sábado, 30 de abril de 2011

Maria Candelária, por Thaynam Lázaro


Maria Candelária figura entre os filmes mais importantes da carreira do cineasta mexicano Emilio Fernández. Não é por menos, o filme é um verdadeiro deleite para os fãs do melodrama e até hoje nota-se sua influencia neste gênero tão explorado nas atuais novelas mexicanas, o filme seguramente é um grande precursor do melodrama moderno. O filme conta a historia de Maria Candelária, uma índia que sofre preconceito por parte dos moradores da aldeia em que vive por ser filha de uma prostituta, Maria tem uma vida à margem do centro da aldeia e a única pessoa com quem pode contar é seu amado Lorenzo Rafael.

O filme é uma clara tentativa de criar um novo imaginário coletivo sobre o povo
mexicano. Vários elementos da cultura e religião local estão inseridos no meio da narrativa melodramática, há uma tentativa de reconstruir os estereótipos nacionais, retratando os personagens de forma idílica e nacionalista.

A arte do filme, apesar de inverossímil, é impecável. A maneira com que a aldeia é retratada não condiz muito bem com a realidade da época em um país pobre com o México. Os personagens, em sua maioria trabalhadores rurais, estão sempre vestidos de uma forma padronizada e limpos demais, fugindo de suas realidades. A efetividade desta escolha está em conseguir criar um imaginário que encaixa bem com uma narrativa melodramática onde os personagens estão condicionados a agir de acordo com a cultura local, mas são retratados de forma engrandecedora exatamente por serem estereótipos desta cultura.

A fotografia de Maria Candelária é uma das melhores já feitos no cinema em preto e branco. Fotografado brilhantemente por Gabriel Figueroa, importante diretor de fotografia da época, o filme consegue aumentar seu tom artístico e idílico por seus ângulos e iluminação que ajudam a engrandecer a beleza local e de sua protagonista.

A religião é outro fator importante no filme. Ponto importante é o paralelo entre a protagonista e a Virgem de Guadalupe, algo sempre frisado com grande importância, que ajuda a martirizar ainda mais a santidade de Maria Candelária, cujo único erro foi ter nascido filha de uma prostituta.

Um importante melodrama na historia do cinema mexicano, Maria Candelária é um excelente filme. Com um visual extraordinário e com seus personagens inesquecíveis, o filme consegue ainda hoje encantar os olhos de qualquer um que se interesse pela cultura deste povo que são os mexicanos. Melodrama dos melhores.

O mundo existencial de Khouri, por Felipe César Almeida Silva


1968. O mundo fervilhava em meio a novas ideias e revoluções estudantis, tornando-se o que a História viria a chamar de “ano mítico”. Sua importância deve-se às transformações que sucederam os acontecimentos daquele ano, embriões das mudanças políticas, éticas, sexuais e comportamentais surgidas nos anos seguintes. No Brasil, em meio à ditadura militar, despontava o Tropicalismo – movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil –, e correntes cinematográficas como o Cinema Novo e o Cinema Marginal pregavam propostas e estéticas distintas. Em meio a tantas agitações, Walter Hugo Khouri lança As Amorosas, filme que vai na contramão do espírito de sua época – embora dialogue, de maneira sutil, com as angústias da juventude sessentista.

Khouri é dono de uma extensa filmografia; seus 25 filmes são de uma coerência estética raríssima no cinema brasileiro, que poucas vezes viu um autor tão genuíno e intimista. Seja pela temática existencialista, silêncios, ritmo lento, pouca ação ou rigor estético, sua obra é geralmente comparada as de cineastas como Antonioni e Bergman, sempre evocando um cinema europeu. Contemporâneo de nomes como Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, não se engajou a nenhum movimento e manteve sempre seu estilo autoral, tendo em São Paulo a sua cidade mais emblemática.

“Eu quero uma coisa mais intensa do que tudo que existe” diz Marcelo (Paulo José), protagonista de As Amorosas, a certa altura do filme. Órfão, tem apenas suas duas irmãs. Uma delas é distante e possui sua própria família; a outra é sua amiga e confidente. Ele é universitário, não tem casa própria, mora de favor na casa de um amigo, não trabalha e nem se importa com isso. Acompanhamos sua crise existencial ao longo do filme, e é através de seu discurso que a filosofia de Khouri se explicita. Em meio a suas angústias, Marcelo vaga por aí e se envolve com duas mulheres, para no final se dar mal por causa de uma delas – ao tentar impedir seu estupro por outros rapazes e acabar espancado por eles.

Ele é o alter-ego de Khouri, sendo uma personagem recorrente ao longo de sua obra. Através de Marcelo, o cineasta aborda questões filosóficas e existenciais, sendo em As Amorosas sua primeira aparição. "Em As Amorosas a convergência para a filosofia pessimista e anti-historicista se dá por meio de elementos que vão dos diálogos à estrutura do filme, passando por atributos de personagem (como a biblioteca), estilo etc. Trata-se de um filme em que o empenho autoral se realiza em larga extensão: todos os recursos de composição analisados, sejam narrativos ou cinematográficos, concorrem para que se expresse a concepção de mundo que lhe é própria" (PUCCI JR, 2001, p. 116). Há um momento em que ele dá uma entrevista para um grupo de jovens aspirantes a cineastas que realizam um filme. Em seu discurso niilista encontram-se citações a obra Women in Love, do escritor D. H. Lawrence, romance que surge dentre a pilha de livros mostrada posteriormente em um determinado plano, no quarto de Marcelo. Esses estudantes de cinema que lhe entrevistam representam a juventude revolucionária da época. Embora não fique explícita a ideologia esquerdista deles, há indícios da mesma através de falas de Marcelo e a reação dos estudantes, além do título do filme que estão realizando, que reflete o momento de incerteza da época: O que? Para onde? Como? "A combinação de pessimismo e anti-historicismo leva As Amorosas à contramão do espírito de sua época. O próprio Khouri demonstra consciência disso ao contrapor o grupo de estudantes a Marcelo, em especial na sequência da entrevista. A reação dos militantes ao discurso de Marcelo, que falava do desejo de transcender a experiência, não poderia ser diferente: aversão completa." (PUCCI JR., 2001, p.114). Ele é um existencialista, que filosofa sobre o tempo e discorre sobre questões introspectivas; os estudantes estão presos ao agora e às transformações do período, pensando num âmbito maior de sociedade, considerando perda de tempo pensar em si mesmo. A diretora do filme se encanta com Marcelo e os dois vivem um breve romance, embora ela se envolva com ele para querer mudá-lo e adequá-lo ao modo de vida que ela considera correto. Nem todos compram esse modo de vida de Marcelo: ele sofre críticas do namorado da irmã, além da sua outra irmã casada e seu marido; estes representam a sociedade normativa e padrão, que acredita num modo de vida com rotina e emprego, sem questionar nada além. Marcelo vai de encontro a isso, recusando a trivialidade cotidiana.
Há três mulheres que orbitam ao redor de Marcelo durante a história: sua irmã Lena, a estudante de cinema Ana e a atriz Marta. Com a primeira, ele confidencia suas angústias e problemas existenciais e a enxerga como uma semelhante, embora em sua última conversa ela perca a paciência com o irmão e diga que ele é insuportável, sempre insatisfeito com os outros. Tanto Ana como Marta se apaixonam por Marcelo, mas ele não corresponde. Parece não acreditar no amor, só no sexo. Aliás, para Marcelo, o sexo é "a única maneira de transcender temporariamente as frustrações da existência" (PUCCI JR., 2001), pois não se interessa em mais nada no resto do filme. Parece estar à deriva, em busca de algo que não existe (como ele próprio declara), numa eterna crise. Além das duas mulheres com quem se envolve, Marcelo flerta com diversas outras, inclusive com Rita Lee, que na época era vocalista dos Mutantes – banda integrante do movimento tropicalista que explodia naquele ano –, durante um show deles.

Khouri faz do universo urbano e caótico de São Paulo um ambiente inspirador para essas angústias: os créditos iniciais do filme são compostos por desenhos que se originam de faixas de trânsito, e há uma sequência do filme em que Marcelo atravessa a rua e um travelling contínuo repete as faixas de pedestre, parecendo infinitas. É como se Khouri estivesse nos dizendo que Marcelo está vagando por aí, sem chegar a lugar algum.

O filme possui uma estrutura narrativa circular; começa e termina com um mesmo plano: um travelling vertical que desce por uma árvore e revela Marcelo, encostado na mesma. Ao fim do filme ele está numa floresta, à beira da morte, em posição fetal, após ter sido espancado por tentar evitar que rapazes estuprassem Marta. Ele olha para o céu; o filme termina. Marcelo chegou ao ápice de sua jornada: sua angústia existencial o levou até ali, quase causando sua morte. "(...) O caráter devorador do tempo é comprovado, ainda que de forma indireta, pela confirmação factual da vulnerabilidade humana: a sequência da tentativa de curra expõe a fragilidade do indivíduo, dada a gratuidade da situação e o perigo de vida enfrentado por Marcelo. Inserido numa cadeira de acontecimentos, portanto, imerso no tempo, o personagem fica à beira da desgraça ou da morte e é salvo apenas pela passagem da viatura de polícia, uma circunstância tão fortuita quanto a que o jogara naquela situação. Em suma, não existe mínima segurança na corrente de causas e efeitos que constitui a existência." (PUCCI JR., 2001, p. 102).

Referências Bibliográficas

PUCCI JR., Renato Luiz. O equilíbrio das estrelas: filosofia e imagens no cinema de Walter Hugo Khouri. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.

SERENATA TROPICAL: DELICIOSO ERRO HOLLYWOODIANO, por Vinícius Gouveia




A história é de mais um casal apaixonado, porém impedidos de permanecerem juntos por uma rixa familiar. As passagens musicais tornam o filme ainda mais agradável, divertido e escapista. A aventura fica por conta das corridas de cavalo. Assim, Serenata Tropical (“Down Argentine Way”) teria tudo para ser mais um filme de sucesso comercial, alavancado pelo harmonioso elenco composto por Don Ameche, Betty Grable, Charlotte Greenwood, Henry Stephenson e a brasileira Carmen Miranda. Contudo, a ambientação na Argentina foi feita de maneira pouco cuidadosa e trouxe uma interpretação política inesperada a uma comédia-musical que, aparentemente, não tinha grandes pretensões de ir além de “muitas aventuras e um amor impossível”, numa descrição Sessão da Tarde. Na verdade, o filme hollywoodiano mostrou-se tão polêmico na representação da Argentina que em determinado momento teve sua exibição suspensa neste país.

