afirma algo como ‘’Eu sou um burguês, eles são o povo. Todos me vêm como um burguês que explora de alguma forma o povo’’.

Mas a dimensão que Gutierrez Alea foca e enfatiza é o humano. Um homem comum tendo de posicionar-se entre ideologias antagônicas e da qual não quer tomar partido, mas simplesmente observar o que a história tem a ensinar. Sergio está só em seu próprio país, ele é estrangeiro e exilado. Ele não consome e não precisa de produtos americanos assim como não critica o socialismo do novo governo. ‘’Mantenho a lucidez, uma lucidez desagradável, um vazio’’. Quando era criança estudando com padres, aprende não somente as delicias do sexo por um padre livre-pensador, mas também ‘Conheci pela primeira vez a relação entre justiça e poder’’. Depois de um debate promovido pelo governo revolucionário Sergio filosofa sobre ‘’a inutilidade das palavras’’.

Creio que de todos seus pensamentos o que melhor resume sua visão de mundo e a complexidade da vida e das relações entre as pessoas, sejam suas palavras quando deixa a delegacia já livre: ‘’ vi demais para ser inocente, e eles (o povo) tem obscuridade demais na cabeça para serem culpados’’.

"O padre e a moça" por Kianny Martinez.



Segundo longa-metragem dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, O padre e a moça, possui uma instigante independência e até certa distância de tudo que já foi nos apresentado anteriormente a título de cinema brasileiro, apesar de evidenciar certa empatia com o cinema novo. Cinema novo sim. No aspecto que se refere, esteticamente, a uma visão totalitária do país. Assim usa a grande alegoria dos personagens que vão em direção ao horizonte que trará mudança ou representará grande luta. Fato que ainda hoje é existente, como dito por Arthur Autran no texto "Cinema e História nos anos 90" (Contracampo n. 26) – “Servem de apoio a diversos filmes conformistas, através da imagem de "um belo sol no horizonte" a exprimir que "a palavra de ordem é manter a esperança".

É um filme com um enredo quase que sufocante, com personagens presos as suas próprias vidas e a própria cidade onde vivem. Além de possuir vários saltos no tempo, cena confusa que não se sabe ao certo, mas parece ser um flashback, vergonhas escondidas, mistérios, contenção... A fotografia é em sua maior parte trabalhada com planos médios que reforçam ainda mais essa idéia de distância, de prisão dos personagens e num jogo de luz belíssimo, com um tipo de imagem mais europeu. Como a intrigante história amorosa, vemos ainda a estagnação social na qual vivem todos na pequena cidade e econômica, como no tempo do coronelismo onde até o Padre era meio que manipulado para ‘estar de acordo’ com tudo que acontecia numa certa conformidade que se expande a todos. Com tudo isso filme ainda possui um caráter bastante poético, principalmente a fotografia.

A Física não se sabe ao certo o que perdeu, mas o Cinema ganhou bastante quando Joaquim Pedro de Andrade nos agraciou com esta obra prima que é O padre e a moça. Joaquim que na maior parte de sua vida conviveu com um dos grandes poetas brasileiros, Manuel Bandeira. Viria desse convívio esse tom indiscutivelmente poético e sublime que este filme possui? Ou seria influência de outra obra prima que são os poemas do mineiro Drummond? Minas que serve também de pano de fundo para a trama. Dúvidas a parte o que vemos na tela é o resultado que mescla poesia sublime e conflitos da vida cotidiana e singela. Tão belo e tão mágico quanto Limite, de Mário Peixoto, no quesito fotografia.

Sem mais comparações e indagações é um filme que possui destaque na filmografia brasileira, não tanto quanto Macunaima, do também Joaquim Pedro, mas é bastante válido vê-lo tendo em vista sua história cheia de conflitos e questionamentos morais e sociais, sua fotografia esplêndida, além de ótimos atores.

Como aluna do curso de cinema da Universidade Federal de Pernambuco, fico convicta que é de grande validez ter tido a oportunidade de conhecer esta espécie rara de tesouro cinematográfico nacional que é O padre e a moça. Recomendo a todos.

