domingo, 18 de abril de 2010

"Terra em Transe" por Heitor Felipe Cartaxo Fernandes



Uma das coisas mais perigosas a que uma obra de arte pode ser submetida é o rótulo de “clássico”. Esse carimbo lhe traz garantias nem sempre desejáveis: a de ser citada nos mais diferentes contextos, a de ser referência obrigatória para futuros aspirantes a artistas, a de ser alvo de estudo nas academias e, principalmente, a de ser muito comentada por pessoas que nunca tiveram contato direto com a mesma.

“Terra em Transe”, de Glauber Rocha é o que pode ser chamado de um clássico do cinema brasileiro. Pode-se dizer que, ao entrar para a história, cumpriu em parte o objetivo que permeava o contexto no qual foi produzido. Recuperar a história brasileira pelo cinema, se livrar do ranço colonial artístico, criar uma forma de angariar a consciência nacional para a realidade social do país, e tudo isso com orçamentos de fome: esse era o sonho do Cinema Novo. A história não foi recuperada, mais continuou a ser escrita com novos heróis. Mas isso é detalhe.

Mas do que trata esse clássico? Mas fácil dizer do que não trata. Sem dúvida não é uma história maniqueísta. No mundo fictício de El Dourado, nada é preto no branco. O filme se passa em diferentes tons de cinza, como as próprias imagens projetadas na tela. Um senador com nojo do povo que representa, um demagogo populista que seduz operários e camponeses para depois fuzilá-los, um burguês industrial cujo lucro é mais importante que a lealdade. Esses personagens duelam entre si pelo poder, tudo com a santa benção da igreja. Luta essa onde o povo é massa de manobra e bucha de canhão, quando não o próprio inimigo a ser vencido. Nesse contexto, surge um jornalista idealista, Paulo, que busca desmascarar a hipocrisia desse sistema político. Um paladino dos fracos e oprimidos? Se for, um muito estranho, confuso, fraco e raquítico frente às forças envolvidas, que precisa se aliar com o inimigo para conseguir ter alguma chance.

A narrativa é descontinua, caótica, dinâmica, misturando um triangulo amoroso, crises ideológicas, indecisões intelectuais, golpes e reviravoltas políticas Em “Terra em Transe”, mocinhos e vilões não existem; apenas seres humanos ocupando papéis diferentes. Há, e aqueles pobres coitados do povo que sempre perdem, claro.

O filme foi proibido pelo ditadura militar. Polêmica, mais pontos na escala dos clássicos. Por quê? Sem dúvida algum censor reconheceu em El Dourado o próprio Brasil. Na verdade, se um censor argentino ou paraguaio da época tivesse assistido a película, possivelmente haveria uma disputa sobre a identidade nacional da obra. A realidade do continente é mostrada com tanta força que as metáforas ganham imediatamente nomes locais. Talvez por isso tenha sido exigido posteriormente que o padre do filme fosse batizado com alguma alcunha, pois caso fosse apenas mais um clérigo poderia ter chovido cartas do Rio Grande a Terra do Fogo de párocos se dizendo inspiradores do personagem. Nas palavras do próprio Glauber Rocha: “É um filme sobre o que existe de grotesco, horroroso e podre na América Latina. Não é um filme de personagens positivos, não é um filme de heróis perfeitos”

Terra em Transe poderia ser comparado com o grito do menino que revela que o rei está nu. Mas diferente da certeza do menino, esse é um grito cheios de angustias pois não se sabe se iram acreditar ou não nas suas palavras, ou ainda, se elas preferiram fingir não ouvir. Bom, levando em conta que o rótulo de clássico, acho que foi um brado tremendo. Só não sei se o eco foi aquele que se esperava.

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