Independente das qualidades do filme no gênero onde foi enquadrado e de seus acertos, a escolha pela Argentina mostrou-se um erro por expor o despreparo ou falta de cuidado no trabalho de representar o país desde o roteiro até a direção. O filme é basicamente de estúdio, a artificialidade dos cenários torna o filme ainda mais falso, aspecto fortalecido pela arquitetura de traços americanos pouco coerentes com o local retratado. Os diálogos também são majoritariamente em inglês, embora algumas vezes pequenas expressões em espanhol sejam utilizadas para pontuar falas e trazer ao diálogo algum ar de autenticidade.

Amparado na rumba e nas canções (em português!) de Carmen Miranda, o musical mostra-se equivocado também na trilha, tornando-se uma amálgama de referências latinas e esquecendo-se de uma identidade mais específica do país ao qual se refere. Até o sapateado dos Nicholas Brothers soa como uma tentativa de “latinizar” um aspecto cultural americano e demonstra pouca autenticidade argentina, mesmo sendo um dos grandes momentos do filme.

Os figurinos são uma questão a parte. As roupas usadas pelos nativos são fortemente marcadas por referenciais mexicanos e abusam das cores. Mas os trajes dos mocinhos também recaem sobre outros clichês, o que demonstra ser um mal do gênero de modo geral e não específico desta representação – o que não serve como desculpa, mas ajuda a compreender o descuido comum ao período de produção.

A representação dos nativos também é problemática. Os argentinos são pícaros subservientes e alívios cômicos que erram o inglês – o que também é motivo para riso. Por mais que os estereótipos apresentados possam ser verossímeis, falta contextualização. Eles também estão sempre deslumbrados com o “primeiro mundo”. A independência política não é suficiente, há um complexo de colonizado muito forte permeando parte dos personagens do filme. A dependência econômica cria a necessidade de agradar o outro, o chefe americano portador dos dólares. E o povo parece ter sempre motivo para festas e danças, onde vemos excessos de trejeitos, o que é maximizado pelo caráter musical do filme. Essa maneira exótica como eles são construídos banaliza idiossincrasias, planifica-os. Neste filme não há ressalvas e sobram generalizações.

As identidades nacionais são praticamente abolidas e o filme se torna uma estandardização da América Latina, ao invés de falar sobre a Argentina. Serenata Tropical tenta exportar a imagem do país/continente, mas, por fazer de maneira tão desastrosa, apenas colabora com o fortalecimento de equívocos.

É como se para representar algum latino fosse suficiente usar artifícios americanos e envernizá-los com a “ginga” e a “malemolência” nas danças e nas falas, ou juntar aleatoriamente aspectos de vários países da América Latina, projetando às telas tortas representações. Até para o espectador que tem uma bagagem cultural mais vasta, o filme confunde por trazer uma visão deturpada e estranha da Argentina. No saldo final, temos uma feijoada de canções, instrumentos, arquiteturas e impressões latinas, que supostamente seriam apenas um país. Pouco se vê da Argentina sob tal ótica de hacienda mexicana misturada com um açucarado e divertido love story.

O aspecto que mais chama atenção de Serenata Tropical e o tornou motivo de muitas críticas foi a falta de tato nas representações dos argentinos que tanto foi comentada até aqui. Notamos o quanto repetições de estereótipos como estes contribuem para fortalecer padrões opressivos, às vezes aparentemente inexistentes. Eles colaboram para internalizar limitadas imagens dentro do representado, assim como disseminam estas imagens erroneamente. O controle social também ganha mais força, assim como erros de percepção são fortalecidos. (1) Até mesmo quando apenas uma figura é abordada (um gay efeminado, uma negra cômica), a repetição do estereótipo torna o personagem ponto de referência de categorias sociais mais amplas (raça, classe, gênero, nação, orientação sexual). Acaba tomando-se o todo pela parte.

Em grupos periféricos comportamentos são generalizados, deturpados e até informações são trocadas (Buenos Aires como capital do Brasil). Mas, curioso notar que o mesmo não acontece com grupos dominantes. Se as representações das minorias, mesmo que individualizadas num personagem, são alegóricas, nos grupos dominantes as representações são “naturalmente” diversas. “Esses grupos não precisam se preocupar com “distorções e estereótipos”, pois mesmo imagens ocasionalmente negativas fazem parte de um amplo repertório de representações”. (STAM, Robert & SHOHAT, Ella - Estereótipo, realismo e lutar por representação.)

Por mais que comédias tenham tons figurativos e escapistas, onde o artifício é necessário e liberdades poéticas compreendidas, existe uma obsessão com o “realismo”, naquilo que é visto e ouvido. As pessoas questionam filmes a partir de suas verdades culturais e pessoais, só que materiais cinematográficos também constroem esse repertório. Dessa forma, uma representação (imagética, sonora) errônea ou limitada, mas aparentemente verossímil, deve criar uma noção incorreta para o espectador.

“... ficções cinematográficas inevitavelmente trazem à tona visões da vida real não apenas sobre o tempo e o espaço, mas também sobre relações sociais e culturais.” (STAM, Robert & SHOHAT, Ella - Estereótipo, realismo e lutar por representação)

Vemos claramente em Serenata Tropical uma representação infeliz de cultura e de relações sociais por um meio que aparentemente não mente (lembremos do realismo de Bazin): o cinematográfico (ele trabalha com imagens apreendidas do “real”, então não trata de inverdades, oras!). A infelicidade deste filme foi justamente nesse aspecto, escancarar a falta de zelo e a artificialidade da representação, que pouco tinha de real além dos atores. Ele pode até ter convencido espectadores americanos, que, majoritariamente, não deveria ter bagagem cultural sobre a Argentina, o que dificulta a percepção destes discursos preconceituosos e estereotipantes. Mas para a platéia argentina, e provavelmente seus vizinhos, a falta de controle sobre sua própria representação e o conteúdo social equivocado foi gritante – problema que atinge tantas outras minorias.
A mediação da câmera também é importante nessa representação. De maneira menos cínica que a mistura visual e sonora na tela, a estrutura narrativa, as convenções de gênero e o estilo cinematográfico ajudam ou freiam o fortalecimento dos estereótipos. Em Serenata Tropical, logo percebemos quem mais recebe atenção da câmera: os mocinhos Diego Quintana e Glenda Crawford. O ponto de vista sobre a história é deles e, mesmo numa comédia, são eles os personagens “sentimentalizados”. Os hermanos são peças decorativas. A perspectiva do diretor é clara.
Embora a política de escolha de elenco aponte os valores que o filme quer propagar (semelhante ao star system, pensemos nas personas que costumam fazer mocinhos, vilões, coadjuvantes), pensar que escolhas de atores de minorias para o elenco principal resolveria o problema de estereótipos e preconceitos é ingenuidade.

“A questão, quase literalmente, não é tanto a cor do rosto que aparece na imagem, mas a voz social real ou figurativa que fala “através” da imagem.” (STAM, Robert & SHOHAT, Ella - Estereótipo, realismo e lutar por representação)

Da mesma forma, nada adianta se a estrutura narrativa e as estratégias cinematográficas permanecem de grupos dominantes. Novamente nas palavras de STAM e SHOHAT, “um rosto epidermicamente correto não garante a representação de uma comunidade”. Também não vale a pena fazer um cinema de “imagens positivas” para que ele seja uma “máscara de perfeição”, ele irá soar tão falso quanto a arquitetura argentina de Serenata Tropical.

O que se sentiu foi a necessidade de auto-representação. O retrato unidimensional dos terceiro-mundistas e grupos de minoria por parte dos “dominantes” vem se tornando menos estereotipado e mais plural, visto o desenvolvimento da tecnologia cinematográfica e o fácil alcance a elas por parte dos que sempre ficaram à margem. A conscientização e erros escatológicos como os de Serenata Tropical já são pensados e evitados, mesmo que nem sempre seja com sucesso. É importante utilizar o cinema também (mas não apenas) como ferramenta social, preocupada em não errar na hora de falar sobre o outro.

Comédia-musical sem grandes pretensões além das mercadológicas, Serenata Tropical acabou gerando todas essas discussões acima. Mas, vale fechar um texto com um último comentário sobre o filme. Mesmo com todos os seus problemas, o filme ainda é uma leve e deliciosa comédia hollywoodiana de ares exóticos. É necessário não julgar as diversas questões fílmicas e extrafílmicas nesse tipo de obra para uma melhor apreciação, apenas deixar-se levar. Mas, quando ele acabar, não devemos deixar de lado as tantas interpretações que o filme suscita. Além do mais, é sempre bom ver Carmen Miranda.


NOTA:
(1) Curioso notar que ainda hoje no cinema brasileiro isso é um fato recorrente. Recente, o filme V.I.P.s traz uma representação do carnaval recifense de maneira pouco congruente. Estrelado por Wagner Moura e claramente desenvolvido no eixo Rio-São Paulo, além de premiado na mesma região, fica claro que o cinema contemporâneo, mesmo que nacional e de um país periférico, ainda tem problemas para enxergar determinados locais, principalmente aqueles “à margem da margem”. Então, este problema não é apenas localizado no período ou nacionalidade de um filme como Serenata Tropical.

“O Anjo Exterminador” (El Angel Exterminador, 1962), por Tarciso Rodrigues


Na rua da providência, numa suntuosa mansão, burgueses mexicanos se reúnem para um jantar após terem assistido a uma ópera. Estranhamente, os empregados decidem deixar a casa mesmo antes de o jantar ser servido, um a um, ficando apenas um, de comportamento arrogante, para servir os convidados. Durante a reunião, os personagens comem, bebem, ouvem músicas e conversam entre si, até o momento em que se cansam e decidem ir para as suas casas. Mas é aí que algo acontece, pois algum fenômeno estranho os impede de saírem daquele ambiente. Toda essa atmosfera dá vida a uma das obras cinematográficas que melhor desenvolveu a temática da crítica social no cinema: O Anjo Exterminador.

Já durante o jantar, os diálogos deixam clara a forma desprezível como aquelas pessoas se veem, e veem os desfavorecidos. No momento em que um dos personagens faz um comentário sobre uma das mulheres presentes naquele salão, que está com câncer – e brinca com a possibilidade de sua morte. Esta cena, entre outras, mostra que, apesar de serem pessoas “intelectuais” e “evoluídas”, falta nelas um comportamento mais humano na relação ao próximo. E, no desenvolver da trama, a situação só piora, pois o tal fenômeno põe essas pessoas cada vez mais em prova. Quando começam a faltar os suprimentos e até mesmo água, fatores que contribuem para a desordem, os personagens começam a demonstrar um comportamento agressivo uns com os outros chegando até à violência física, com isso, assemelhando-se a um comportamento bárbaro, e dessa forma, revelando a verdadeira personalidade primitiva de cada uma daquelas pessoas. O status social, as vestimentas e o fino trato apenas serviam como uma capa que encobria toda barbárie intrínseca ao comportamento delas.