"A Vista no Topo da Montanha" por Filipe Marcena


As imagens que dão início ao filme A Montanha Sagrada, continuação do western El Topo que marcou uma geração na época do Flower Power, são exemplares no que concerne capturar a atenção do espectador e oferecer um índice do que se verá em seguida. Ainda antes dos créditos, duas jovens e vaidosas loiras são despidas e tem seus cabelos raspados por um homem vestido de preto – interpretado pelo próprio diretor do filme, o chileno Alejandro Jodorowsky -, num ritual de purificação inspirado no budismo. Planos inacreditavelmente belos que lembram mandalas, rigor estético assombroso e design de produção impecável explicitam na tela a atmosfera geral do filme.

Um homem que lembra Jesus Cristo passeia pelo México em meio a uma sociedade brutal e desorientada. No caminho cruza com turistas que tiram fotos de um massacre infantil, por um circo que conta a sangrenta história da conquista do México com sapos e iguanas devidamente vestidos, conhece um grupo de “Maria Madalenas”, carrega sua própria cruz e assim por diante. Quando chega numa altíssima torre laranja acaba encontrando seu mestre, um alquimista (Jodorowsky). O mentor o apresenta aos nove homens mais poderosos da Terra e, junto com eles, deverá procurar a montanha sagrada para substituir os deuses que moram lá e tornarem-se imortais.

Jodorowsky faz uma alegoria grotesca, escatológica, transcendental e carregada de simbolismos nem sempre óbvios, mas muito intrigantes. As representações surrealistas de certos grupos da sociedade como policiais, empresários e socialites são abertamente críticas, mesmo que a viagem do filme esteja mais próxima do fantástico e longe do real. Chocante mesmo é o quão A Montanha Sagrada é anticristão, com várias alfinetadas à igreja católica (que tal um Papa dormindo agarrado com uma estátua de Jesus Cristo?) e ao cristianismo. Para Jodorowsky a busca pelo esclarecimento espiritual começa em si mesmo, e se a piada metalingüística ao final soe um tanto anticlimática, é poderosa em sua verdade.

"Terra em transe e o Cinema novo no Brasil e na América Latina" por Renata Rodrigues Alves Monteiro


Glauber Rocha foi o roteirista e diretor de Terra em transe, ele foi a figura chave do Cinema novo e seu filme um dos maiores representantes do movimento no Brasil. Terra em transe foi produzido em 1966 e estreou em 1967, inserido no período da ditadura militar no país, esse filme é uma síntese não só da situação nacional, mas de toda a problemática política na América Latina. O filme traduz os ideais desejados pelo Cinema novo, além de utilizar inovações estéticas, que busca filmar de uma forma diferente do estilo norte-americano importado, é um filme que aborda as questões políticas nas quais estavam inseridos os países latino-americanos, conceituando a arte engajada, e fazendo uma crítica social feroz à realidade desse contexto. Com a ditadura instalada no Brasil, e a nova Constituição do governo do general Artur da Costa e Silva, na qual determinava a censura prévia à imprensa e meios de comunicação, foi um filme de muita polêmica, já que tratava dos problemas sociais, políticos e econômicos de um país fictício que muito se assemelhava à situação nacional. Terra em transe é de certo modo a discussão das questões latino-americanas e a encarnação dos conceitos do Cinema novo.