Quanto aos aspectos técnicos e estilísticos da obra, destacam-se os enquadramentos dados pela fotografia. Totalmente inspirada na fotografia neorrealista, os planos conjuntos são uma constante, há uma quase ausência de plano e contra plano, onde toda narrativa é exposta de forma bastante simples. Os diálogos quase sempre são feitos em um único enquadramento, seguidos de planos abertos e do uso da profundidade de campo também como elemento narrativo. Segundo André Bazin, esse estilo de fotografar, que foi muito usado no Neorrealismo, ajuda a passar um sentido mais “verdadeiro” ao tema abordado. Outro detalhe importante da fotografia à narrativa está no uso da câmera em movimento lateral, apresentando cada personagem ao telespectador, essa opção técnica também da uma impressão de que a câmera é o próprio Anjo Exterminador observando o comportamento desprezível de cada um dos personagens presentes naquela reunião. É também como se nós, os telespectadores, assumíssemos a posição do próprio Anjo em seu julgamento.

Este filme do diretor Luis Buñuel também utiliza muitos elementos que sinalizam a sua autoria como cineasta, e não poderia ser diferente. Nos momentos de delírio das personagens, na mão que circula pela casa, num urso como animal de estimação, ou até mesmo em pés de galinha que servem como amuletos, elementos que lembram o surrealismo, mas que não são componentes surrealistas no enredo, pois eles servem para compor a narrativa e não estão soltos como elementos não diegéticos, na maioria das vezes, eles tem a função de indicar o desnorteio daquelas pessoas. A forte crítica social e religiosa também está muito presente nesta obra. E, neste caso, de forma brilhante. O roteiro, muito bem elaborado, desenvolve-se de forma satisfatória na questão do bloqueio que as pessoas sentem ao tentar sair da casa, e nas desculpas que elas mesmas se dão para isso – percebe-se que nem elas entendem o motivo que as faz continuar naquele confinamento, que as inserem em uma espécie de jogo da moral e do comportamento humano. Mas é, principalmente no momento do desfecho da trama, que o roteiro atinge a sua proeminência, pois ele traz ao telespectador uma profunda reflexão quanto às instituições dominantes da sociedade, a forma desumana como elas tratam o problema da desigualdade e consequentemente da falta de oportunidade que acontece com muitos.

O Anjo Exterminador, analisado sob todos os aspectos, firma-se na cinematografia como uma das obras mais importantes, pois, juntamente a filmes como Laranja Mecânica e Dogville, entre outros, ele se destaca tanto pela qualidade técnica e artística quanto pela denúncia às mazelas que constituem a sociedade. O lado negro da maioria dessas obras é que elas são produzidas dentro de uma narrativa que só se faz entender pelas pessoas de um nível cultural mais elevado, e dessa forma, elas não chegam ao entendimento daqueles que realmente necessitam compreender como funciona esse sistema complexo e manipulador chamado sociedade. E são, exatamente, essas pessoas que sustentam a grande base da pirâmide social, com muito suor e trabalho, mas, ao mesmo tempo, com muito pouco conhecimento.

"Os esquecidos", de Luis Buñuel, por Iara Ximenes


Filme com influências neo-realistas italianas, sem muitos romantismos, apenas a verdade nua e crua de crianças e adolescentes delinqüentes que vivem em uma situação de miséria.

O filme “Os Esquecidos” conta a história de um grupo de meninos e adolescentes que vivem na pobreza e passam seus dias roubando e pregando peças na rua. Jaibo é o rapaz que sai do reformatório e volta a viver nas ruas. Ele e Pedro são os personagens que vão dar início as confusões da trama, quando Jaibo mata Julian e Pedro, estando ao seu lado no momento, sente-se cúmplice do assassinato.

O tema da delinqüência infantil e juvenil é bastante recorrente no cinema latino-americano (apesar de causar comoções e espantos à platéia), pois retrata a realidade daquela época, quando crianças e adolescentes deixavam suas casas para irem morar nas ruas. Como por exemplo, no caso de Pedro, no filme, ele era um menino bom, mas saiu de casa, pois não se sentia amado por sua mãe, sentia falta de carinho.

Já, mais ou menos, na metade do filme, fica mais presente a ideia de que o personagem principal da história é Pedro; uma vez que ela gira em torno de sua preocupação, culpa, de sua família e principalmente do rumo que sua vida leva.
Durante o filme, a presença da mulher é forte, tanto na, já mencionada, mãe de Pedro, como na personagem Meche. As duas são tratadas, pelos próprios personagens do filme, como aquelas que servem apenas para divertimento, como é mostrado quando Jaibo brinca com Meche ou com a mãe de Pedro. Mas, as duas tem uma característica em comum que é levantada, discretamente, no filme: a força dessas mulheres, que precisam trabalhar para conseguirem o que quer e sustentar sua família em momentos de pobreza.

É possível perceber também, a influência da escola surrealista, por exemplo, no sonho de Pedro. Ele, se sentindo culpado por ser cúmplice de um crime, tem sonhos em que vemos certo tipo de transcendência e aparição de imagens simbólicas. Essas não fariam sentido, a não ser em um sonho, uma vez que este também é um tema muito abordado nas obras surrealistas. Essa referência é uma volta ao seu estilo anterior, quando Buñuel trabalhava com Salvador Dalí e dirigia filmes como “Um Cão Andaluz”, de cunho completamente surrealista.

Luis Buñuel dirigiu “Os Esquecidos” em sua fase mexicana. Buñuel, nascido na Espanha, muda-se para os EUA, em 1936, quando a guerra civil espanhola se instala. Em 46, Buñuel vai para o México, onde realiza alguns filmes comerciais antes de “Os Esquecidos” em 1950. O filme não agrada ao público, mas é muito bem recebido pela crítica, que coloca Buñuel de novo na lista de cineastas de primeira classe e lhe dá o prêmio de Melhor Diretor no Festival de Cannes. Falece aos 83 anos, vítima de câncer no fígado e no pâncreas, na Cidade do México.

Maria Candelária, por Yuska Ferreira


Maria Candelária, feito em 1944, é um dos filmes que melhor representa a época de ouro do cinema mexicano. A década de 40 foi um período significante na produção cinematográfica no país, o governo mexicano voltou os olhos para o cinema, criando inclusive o banco cinematográfico, mas muito desse sucesso se deve também à ''ajuda'' dos Estados Unidos que forneceram empréstimo diretamente a industria cinematográfica, além de equipamento e técnicos, por motivos também diplomáticos devido a segunda guerra. Pode- se dizer que o México nesse período foi o país de maior destaque cinematográfico na América Latina

Ao ser indagado por um de seus quadros, o pintor interpretado por Alberto Galán começa a contar a história acontecida em um pequeno povoado mexicano, e tem como protagonista a bela Maria Candelária, interpretada por Dolores Del Rio, atriz mexicana que é símbolo da fase de ouro do paíss, com sua beleza admirável que também em Hollywood fez muitos filmes de sucesso como : Sangue por Glória, Dança Rubra e Ouro.

Maria Candelária vive sozinha no lago de Xochimilco, condenada pelo seu povo por ser filha de uma mulher que fora prostituta, vive na pobreza, romantizava no melodrama, é dona de todas as virtudes, vive da venda de flores, anda descalça,fiel a igreja, sempre pedindo ajuda ao padre , quer se casar com seu grande amor, é odiada por todos da cidade , tem uma antagonista e sofre muito. Perfil de um personagem idealizado. Maria muitas vezes recorre à virgem de Guadalupe, grande símbolo da fé mexicana e chega a ser quase comparada com ela, com uma espécie de manto na cabeça, assim como a santa, temos alguns planos que intercalam a face de Maria candelária e a imagem da Santa Guadalupe.

Junto com seu noivo Rafael Lorenzo, o casal é símbolo do povo indígena. Até então no cinema o México era praticamente representado em Hollywood como um povo preguiçoso e aproveitador, e o filme Maria candelária apesar de melodramático e maniqueísta, apresenta o México pelos mexicanos, tocando no aspecto político muito importante , o preconceito, mostrando assim como o estrangeiro colonizador era visto, no filme representado pelo pintor,e de como o indígena era visto. O filme apresenta a salvação do povo mexicano, e mostra o indígena, personificado por Marica Candelária, como um povo puro, verdadeiro, trabalhador. O próprio noivo da protagonista só rouba pra salvar a vida de sua amada, que mantém seu amor sempre fiel a ele, e que acabam sendo condenado pela sociedade injustamente, uma prova desse ideal de povo indígena mostrado na película, daquele povo que nunca se corrompe. A Igreja católica é vista como aquela que quer trazer o equilíbrio, e vem ajudar as pessoas.

A trilha sonora é composta por Francisco Dominguez, o fotografo Gabriel Figueroa trabalha muito bem no filme, fazendo planos emblemáticos que perduram até hoje na memória do cinema, e junto com o diretor Emilio Fernández fazem um dos filmes que criaram a cultura e a narrativa novelesca que existe até hoje, principalmente no México.

Assombrações de uma São Paulo Velha, por Diogo Marcos Testa



Meu avô paterno, Antonio Moldes Testa, veio da Espanha, de Granada, para São Paulo com quatro anos de idade. Namorou e casou com minha avó, Iraci Pinto Moldes Testa, a cortejando pela janela. Descendente de Italianos, José Sebrian Marcos, meu avô materno, casou com minha avó, Maria Aparecida Zerrener Marcos, descendente de Alemães, igualmente a cortejando da janela.

De volta ao meu avô paterno, o Espanha, como era chamado em todos os comércios que teve ao longo da vida: dono de botequim, vendedor de móveis usados, carreteiro e açougueiro, assim como Mazzaropi naquele filme "A filha do açougueiro", de 1961. Inclusive meu avô também tinha o hábito, que meus tios detestavam, de aumentar umas cervejas na conta dos vagabundos do botequim assim como Gustavo, a personagem interpretada por Mazzaropi, extorque do dono do cachorro que estragou sua lingüiça um preço mais alto que o valor real da mercadoria.

Hoje em minha cabeça, a imagem de São Paulo como a megalópole que é ofusca uma lembrança muito antiga, da minha infância, que ainda é pertinente; a lembrança do centro suburbano, dos bairros dos operários e comerciantes, como as personagens retratadas no filme, que não por coincidência residem num cortiço chamado "rua da fábrica" e que Mazzaropi faz o favor de escrever embaixo, a giz, quando está sozinho em quadro "da fábrica de linguissa", assim mesmo, com dois 'ss'. Erro gramatical ou português arcaico? Mario de Andrade se deliciaria com a contribuição milenar de nossos erros.