Terra em transe nos apresenta a República fictícia de Eldorado (uma alusão ao ideal Ibérico da riqueza que representava a América Latina), onde vive o jornalista e poeta Paulo Martins (Jardel Filho). Envolvido com um político conservador, Porfírio Diaz (Paulo Autran), que se tornou senador, Paulo se afasta dele por não suportar a sua visão elitista e seu comportamento déspota, e segue caminho a cidade de Alecrim. Lá ele conhece Sara (Glauce Rocha), uma ativista que está ligada ao político Felipe Viera (José Lewgoy). Paulo e Sara iniciam um romance, e juntos eles apóiam o vereador Viera na candidatura a governador. Paulo acredita que Viera é um líder populista capaz de mudar a situação de Eldorado, de salvar o país do subdesenvolvimento. Eleito, Viera não confirma as expectativas de Paulo, cedendo e sendo controlado pelas forças econômicas locais que o apoiaram nas eleições. Paulo desiludido deixa Sara e a cidade de Alecrim, e retorna a capital de Eldorado. Nas noites, como o mesmo descreve: cede aos desejos da carne, que é o que lhe resta. Ele se aproxima do maior empresário do país, Julio Fuentes (Paulo Gracindo). Busca o apoio do empresário para impedir que Diaz, candidato à presidência com o apoio do atual presidente Fernandez, se torne presidente, alegando o apoio de uma empresa multinacional chamada Explint, que explora as terras de Eldorado, ao político, e que esse apoio possa acarretar no controle da maioria capital nacional pela empresa. Pois é a Explint que mantém Fernandez na presidência e que financiou a campanha de senador de Diaz. Fuentes sente seu império dentro de Eldorado ameaçado pela projeção do controle econômico por parte da Explint, e se compromete a salvar a economia do país das mãos da multinacional. Julio Fuentes entrega o seu jornal a Paulo, para ele atacar o candidato Diaz. O Jornalista se sente mal por ferir o homem que fez tudo por ele, mas amava a Sara e sabia que destruir Diaz era estar livre e voltar para ela e para as promessas de Viera. Depois dos pedidos de Sara e de seus companheiros,

Paulo e Viera se unem novamente, para a candidatura do político a presidência. Viera mantém sua política populista, como prega: “... A força é o povo!”; e tem apoio da Igreja. Mas Fuentes trai ambos aliando-se agora a Diaz e a Explint. Álvaro (Hugo Carvana), conta a traição para Paulo. Ele quer reagir, partir para a luta armada, mas Viera desiste, não quer ver o sangue do povo derramado. Paulo questiona a sua liderança. Uma sucessão de cenas segue, nas quais aparecem Diaz proferindo seus ideais conservadores, onde ele “colocará as histéricas tradições em ordem”, e a revolta de Paulo que sai do Palácio num carro com Sara e é alvejado por policiais culminando numa cena épica onde ele segue com sua a arma cambaleando pelas dunas e a apontando para o céu. É o fim, e não parece, Paulo morre, mas a luta continua.

Inserido nesse contexto onde a maioria dos países latino-americanos sofriam imposições de ditaduras, mas cada um a seu modo. Os países que mais se destacaram nessa época foram Brasil, Argentina e México, nações que não tiveram um período tão sangrento como em outros, o que influenciou esse destaque. Cada país com sua realidade, mas que se traduziu no mesmo desejo, surgindo de várias formas seja Cinema novo no Brasil, ou Libertação na Argentina, Independente no México, ICAI em Cuba, grupo ukamu na Bolívia, Terceiro mundo no Uruguai, Experimental e Novo Cine chileno, Novo na Venezuela e Documental na Colômbia, o mesmo desejo de denuncia da realidade do subdesenvolvimento, da permanência do colonialismo cultural e mais do que tudo da consolidação de um cinema original latino-americano, sem importação do norte-americano ou europeu. Sobre essa formação e seu combate Glauber escreveu: “nosso cinema é novo porque o homem latino-americano é novo, a problemática é nova e nossa luz é nova, por isso nossos filmes são diferentes. O cineasta do futuro deverá ser um artista comprometido com os grandes problemas de seu tempo. Queremos filmes de combate na hora do combate”. O filme retrata a realidade da América Latina desde os pequenos detalhes como nomes (de origem espanhola: Fuentes, Martins, etc), música (às vezes sinfônicas, outrora de característica indígena), caracterização dos personagens e ambientação, à questões sociais como populismo, conservadorismo, religião, empresas multinacionais, dinheiro, numa desconstrução muito pessimista do contexto no qual estava inserido o Brasil e os outros países. Para entender o filme tem que saber desse contexto, a fim de identificar a feroz critica social presente.

Dessa posição,podemos sublinhar a importância do filme para a história do cinema nacional e latino-americano, que é o seu caráter de denúncia, sem esquecer a originalidade estética (que possui influências da escola soviética de montagem) e o incrível tom poético da obra. Junto com Fernando Solanas, Tomás Gutiérrez-Alea e outros, Glauber Rocha ajudou na formação desse cinema latino-americano, e com engajamento caracteristico, suas realizações repercutem muito no que é realizado na atualidade. Com um reconhecimento internacional, recebeu prêmios nos Festivais de Cannes, Havana e Locarno, Terra em transe é um épico, um filme marcante, que expressa intensamente o espírito latino-americano da época, o espírito revolucionário.

“Maria Candelaria”, por Paulo de Sá


Ao começar sua carreira nos anos vinte como figurante de westerns em Hollywood, Emilio ‘El Indio’ Fernandez trouxe, alguns aspectos da cinematografia norte-americana para o cinema latino-americano, e mais especificamente para o seu próprio país, o México. Há, porém, vários elementos que retratam sua nacionalidade, sendo facilmente identificáveis dentro de sua filmografia. São estes mesmos elementos as grandes marcas de Fernandez e que o fizeram se tornar reconhecido no meio cinematográfico.
Maria Candelaria, obra que retrata pequena parte da vida de uma índia a qual vive em uma pequena aldeia no México, se encontra perfeitamente no quadro anteriormente descrito. Filha de prostituta assassinada pela comunidade local, justamente pelo julgamento do modo com o qual “ganhava a vida”, Maria Candelaria, interpretada por Dolores Del Rio, sofreu durante toda sua vida com a humilhação a qual era imposta, tal como os preconceitos por causa de sua falecida mãe e também com a marginalização que ela era obrigada a se submeter, vivendo sempre longe do centro de sua aldeia.
Lançada em 1943, esta obra apresenta vários aspectos que aos poucos se concretizaram na cultura audiovisual mexicana, sendo ‘El Indio’ um dos responsáveis por tal acontecimento. A presença precursora de elementos novelísticos, por exemplo, como o exagero narrativo em cada ato da pobre Maria Candelaria, assim como do sofrimento vivido por Lorenzo Rafael, seu amado, interpretado por Pedro Armendariz, formaram uma verdadeira base para a produção que existe hoje de novelas mexicanas, as quais exploram de forma melodramática temas como o preconceito, o sofrimento e o amor. A presença de personagens que se eternizaram no audiovisual melodramático também é de suma importância; exemplos são os próprios mocinho e mocinha, o vilão, entre outros. Vale ressaltar que é possível estabelecermos conexões com o período da Vera Cruz no Brasil, a qual também trilhou caminhos explorados pelo cinema mexicano, o qual havia se concretizado um pouco antes.
Desejando impor um tom artístico ao seu filme, Emilio Fernandez trabalhou com Gabriel Figueroa, fotógrafo internacionalmente reconhecido e concorrido no mercado de trabalho entre os grandes cineastas. Figueroa, com sua brilhante fotografia em preto e branco nesta obra, soube fazer o que poucos na América Latina daqueles tempos conseguiriam. Com o contraste genial de luzes e sombras, e o uso da luminosidade das chamas de fogo (cena em que os aldeões correm para expulsar Maria Candelaria da aldeia, por exemplo), Figueroa conseguiu, inclusive, dar ótimo suporte não só para a estética do filme, mas como também para sua narrativa.
Há, porém, aspectos presentes no filme importados da produção hollywoodiana. Para exemplificar, a trilha sonora se assemelha bastante com os dramas da época produzidos nos Estados Unidos, sendo este um dos aspectos que não demonstram aspectos nacionais e sim remetem a elementos já concretizados na produção cinematográfica norte-americana.
Uma das grandes obras de Emilio ‘El Indio’ Fernandez, Maria Candelaria teve sua participação e incrível importância para mostrar as bases de toda uma cultura audiovisual e, em parte, cinematográfica que estava por vir no México, sendo portanto de relevância inquestionável para a cinematografia não apenas do país, mas de toda a América Latina.