Ismail Xavier, teórico de cinema, chegou a insinuar o melodrama como um gênero do pobre ou do subdesenvolvido por excelência, se não chegou a tanto ao menos se fascinou pela sua apropriação no cinema abaixo do trópico de câncer. O melodrama permite algumas coisas que o drama sério não permite; o traço que gostaria de ressaltar é o exagero, que não é senão um traço de diferenciação, pois por dedução posso concluir que para existir o exagero é preciso uma diferença gritante de comportamento, todas as contradições existentes entre riso e no choro das máscaras da tragédia grega. Tais diferenças exageradas não são vistas por bons olhos em sociedades, em última análise preconceituosas, que fundaram sua imagem na homogeneidade enquanto escanteiam sua alteridade ao silêncio. Algo impensável num país como o Brasil, que mesmo fundado pela colonização européia é um país essencialmente mulato, e digo mulato porque miscigenado. A prova que apresento é simples: se juntarmos os europeus todinhos: portugueses, holandeses, espanhóis, franceses, alemães, italianos, etc.; e separarmos desses apenas os que não fizeram o favor de ter filhos com africanos e índios e colocarmos esse povo ao lado dos negros e mestiços desse país ficaria óbvio que os brancos constituem, essencialmente, uma minoria.

Faço uma comparação com dois outros filmes: Psycho de Alfred Hithcock (1960) e Le Boucher, de Chabrol (1970), ambos focados na figura de um açougueiro, assim como o Gustavo de Mazzaropi. No filme de Hithcock, inglês de humor negro, o protagonista subjuga a mulher e a fatia como pedaço de carne. Além, a alteridade de classes sociais é homogênea, tanto serial killer quanto vítima tem a mesma dignidade, independente de sua condição financeira; o que poderia ser, em última análise, inverossímil. No filme de Chabrol o jogo se inverte e é a mulher que subjuga o desejo do homem e o leva, entre ambigüidades, a tornar-se um assassino; a diferença de classes do açougueiro para a professora é visível, entretanto, pasteurizada.

Quanto ao açougueiro de Mazzaropi, mata ninguém coitado, não subjuga, não impõe de forma direta; na melhor tradição do píncaro que insistentemente se repete na identidade nacional engana todo mundo e encerra seu conflito sem encarar de frente os mitos do sexo e da morte, tão caros à narrativa séria.

Além, o melodrama favorece um clichê fundamental para se trabalhar as diferenças: a família rica que se interpõe contra o casamento com a família pobre, ou seja, uma metáfora que em seu tempo foi poderosa em prol da miscigenação das classes. É possível no filme ver os cortiços e residências luxuosas da megalópole e a paisagem turística em contraste com os farofeiros de santos. Mesmo que os farofeiros ainda persistam enquanto a paisagem turística do que um dia foi uma bela praia, hoje nem tanto. Esse clichê obriga o espectador a ouvir ambos os lados do jogo das desigualdades - a avareza e miséria da opulência, a alegria e caridade dos ingênuos, o peso econômico das relações humanas, as atitudes de delinqüência dos marginalizados e negligência dos proprietários. Me agrada que neste filme em particular essas relações não sejam impositivas, mostrando as dupla face em ambos os lados da moeda.

Ainda que pela lógica dos afetos esteja apegado ao filme, que me traz a mesma sensação das músicas de Adoniran Barbosa, a quem presto aqui minha homenagem, é preciso atualizar o olhar sobre o gênero, que encontra desdobramentos até meados dos anos 70 em três figuras icônicas da paródia como forma subdesenvolvida de protesto: Mazzaropi, Oscarito e Grande Otelo.

A primeira questão é de geração - mesmo que nos seja inescapável a figura do píncaro, idéia da qual não compartilho, mas que aceito; a ingenuidade clownesca já me soa um tanto cafona e perniciosa, afinal, todas as diferenças entre Charles Chaplin e Adam Sandler. Assim como no filme o sotaque caipira de Gustavo contrasta com o linguajar suburbano de seu filho, que já diz em 1960 coisas que cansei de ouvir em minha adolescência, trinta anos depois, como o clássico "pô meu".

Outro mito que caí por terra e que o cinema brasileiro já esboça reconhecer é a instituição do casamento nos tempos do divórcio. Mito que já é retrabalhado, de uns tempos pra cá, no gênero da comédia romântica norte americana, que aliás, não é mais que um nome sério para o melodrama dos colonizados.

Em tempos onde a identidade é construída na miscigenação de Freud, Buda e Facebook a tradição do melodrama abaixo do trópico de câncer oferece as mais diversas oportunidades para complicar uma situação que se vista preto no branco, apenas favorece um discurso de subordinação a culturas e identidades. Faço aqui um apelo: a ditadura já caiu, o país já se diz rico, terminemos essa briga e esse olhar que nos divide daqueles que nos exploraram e nos exploram. Afirmemos-nos nós próprios como exploradores e explorados, de mesma e complexa estatura em tempos globalização. Há um perigo em ainda nos vermos nos velhos boleros cantados no filme e que eu tanto escutava na radiola de minha avó. Ou o malandro vira um empreendedor, um cult ou qualquer ícone para revitalizar o gênero ou temo, ele (ou nós que gostamos tanto de nos ver nele) estará relegado a ser o que tem sido: caipira e peça de museu.

Uma breve história do intelectual nos movimentos esquerdistas da segunda metade do século XXI, por Renan Brito



Saber se a vida vale a pena ou não ser vivida é a grande questão filosófica (e, então, por quê ideais viver). Como lembrou Camus em seu livro O Mito de Sísifo, Galileu, ao se ver diante da Inquisição, prestes a ser condenado à fogueira, negou todas as suas teorias, todas as verdades científicas a que tinha chegado. Do mesmo jeito, Sergio, protagonista de Memórias do Subdesenvolvimento (1968), ao se ver diante de um tribunal, acusado de molestar uma menor, deixa-se fraquejar, perde a compostura, inclina-se humildemente perante seus inquisidores. Sergio, ao contrário de Galileu, não tinha qualquer teoria, verdade científica ou ideal para defender, somente sua vida, sua liberdade, o que, afinal de contas, são propriedades que os assemelham. Sergio, figura emblema de uma burguesia decadente (à beira da extinção? na iminência do golpe socialista em Cuba), ostenta uma inteligência assídua e um subjacente desprezo pela coletividade. Acompanha debates políticos em mesas redondas, visita a casa onde Hemingway morou durante seus anos em Cuba, demonstra grande capacidade crítica e uma notável bagagem cultural e intelectual. Abandonado, ou decidido a permanecer só (por força de um imperativo tácito que ele mesmo desconhece, ou talvez só por curiosidade) em sua terra natal, quando toda a sua classe burguesa fugia do país, Sergio mergulha numa degeneradora crise existencial. Em resumo, é uma espécie de steppenwolf, um lobo solitário, tentando se distrair do tédio, ao mesmo tempo em que reflete sobre a situação atual do país, sem compromissos nem arroubos (ao contrário dos personagens de outro cineasta, Glauber Rocha, que também discutiu o tema do intelectual na vida política de um país) e procurando respostas que provavelmente não encontrará.

Durante as décadas de 1960, 1970, a América Latina talvez tenha levado sua linguagem e técnica artísticas ao ápice do experimentalismo; talvez, até, tenha firmado uma linguagem própria, uma linguagem terceiromundista. Apesar de diversos os regimes entre os países (ditadura militar no Brasil, regime socialista em Cuba, para sermos específicos), havia um sentimento revolucionário compartilhado e uma condição de subdesenvolvido, os quais os intelectuais não só admitiam como assumiam em favor de uma linguagem terceiromundista. Artistas desempenhavam o papel de interlocutor do povo, assumiam uma voz alicerçada no discurso de seus próprios diagnósticos de ares sociológicos. Glauber Rocha e seu cinema de alegorias e euforias verborrágicas, um grande articulador que, em meio a tantos artistas jovens e audaciosos, coagulou muitas das teorias a cerca do Terceiro Mundo. Nesse sentido, talvez Memórias do Subdesenvolvimento não tenha mérito, pois Alea não pretendia diagnosticar a situação de um país, mas ao menos propor um impasse quanto ao delírio coletivo que se alastrava em Cuba (e no Brasil? Ou só no cinema de Glauber?). Em uma cena, Sergio diz: “Em outra época talvez tivesse entendido o que está acontecendo aqui. Hoje já não dá”. Alea não tinha pretensões sociológicas.

Alea, portanto, não cedeu às exigências de um momento histórico premente que recomendava o posicionamento e a consequente ação do intelectual, ou do indivíduo, no meio político, na vida social. Pelo contrário, conjecturou um grande impasse diante dos rumos da História. Sergio é um intelectual hesitante, quase inerte. Suas críticas são puramente intelectuais, não passam do abstrato, mas ele não se dirige ao regime que está se firmando no seu país, não diretamente. Ele critica principalmente sua própria classe, a mesquinhez dos seus amigos, da sua família, da sua esposa. Nesse sentido, Memórias é um filme autocorrosivo. Sua crítica não aponta para as super-estruturas, mas para sua própria estrutura interna. Não é um Glauber com desejos totalizantes, megalômanos, mas um burguês solitário. Quando Sergio fala das massas, quando critica a nova conjetura que favorece o povo – o povo não tanto em seu sentido concreto, mas em termos de elemento de um discurso socialista premeditado, (“tudo é o povo, agora”, ele diz) – Sergio não o faz somente para apontar o equívoco dos ostentadores de tal discurso, mas também para denunciar seu egocentrismo e individualismo. Em várias passagens, Sergio deixa entrever certo desprezo pelas massas, ainda que tenha decidido permanecer no país naquele momento desfavorável para pessoas da sua classe. Sua atitude crítica o eleva a outro nível que não o do povo, não para assumir uma voz que o representa, um sofrimento e uma miséria que são coletivos, mas para acentuar, com certa denúncia, inclusive, seu caráter individual e sua mesquinhez. Em Glauber, o intelectual, o poeta Paulo Martins de Terra em Transe, carrega um fardo que lhe é inato. Seu sofrimento é pretensamente o sofrimento do povo, e tal grandeza serve para acentuar-lhe o caráter trágico, grandiloqüente, que caracteriza a obra de Glauber.

Se em Terra em Transe (1967) Glauber expressa com amargura sua decepção quanto ao Golpe Militar, depois de toda euforia que surgia com o Cinema Novo e suas propostas, em certo sentido, podemos comparar o poeta Paulo ao escritor do romance que deu origem ao filme Memórias do Subdesenvolvimento, Edmundo Desnoes, aquele que se faz presente na mesa redonda, em determinado momento do filme, e o qual Sergio ironiza (numa brincadeira feita pelo filme). Pois Paulo também negou as massas. Na cena em que tapa a boca de um operário e diz: “Isto é o povo! Um imbecil! Um analfabeto! Um despolitizado!”, Paulo Martins não só demonstra sua decepção em relação à força e energia libertárias do povo, mas também decreta a falência do populismo. Paulo Martins, então, desconfia dos líderes populistas, mas não os abandona de imediato. Terra em Transe teve parte de seu impacto, pelo menos no meio intelectual e estudantil (já que o filme, naturalmente, não foi distribuído em larga escala), exatamente por essa condenação proferida por Paulo Martins. Ainda assim, o filme de Glauber não se vira completamente para o poeta e seu caráter individual. Paulo Martins está decepcionado, cansado, mas sua angústia insiste em reclamar para si o sofrimento do povo. Edmundo Desnoes, no filme, também debatedor na mesa redonda, acende um charuto, no meio de uma discussão maçante. Sergio, em pensamento, diz, “E você, o que faz aí em cima com esse charuto? Sem concorrentes. Deve se sentir muito importante. Fora de Cuba, não seria ninguém... Mas aqui estás situado”. Edmundo, assim como Paulo Martins, promoveram também um grande impasse diante do delírio do povo.

“A morte como fé, não como temor”, recomenda Paulo Martins ao povo alquebrado de seu país, um povo sem vigor, despreparado para a revolução. Por isso a decepção de Paulo Martins; diante das injustiças, seu povo está inerte. Mas eu retomo aqui a afirmação de Albert Camus, saber se a vida vale a pena ou não ser vivida é a grande questão filosófica – e complemento: e também política. Quando Paulo Martins perde o apoio da grande mídia e é aconselhado a abandonar seus projetos, Paulo se nega a fazê-lo, mesmo que não esteja firme em seus ideais. “Não me interessa sua moral. Me interessa a sua vida”, responde-lhe o amigo Alvarez. Mas Paulo Martins insiste na ilusão de sua liberdade, “o que interessa é que eu me libertei”. Ao contrário de Paulo Martins, que vai em frente com seu projeto, quase que por orgulho, ou porque já não há mais volta, Alvarez se mata, não por uma ideologia, mas pela falta dela.

Eis uma pequena história do intelectual no contexto das grandes revoluções (no que há de mudanças e de reviravoltas na História). Para problematizar o momento, Camus talvez seja essencial, não só para as circunstâncias políticas, mas para a própria existência do homem. Sergio, em Memórias, é o retrato do homem em decadência porque perdeu suas referências. É, talvez, um retrato datado, devido ao esgotamento do existencialismo. Mas ao menos é um filme que propõe algo impensável para a época, a hesitação. Quanto a Glauber Rocha, abordado aqui não só pelo tema do intelectual, mas pelo que há de totalizante em sua obra, em termos de seu projeto para a América Latina e o Terceiro Mundo em geral, cabe-lhe a exasperação desse impasse, mas não, nunca a permanência nele. Na sequência final, exasperada pelo ruído de armas, Paulo Martins, o poeta, segura uma arma. Já algumas vezes havia sugerido a luta através das armas, mas o desfecho do filme ratifica tal discurso. Mas talvez nem mesmo Paulo saiba o que está fazendo, talvez esteja apenas seguindo em frente, numa crise que não é apenas ideológica, mas existencial, o que nos faz reportar a Camus, novamente. “Já lhe disse várias vezes que dentro da massa existe o homem. E o homem é difícil de se dominar. Mais difícil do que a massa”, retificando o que dissera antes, talvez Paulo Martins não carregasse o sofrimento do povo, mas a angústia do homem. Camus, novamente.

Referências:
XAVIER, Ismail. Glauber Rocha: o desejo da História. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo, Paz e Terra, 2006.
RAMOS, Alcides Freire. TERRA EM TRANSE (1967, GLAUBER ROCHA): ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E NOVAS PERSPECTIVAS DE INTERPRETAÇÃO. Revista de História e Estudos Culturais. 2006, vol. 3, ano III, n°2.

"Maria Candelária e a tradição latino-americana do melodrama", por Leandro Gantois


O filme mexicano “Maria Candelária” (1944) do cineasta Emilio Fernandez simboliza o auge da Era de Ouro do cinema no México, iniciado na década de 30. Com grande sucesso de público e crítica dentro e fora do país, inclusive tendo recebido o prêmio máximo no Festival de Cannes, a obra apresenta mais que um simples melodrama sobre uma heroína indígena pobre, mas certa tradição da cultura latino-americana em utilizar o melodrama como forma de representar seu passado e os problemas sociais enfrentados pelo povo.

Produzido dentro de um star-system, com atores de grande apelo popular como a Dolores Del Rio e o Pedro Armendáriz, “Maria Candelária” tenta criar uma nova imagem do povo mexicano, tantas vezes tratada com estereótipos na filmografia norte-americana. A personagem-título é quase uma recriação do modelo romântico do bom selvagem de Rousseau, simbolizando o próprio México em uma visão idealizada. A heroína ainda lembra a protagonista Hester Prynne do romance americano “A Letra Escarlate” (1850) de Nathaniel Hawthorne, ao ser julgada pelo puritanismo da cidade na qual vive.

A obra, dessa maneira, sintetiza a necessidade do México ser representado e ser visto através de um novo olhar. O melodrama assume então o ideal romântico e épico no imaginário popular. Como bem observa o teórico colombiano Jesús Martin-Barbero, “o melodrama tem um parentesco muito forte, estrutural, com a narração. Seguindo essas pistas (...) os esquematismos e os estereótipos tem por função permitir a relação da experiência com os arquétipos”. E a estrutura dramática do melodrama está presente em “Maria Candelária” através de quatro personagens identificados por Barbero: o Traidor, o Justiceiro, a Vítima e o Bobo.

Na visão de Barbero, existe um diálogo entre as massas e a indústria cultural: “o melodrama pode conter uma certa forma de dizer das tensões e dos conflitos sociais”, embora o teórico faça um alerta sobre a possibilidade de homogeneização do discurso. A saga de Maria Candelária e de Lorenzo Rafael é na verdade a própria representação imagética do México através de uma ótica épica e melodramática. O casal de protagonistas, inclusive, pode recordar aos espectadores do século XXI, personagens de telenovelas mexicanas exportadas com sucesso para o Brasil na década de 90. Embora tais produções estejam mais próximas do exagero e do frívolo.

A própria tradição e sucesso do folhetim na América Latina dialogam com a índia Maria Candelária. No Brasil, por exemplo, a forte produção em ritmo industrial de novelas, por vezes, tentou representar o povo brasileiro na televisão. Obras como “Roque Santeiro” (1985) e “Vale Tudo” (1988) construíram personagens representativos e com grande apelo cultural. As duas telenovelas acabaram se transformando em símbolos massivos brasileiros do período da redemocratização do país na década de 80. Como Barbero, novamente observa, o melodrama é o momento poético dos excluídos.

“Maria Candelária” mais do que construir um melodrama, representa e exporta um novo olhar sobre o México, alcançando e formando público em classes mais baixas por meio de sua estrutura dramática. E a condição periférica dos países da América Latina explica a fácil aceitação do gênero na população, como analisa a ensaísta e professora Marlyse Meyer: “com o tempo, esse universo romanesco (...) teria alcançado aquelas classes subalternas, as historicamente exploradas e sofridas massas da América Latina”. Para Meyer, a situação econômica latina é a resposta na tentativa de entender a tradição do melodrama.

“Não é de espantar portanto a fácil aclimatação nesses países, onde "a desgraça pouca é bobagem", de um gênero romanesco que, além de cativar pelas engenhosas tramas, tematizava subcondições de vida e exacerbadas relações pessoais e familiares, desenvolvia um paroxismo de situações e sentimentos mal canalizados por uma mensagem conservadora que se desejava conciliadora, mas não apagava totalmente seu valor de denúncia e cultivava uma forma de sobressalto narrativo a mimetizar o sobressalto vivido, amenizando-o pela magia da ficção”. ¹

“Maria Candelária” se torna, assim sendo, um bom exemplar da necessidade de um povo assistir suas próprias representações no cinema. Interpretar os problemas de sua sociedade e o contexto histórico no qual está inserido. Além de mostrar um sucesso na tentativa de consolidação de uma produção em ritmo industrial. A película mais do que apenas mostrar a jornada de uma heroína em um drama sem fim, é a oportunidade de toda uma sociedade com um histórico de limitações econômicas de se enxergar imageticamente.

Referências Bibliográficas:

¹ MEYER, Marlyse. Folhetim – uma história. Companhia das Letras, São Paulo, 1996
BARBERO, Jesús-Martin. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Editora UFRJ, Rio de Janeiro, 1997

"O anjo exterminador", por Rebecca Cirya


O anjo exterminador, Luis Buñuel (1962), é o último filme da fase mexicana do diretor. O filme instiga o expectador a refletir sobre o animal-homem. Aparentemente com um enredo simples o filme abusa de simbologias ao contar uma ficção-surrealista. Após a ópera algumas pessoas da alta sociedade são convidadas para jantar na casa de um rico aristocrata, entretanto situações estranhas acontecem durante e após o jantar.

A educação da elite, as normas de etiqueta, a forma sutil de fazer perguntas indiscretas e também de agredir são bem apresentas por Buñuel num primeiro ato. Na cena onde o guisado Maltês é derrubado no chão, piadinhas como: “Estava delicioso” ou “Luzia tem um charme especial! Nem todos sabem fazer esse tipo de surpresa.” demonstram com clareza a ironia perversa da sociedade elitizada, eufemizada por risos.

O surrealismo começa quando de maneira inexplicada os empregados deixam a casa, ficando apenas o mordomo (a permanência proposital desse servente mostra a existência de uma classe ou de pessoas que se submetem aos insultos e as hipocrisias da alta sociedade sem reclamar). O mais estranho e surreal é que após o jantar ninguém manifesta interesse em ir para casa e acabam por dormir na sala, infringindo assim as regras de etiqueta. Na manhã seguinte algumas pessoas começam a notar que mesmo que aja o interesse de sair do salão não o fazem como se houvesse uma porta invisível que os impedissem de sair.

Aprisionados em um salão e expostos a uma situação limite as pessoas deixam de lado os bons costumes e apresentam-se como animais irracionais e dispostos a tudo pela sobrevivência. Cada pessoa se apresenta como realmente é com suas manias e defeitos. Um casal prefere se isolar no armário e viver distante do caos instalado no ambiente (esse tipo de atitude reflete a forma como algumas pessoas preferem viver um mundo particular, isolando-se da realidade). Outros se entregam as loucuras e devaneios, vivendo presos em seus medos. Alguns procuram um culpado e outros ajudam a manter a ordem e decência.

Quando se acabam a água e a comida as pessoas que antes comiam caviar e bebiam vinho se veem obrigadas a tomar água da encanação e comer papel. Na cena onde os homens perfuram a parede em busca de um cano contendo água, o instinto de sobrevivência animal que existe em cada ser humano vem à tona, não existe mais a cordialidade de primeiro servir as mulheres ou doentes, cada um quer ser o primeiro.

Passados alguns dias a casa vira alvo da publicidade, pois ninguém consegue entrar na casa (empregados, filhos, maridos, polícia). Dentro do salão o caos só piora, pois até um morto se encontra entre eles, manter a racionalidade é quase impossível. A câmera atua como um expectador que analisa as diversas reações diante da situação de pânico.

O anjo exterminador seria a força maior que extermina as máscaras para que possa aparecer o verdadeiro “eu” das pessoas. Quando as máscaras caem aparece o animal-homem que despido de hipocrisia e educação apresenta-se frágil e irracional, sem pudor. O salão (prisão) serve como laboratório, onde são feitas diversas experiências com o animal-homem para averiguar as possíveis reações diante de uma situação limite.

Buñuel critica não apenas a burguesia, mas o homem como todo e na cena final deixa claro uma critica a igreja. Oque aconteceria se as pessoas que pregam paz, amor, compaixão se encontrassem na mesma situação limite? Não seria muito diferente do ocorrido no salão dos burgueses. Um filme como esse não pode ter explicações ou conclusões objetivas, toda interpretação é subjetiva oque é existe na realidade são especulações, pois cada símbolo presente no filme pode ter mais de uma interpretação. O anjo exterminador propõe sempre novas conclusões, o filme não se esgota. Muito interessante é que o texto narrativo é bem simples, a complexidade encontra-se no subtexto.

Esse não é o único filme que Buñuel critica a moralidade da burguesia ou instituições sociais, em 1971 retomou a mesma critica no filme “O discreto chame da burguesia” com uma roupagem totalmente nova. A grande genialidade de um grande diretor como Buñuel é retomar temas, contando-os de formas diferentes. Sempre comprometido com questões sociais, seus trabalhos são realizados de forma brilhante.

"Os esquecidos", de Luis Buñuel, 1950, por Pedro Coelho


Coitado de Jaibo! Lutou incessantemente pela condição absurda que esmaga não só as crianças pobres das grandes cidades, mas a todos os indivíduos que suportam o peso da humanidade. Sua coragem ilimitada para transcender se perde pela sua falta de pontos de apoio. Como é rápida a transformação de um grande homem em um cruel sociopata.

Pobre de Pedro! Que a vida fez de uma pessoa boa uma pessoa má. Sua confusão e ingenuidade jogou-o direto em um redemoinho sangrento. No reformatório, uma esperança, mas para quem já se sujou sempre é possível ir mais fundo na lama, sem culpa, sem consciência, levado pela força avassaladora do passado. De onde vem a coragem de lutar com Jaibo, duas vezes maior e mais forte?

Mais pena ainda do homem cego! Mais fraco que todos nós, cuja vida desde a nascença obrigou-o a falsa bondade e um quarto escuro escondido nas ruínas e lá dentro busca uma criança ingênua para lavar-lhe o corpo e putrificar-lhe a alma.

Misericórdia de todos nós! Isolados por paredes de concreto e rios caudalosos de automóveis. Sorrindo e se abraçando nos espaços públicos, brindando para esquecer o medo do nada que sentimos dentro dos apartamentos de dentro.

Mas jamais pena de si próprio! Caso contrario todos esses sentimentos terão sido em vão. Lutar como Jaibo, ter a coragem de Pedro e a frieza do homem cego. Fazer o bem e o mal. Quem é quem?

El DÍA QUE ME QUIERAS: LATINO SIM, COSMOPOLITA TAMBÉM, por Txai Ferraz


Local de nascimento desconhecido, êxito na cena internacional, uma morte prematura: Carlos Gardel é um mito inconteste. Vítima da velha disputa infundada entre argentinos e uruguaios, sua nacionalidade é debatida até hoje, assim como a do próprio tango. Parafraseando Borges ao falar do gênero musical do qual o cantor talvez tenha sido o melhor expositor: “por suas características, só poderia ter nascido em Buenos Aires ou Montevidéu”. Em realidade, a trajetória do artista e a do ritmo se confundem. Gardel é um fenômeno cultural descendente dos gauchos, um mito gestado em toda região rio-platense e posteriormente acolhido pelo mundo.

Em El día que me quieras, filme americano de 1935 dirigido por John Reinhardt e protagonizado pelo cantor, temos um bom recorte para decodificar a figura do artista. Gardel encarna alguma espécie de alter-ego, um tanguista chamado Julio Quiroga (1) que renega a fortuna do pai para dedicar-se à música e à sua esposa. Honesto, apaixonado e inspirador, mas pouco afeito ao trabalho comum. Gardel reproduz neste filme o signo do latino como exotique, cujas bases foram lançadas muito antes, ainda no romantismo do século XIX.

Há muito de estereótipo nessa construção. O voseo praticamente inexiste na fala dos personagens. Margarita (Rosita Moreno), atriz espanhola intérprete da esposa de Quiroga e de sua filha não faz muito esforço para disfarçar o seu acento ibérico. Para não generalizar, um che ou outro regionalismo aqui e acolá escapam da boca da dupla Saturnino e Rocamora, melhores amigos do protagonista. Há uma explicação: os dois dão leveza ao filme com alívio cômico.

Quando Margarita falece, Quiroga deixa de assinar com o sobrenome paterno (Argüelles) e se torna um tanguista conhecido internacionalmente, chegando até a fazer filmes nos Estados Unidos. Por um momento, nos perguntamos se a história que estava sendo contada até então era do personagem ou do próprio Gardel. O filme se apossa da figura do cantor e o transforma em um ícone genérico, fácil de ser digerido pelas grandes massas do continente latino, mas próximo também de uma vivência cosmopolita. Exótico, porém facilmente palatável.

O personagem de Gardel está sempre disposto a enaltecer as qualidades de sua cidade de origem (leia-se: Buenos Aires). Em uma cena em um navio, voltando para casa depois de uma temporada nos Estados Unidos, Quiroga emenda duas declarações de amor: uma para sua cidade e outra para sua falecida amada. É certo que o protagonista ama demasiadamente as duas.

De certo medo, a figura do artista é uma personificação da imagem da capital portenha. Jovem, rebelde, arrebatadora, autêntica. Buenos Aires projetou-se internacionalmente com o artista e o tanguista encontrou na cidade nicho para sua criação. Em geral, El día que me quieras chama mais atenção pelos números musicais do que por aspectos formalistas. Mas o que esperar de um filme como esse? É Gardel, então que faça o que sabe fazer de melhor!

NOTA:
1. O sobrenome escolhido chama atenção para uma possível referência a Facundo Quiroga, caudilho apontado como a grande figura da organização nacional argentina. É bem provável que seja apenas coincidência, mas a conexão é, no mínimo, curiosa.

"La hora de los hornos", por Natalie Chauviere




A América Latina tem uma forte tradição em produção de documentários. Nos anos 60, apareceram Fernando Birri (1) e a “Escuela de Documental de Santa Fe” na Argentina. Era um estilo de documentário comprometido politicamente, crítico e obstinado com as denúncias sociais, como o filme “La Hora de los Hornos”, feito em 3 partes, com uma duração total de mais de 4 horas, de Fernando Solanas (2) com a produção CINESUR S.A (Buenos Aires). Quando « La hora de los hornos” saiu nas salas de Buenos Aires, a fines de 1973, os anúncios periodistas falavam da “pelicula argentina mais premiada e vista no mundo”. Consagrado primeiro na “IV Muestra Internacional del nuevo Cine de Pésaro” (Italia) em Junho de 1968. Em 1973, só se mostro a primeira parte do documental, “Neocolonialismo e violência”, a mais conhecida e com uma estrutura formal para o circuito comercial. A partir disso, foi em diversos festivais internacionais, e alcanço uma significativa difusão clandestina ou semi-clandestina a partir da segunda metade de 1968 na Argentina. Em 1973, depois de 6 anos de ditadura militar e de 18 anos de proscrição eleitoral do movimento político maioritário, o peronismo, chegou no circuito de salas com a categoria de filme de “interesse especial”.

O filme expõe uma tese sobre o miserável da condição humana. Como muitos filmes Latino-Americanos, Fernando Solanas faz refletir sobre a situação de toda América Latina através desse documentário. De certa forma, surpreende as pessoas com perguntas, abrindo um espaço para o debate frente às câmeras. Essa produção intensa na América Latina, no período 60 e 70 (década tomadas pela ditadura), não permitiu a difusão da cultura documental, devido à marginalização dos temas tratados pelos realizadores, assim a circulação desses filmes se restringia a sindicatos, centros académicos universitários e cineclubes. Contudo, nas salas de cinema, eram apenas exibidos os documentais oficiais, os filmes curtos que passavam antes dos largos metragem, como o “cine-noticiario” o “cine-variedade”, etc. … Mas essas produções “oficiais” não fizeram história, eram só um intento de propaganda ideológica dos governos militares. Ao contrário, o documentário comprometido e genuíno se volta para um modelo alternativo de produção cinematográfica na América Latina, apesar das grandes dificuldades que enfrentou e segue enfrentando.


O documentário “La hora de los hornos” (1968, estreado em 1973) foi realizado por o “Grupo Liberacion”, o qual Fernando Solana integrava nessa época. As obras do Cine Liberación apontavam o colonialismo, o subdesenvolvimento e a ausência de um projeto nacional e democrático como obstáculos às transformações das sociedades latino-americanas. O documentário usa material filmado no momento de sua realização e trechos de outros documentários latino-americanos. Esse documentário foi pensado como uma ferramenta para o trabalho político, para convidar a discussão e a reflexão coletivas, como uma forma de lutar. Nele se mostra a história do colonialismo Argentino, e no mesmo tempo, de toda América Latina, através de um olhar que retrata a violência quotidiana e sistemática, refletida nos testemunhos e imagens dos trabalhadores urbanos e rurais contrastados com a vaidosa e excêntrica oligarquia argentina. Dessa forma, Fernando Solanas vai orientando a vista para necessidade de organização, a necessidade de luta. O filme também foi inspirado no livro Os condenados da Terra, do médico martinicano Frantz Fanon, um dos principais autores que registraram e discutiram as lutas de libertação nacional do período. “Todo espectador é um covarde ou um traidor” é uma frase de Fanon que aparece na introdução de La hora de los hornos e se tornou emblemática.

A parte “Neocolonialismo e violencia” critica totalmente a política e a sociedade argentina dos anos 60. Nessa primeira parte, o filme procura mostrar que a dependência vivida naquele momento pela Argentina era conseqüência da dependência colonial passada e tenta desvendar os mecanismos de dominação adotados pelo neocolonialismo da época. Como Fernando Solanas consegue fazer que o publico fique sensível à sua crítica? A primeira parte, “Neocolonialismo e violência” nos fala da historia da dependência da Argentina, analisando as formas e métodos desse processo. Fernando Solanas utiliza, no inicio, frases ou palavras repercutais como “poder”. Também se serve das imagens para dar emoções nos espectadores; como por exemplo, quando as crianças correm detrás do trem, os trabalhadores na fábrica, ou os rostos dos povos pobres e os indígenas, mostrando rostos tristes, doentes…ou também podemos ouvir pessoas falando no fundo como uma senhora trabalhando na fábrica dizendo que se prostituía dentro da fábrica quando estava trabalhando para ganhar mais dinheiro. São passagens chocantes, imagens que não nos deixam indiferentes. E justamente contrastam com o que acontece com a oligarquia, que vai para festas, que só pensa a fazer como os Estados Unidos, até alguns que falam que gostariam mais viver nos Estados Unidos, são os que exploram os trabalhadores ou os agricultores, são chamados “terratenientes”. Também para que o filme seja visto como real e não como ficção utiliza estatísticas, imagens documentais, entrevistas, e fragmentos de curtos; usa imagens chocantes como os animais da rua, mostra a violência dentro do matadouro com as vacas e os carneiros que seria como uma metáfora da violência humana, de certo modo os que matam são os “terratenientes” e os oligárquicos que pouco à pouco mataram os indígenas (que foram exterminados) ou os obreiros e os agricultores (matando pouco à pouco de fome, de doença, deixando eles se nenhum recurso para sobreviver, se preocupar-se de suas condições, e sem pagar o suficiente para um trabalho alienando, cansativo…É interessante também ver o filme como um resumo da história da Argentina. Mostrando que a evolução do país consistiu também numa grande divisão e separação entre a sociedade, entre os oligárquicos e os pobres, entre as províncias e Buenos Aires…


No final da primeira parte, temos durante os últimos 4 minutos a imagem da cara do Che Guevara, do Che Guevara morto, como uma representação do sacrifício do Cristo. Essa imagem está só na versão original e não naquela de 1973, na qual essa parte foi modificada. Mas aqui estou falando da versão original de 1968. Essa figura tem um símbolo muito forte. A figura do Che havia funcionado na Argentina durante os anos 70, já que era associada com a Revolução Cubana. A figura do Che representa uma sorte de horizonte unificador no político para diversas facções intelectuais da esquerda. De certa forma o Che Guevara é visto como um homem que representa a “nossa” América Latina. Então, em 1968, essa imagem ainda funcionava como símbolo unificado para diversos sectores, no clima de oposição frentista da ditadura do general Ongania (3). Até Peron caracterizava-lhe como o emblema da revolução na América Latina (4). Assim, nessa versão original, a imagem do Che Guevara funciona como uma proposta do “Cine Liberacion” como opção, articulando a primeira parte do filme, destinada a denunciar a situação de dependência nacional e regional. Podemos interpretar essa imagem final, no clima dos anos 1968, como uma expressão mais das lutas do Terceiro Mundo já que o Che Gueva, “guerrillero heróico” da foto de Korda, resultava propicio para promover a continuidade da revolução apesar da morte do Che, como para influenciar a continuar com a revolução.

Contudo, podemos ver que esse documentário também manipula. Primeiro porque é um cinema político e que significa isso? Justamente que não pode ser neutro, mas que quer dar sua opinião, sua crítica, e para isso usa o que ele interessa, baseando na realidade mas somente o que importante para ele mostrar. Ai, tem sua própria reflexão sobre uma determinada realidade politica, tem sua própria interpretação da história e uma reflexão estética sobre o passado que o espectador aceita ou não, mas esse filme tenta de convencer o espectador, de demonstrar o que esta errado. Podia ser mais neutro, mas não, ele preferiu dar sua opinião.

Também acho que durante a década dos anos 60 e 70, foi a época privilegiada para o cine político, em Europa como resultado da política do “Mai 68” (Maio Francês de 68), especialmente directores como Godard, Rivette, …, o verdadeiro motor do novo cine político, entendido aí como uma indagação nas lutas obreiras com espírito de vanguarda. No terceiro mundo, sobretudo na América Latina, emerge com força desde a luta anticolonial, contra a pobreza secular e os modelos revolucionários de Cuba e da “guerrilha campesina”. Esse tipo de documentário, era proibido, então os únicos que podiam ver também era já os que eram militantes, finamente esse tipo de documental era feito para pessoas avisados, dessa forma, não ensinava nada a neguem, as pessoas que precisavam ver o filme não podia nessa época. Ele queria contar sua realidade, sua história, que quebrava o olhar hegemónica dos grupos de poder, tal como os militares, messiânicos, a Igreja, uma intelectualidade de gafas europeias e uma classe social alta conhecida como “a oligarquia”. Fernando Solana critica a oligarquia, as pessoas que queriam viver no estilo americano, que têm dinheiro, mas o filme, no inìcio, foi feito para ganhar prêmios em festivais internacionais, dessa forma finalmente ele também procura ser conhecido, e dessa forma ter fama, e não mostrar a realidade, o mais importante é a estética do filme e não que esta dizendo. Tem um estilo bem particular, parece um diaporama, flash…o seja o que ele contesta é secundário, o mais importante é a estética do filme.
Finamente, ele critica a sociedade argentina da época, mas usa a imagem do Che Guevara como um herói, e que o povo deveria fazer igual que ele, sacrificar-se para trocar a politica do pais, mas no mesmo tempo, a proposta do Che Guevara era tão violento como o capitalismo, não acho que a Revolução com as guerrilhas seja a melhor solução para esse mundo, combater a violência com a violência, acho pior e não resolve nada, vai ter uma outra critica, e dessa forma vai sair outra oposição e outra forma de combater, e de novo vai ter violência, seria repetitivo. Além disso, Che Guevara era médico e vinha duma família burguesa, como aquelas que critica Fernando Solanas. Então, se realmente Fernando Solanas queria chamar a atenção da oligarquia e dos burgueses, acho que não foi da melhor forma. Nesse documentário há um outro paradoxo, ele combate o colonialismo, a ditadura, o capitalismo, mas ele concorda e apoia o Peronismo que foi uma ditadura, mesmo se foi popular e “defendendo os direitos dos obreiros” não é menos capitalista, e não ajudou a Argentina, deixou a Argentina mais pobre ainda.


NOTAS:


1. Fernando Birri (13 de marzo de 1925; cidade de Santa Fe, Argentina) é um cineasta e teorico argentino. Conhecido como o pai do “Novo cine Latinoamericano”. Em 1956, em Santa Fe, funde o Instituto de cinematografia da Universidade Nacional do Litoral.Realizo seu primeiro filme na Escola Documental de Santa Fe se trata del cortometraje Tire Dié, considerado o primeir o documental socio-político da Argentina. Foi o fundador da Escola Internacional do Cine e TV de San Antonio de los Baños de Cuba, e foi o director e uns dos iniciadores do novo cine latinoamericano.
2. Fernando Ezequiel Solanas, ou Pino Solanas, é um documentarista político. Ele nasceu no Olivos, Buenos Aires o 16 de Fevereiro de 1936 na Argentina. Ele foi exilado durante o período da ditadura militar (1976-1983), ele foi eleito como deputado do Frepaso (centro-esquerda) de 1993 à 1997 e em Agosto 2007, se presente para as eleições presidenciais em Argentina o 28 de Outubro 2007 com o grupo Projet Sud, contra Critina Kirchner. Ele critica sua politica económica liberal. Política e cinema, portanto, estão intimamente ligados na trajetória de Fernando Solanas. Mesmo em seus projetos de ficção que, na verdade, foram decisivos para a solidez de sua carreira de cineasta (pois foi com El Exilio de Gardel e Sur que conquistou os prêmios máximos no Festival de Veneza, em 1985 e Festival de Cannes, em 1988, respectivamente), o cineasta argentino nunca se afastou do que pode ser considerado matriz do seu cinema: um projeto político nacionalista, em uma concepção estruturada pelo peronismo e ampliada pela utopia de uma “grande pátria latinoamericana”, como sonhada pelos líderes da independência dos países da América do Sul espanhola.

3. Dirigente da “junta militar” do 29 de junho 1966 até 8 de junho 1970.

4. “ La figura joven, mas extraordinaria que ha dado la revolución en Latinoamérica”

Os Esquecidos de Luis Buñuel, por Heidi Trindade de Araújo


O primeiro filme da fase mexicana do diretor Luis Buñuel, Os Esquecidos, retrata a história de um grupo de jovens moradores de um subúrbio na Cidade do México. Em Os Esquecidos, Buñuel utiliza bastante a linguagem do neo-realismo italiano – a análise social sob a ótica infantil/juvenil e a captura da realidade sem disfarces - mas não abandona sua origem surrealista (Um Cão Andaluz), vide as sequências do sonho e da morte de Jaibo.

O filme, considerado um semi-documentário, conta causos reais de indivíduos, moradores da Cidade do México – a história do personagem Pedro, por exemplo, foi baseada na notícia de um menino encontrado morto num barranco. Apesar de se tratar de um drama mexicano, Buñuel deixa evidente que a história contada pelo filme não trata, apenas, de fatos isolados de um país subdesenvolvido. Logo nos primeiro minutos, o diretor passa a mensagem de que a problemática do drama que se apresentará, é de ordem universal. Trata-se de uma exposição crua da extrema pobreza e miséria que recai sobre uma parcela de pessoas em todo o mundo. Logo, a associação deste filme com Cidade de Deus, do brasileiro Fernando Meirelles, não parece errônea: ambos trabalham o tema da pobreza de maneira intensa e cruel.

O filme não oferece esperanças aos seus personagens principais: Jaibo, o mais delinquente, é fruto de lar nenhum, sem apoio ou orientação de qualquer tipo, um perdido; Pedro, se envolve em uma série de crimes, tenta se redimir ou regenerar-se através de uma boa conduta e de um trabalho honesto, mas é cruelmente rejeitado por sua mãe, que chega a negar-lhe comida. Talvez, um dos poucos resquícios de esperança – para Pedro, apenas – esteja no final alternativo da película, em que Jaibo acaba morto e Pedro tem a chance de se redimir no reformatório. Mas essa esperança é apenas uma farsa, um sonho surreal criado por Buñuel, pois o Pedro real – na qual a história foi inspirada – não teve um final alternativo.

Os Esquecidos recebeu uma indicação ao BAFTA de melhor filme e ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes, em 1951. Porém, antes de ser bem recebido pela maioria, o filme foi fortemente criticado pelo governo mexicano, que se sentiu incomodado por tamanha honestidade dos fatos narrados. De fato, uma das atrizes do filme, recusou-se a ter seu nome nos créditos, por acreditar que nenhuma mãe mexicana trataria o filho de forma tão cruel e fria quanto a mãe do personagem Pedro.

"Luis Pardo, entusiasmo por um cinema peruano", por Evan Diniz


A cinematografia do Peru em grande parte do século XX é ínfima, se comparada a outros países latino-americanos como Brasil, Argentina e México. Grande parte dessa produção se perdeu com o tempo, e a restauração de películas ocorre lentamente com o apoio de instituições não-governamentais que buscam resgatar uma história do cinema peruano. Porém, as poucas películas que conseguiram ser restauradas entre a década de 10-40 do Peru, revelam particularidades desse primeiro cinema peruano, refletidas pelo olhar de cineastas e realizadores maravilhados pelo novo e pelo desejo de visualizar a sociedade peruana, afirmando sua identidade cultural em projeções de cinema. As primeiras experiências cinematográficas do Peru são registros documentais de acontecimentos importantes da capital Lima, e monumentos importantes da época etc. Influenciados pela crescente evolução das técnicas e narrativas cinematográficas, cidadãos peruanos como os da família “Garland” produziam seus próprios filmes caseiros.

Foi no ano de 1927 que surgiu a primeira produção fictícia de caráter “industrial” no país. Enrique Cornejo Villanueva era peruano, entusiasmado pelo cinema e criador da primeira escola de arte cinematográfica em Lima, recrutando homens e mulheres que se interessassem por cinema. Villanueva financiou seu primeiro filme, usou a imprensa para divulgação da estréia de sua exibição. Era o primeiro filme feito por um peruano para a sociedade peruana. Uma estréia que marca o desejo de consumo de um produto de orgulho nacional, onde o espectador se identificaria com as paisagens, a língua, os personagens. O tema escolhido para o filme foi a história do bandido Luis Pardo, uma espécie de “Robin Hood” peruano. A história do herói do Peru obteve êxito entre a população. A medodia entoada pelos músicos que acompanhavam a projeção tornou-se um canto popular bastante conhecido.

Luis Pardo foi fotografado pelo italiano Pedro Sambarino, importante nome do cinema latino-americano. Sambarino realizou o primeiro filme boliviano e se empenhou na produção de filmes e documentários na américa latina durante sua vida. A habilidade técnica de Sambarino é vista nos trechos recuperados e disponíveis de Luis Pardo. Interpretado por Villanueva, o protagonista é um bandido querendo vingança. O enquadramento de Sambarino no filme se mostra de boa presença com certa distância, dando ao expectador a impressão, na maioria das vezes, de segurança às ações dos personagens no filme. A qualidade da fotografia é notada principalmente no close dos personagens. Imagens limpas e nítidas em cenários externos e internos. É evidente a influência dos filmes estrangeiros na produção, que possui grande apelo a cenas de combate entre Luis Pardo e seus inimigos, tal feito demonstra o desejo visionário de atrair grande quantidade de expectadores e não limitar a produção a perfis específicos de identificação, afinal em um país de lutas constantes contra a opressão social, todos eram lutadores.

Por ser um país pobre, pouquíssimas pessoas tinham acesso ao cinema no Peru. A evolução do cinema clássico se expandia lentamente entre a América Latina, porém em Luis Pardo, vemos um tipo de produção que se preocupou com sua cinematografia. No figurino temos a maior prova disso quando Pardo desce de seu cavalo com um lenço específico de bandido no rosto. Seu cavalo é o mais magro, dando um ar de agilidade, sua camisa tem detalhes em xadrez diferente dos outros que possuem tecidos lisos. Ou seja, Luis Pardo é inconfundível na tela. Os movimentos de câmera são poucos e precários, a câmera sempre está parada em um lugar e a cena acontece em determinado campo de visão. Algumas vezes os atores saem de campo e a câmera tenta enquadrar de maneira rápida e até brusca. Notamos a dificuldade de realizar movimentos mais ousados que estavam sendo realizados por cineastas norte-americanos e europeus na época, dificuldade essa, causada provavelmente pelos equipamentos antigos.

Em poucos minutos de vídeo restaurado de Luis Pardo temos a sensação de que o início da produção cinematográfica peruana não foi muito diferente da de outros países andinos. A tecnologia chegava atrasada pelas mãos de estrangeiros. Com eles, o modo de fazer cinema e um repertório cinematográfico amplo. Villanueva que conhecia o cinema, tomou o primeiro passo no cinema peruano, e ainda que Luis Pardo pareça semelhantes a westerns estrangeiros, entre outros gêneros, o seu olhar como cidadão peruano e sua forma de ver o Peru ainda está lá, abriu portas para a voz, a história e a cultura de um povo, sua identidade.

REFERÊNCIAS
www.cinefiliaperu.blogspot.com
www.archivoperuano.com
www.cinencuentro.com/algunos-hallazgos-del-archivo-peruano-de-imagen-y-sonido
www.paginasdeldiariodesatan.blogspot.com/2007/10/luis-pardo-ochenta-aos-de-su-estreno.html (Blog de Ricardp Bedoya, autor da obra “100 anos de cine em El Peru”)

"Os esquecidos", de Luis Buñuel, 1950, por Luiz Carlos C. M. Ferreira


O filme Os Esquecidos (Los Olvidados), apesar de dirigido pelo espanhol Luis Buñuel, faz parte da lista dos melhores filmes mexicanos até hoje. Rodado em 1950, na Cidade do México, ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival de Cinema de Cannes, tendo recebido, logo em seguida, o registro de Memória do Mundo, conferido pela UNESCO. A película é considerada a mais importante da fase mexicana de Buñuel e é constituída por elementos calcados no neo-realismo italiano e no surrealismo espanhol.

Por sua abordagem crua e direta em relação à grave situação social, o filme gerou no México muita polêmica, inclusive com tentativas agressões físicas ao seu diretor. Num primeiro momento, permaneceu por apenas quatro dias em cartaz. Contudo, tempos depois, com a premiação em Cannes (melhor diretor), a mídia mexicana passou a considerar o filme a partir de um ângulo diferente, chegando a ser exibido nas principais salas de cinema por mais de dois meses seguidos.


A temática do filme é claramente de cunho social. Procura abordar, dentre vários aspectos, a questão dos bolsões de miséria que afligem as crianças moradoras de favelas (lembra em muito as mazelas das grandes cidades brasileiras) e, a partir do olhar de um adolescente (Jaibo) que acabara de fugir de uma instituição correcional (espécie de FEBEM), revela o drama de pessoas que tentam sobreviver num ambiente indigno e desumano. Podemos dizer que se trata de um drama ou tragédia neo-realista, quase documental e com um viés marcadamente social. Para André Bazin, Os Esquecidos representaria o que ele denominou de “cinema da crueldade”, guardando uma estreita relação com o teatro de Antonin Artaud.


Nesse filme podemos ainda identificar elementos associados à Psicanálise (Complexo de Édipo, por exemplo), como nas cenas que mostram as tentativas de aproximação de Pedro em relação a sua mãe que o renega sistematicamente. O sonho onde Pedro clama por comida e sua mãe oferece-lhe vísceras é marcante e aponta para características surrealistas, bastante exploradas nos primeiros filmes de Buñuel. Sentimentos de compaixão é algo que o cineasta em questão procura afastar neste filme. A ausência do Estado como garantidor de uma vida mais decente para a população favelada é algo bastante visível. Essa desestrutura e carência é imediatamente repassada para as relações que se estabelecem entre os moradores locais, gerando conflitos e desesperanças cada vez mais pulsantes e destrutivos. É como se uma coisa alimentasse a outra. Um Estado corrupto e sem quase nenhuma responsabilidade social diante de estruturas familiares falidas, desprovidas de afeto e atenção entre seus membros.

Os personagens de Os Esquecidos, considerando o ambiente socialmente desajustado em que vivem, passam, em alguns casos, a colocar em risco o pouco de dignidade e pureza que ainda podem trazer em si. Assim, por exemplo, o momento no qual o personagem “olho pequeno” é provocado pelo cego e logo depois levanta uma pedra para atingi-lo, desistindo em seguida, é bastante emblemático, nesse sentido.


Significativa e bastante forte a sequência onde a mãe de Pedro entrega-o à polícia para ser internado numa escola agrária. O diálogo que se trava entre a mãe e o juiz de menor traduz muito bem o jogo de empurra-empurra que envolve o poder público e a família quando se trata de educar e acolher “seus filhos”. Aliás, não podemos deixar de observar a semelhança entre Os Esquecidos e Os Incompreendidos, de Truffaut. Ambos procuram retratar a infância perdida no meio de um ambiente familiar e social confuso e contraditório. No caso do filme de Truffaut, porém, que foi realizado nove anos depois, essa precariedade infantil/juvenil ocorre em circunstâncias bem mais amenas, tanto do ponto de vista da trama em si, como também da estética utilizada pelo cineasta francês.

O senso de erotismo também tem seu espaço nessa película. Atente-se para a cena do leite derramado sobre as coxas da menina e as investidas de Jaibo na mãe de Pedro. Por fim, vale destacar o trabalho de fotografia de Gabriel Figueiroa cheio de contrastes de luz que nos revela uma representação crua e brutal da delinqüência juvenil mexicana.

"Maria Candelária", por Lucas Parente



Pelo início do filme, há uma ligeira lembrança de uma das clássicas “Princesas da Disney”: o arquétipo da jovem bela, pura e inocente (apesar de já começar acompanhada) que sofre com as injustiças do mundo. Maria Candelária sofre discriminação do restante do povoado o qual convive por sua mãe ter sido uma prostituta. Porém, com o desenvolver da trama, é visto que o rumo final dos personagens é menos idealizado que os das princesas e mais simbolista.

Um dos pontos tratados na obra de Emílio Fernández é a desconstrução da imagem negativa do indígena mexicano divulgada pelos filmes norte-americanos. Em “Maria Candelária” temos um indígena até romantizado (em algumas partes do filme) com objetivos nobres em suas ações incompreendidas, heróico. Isso pode ser visto em cenas que, por exemplo, Lorenzo Rafael sai à noite na chuva para roubar medicamentos (antes lhe negados) que seriam utilizados na cura de uma Candelária agonizante.

Os atores Dolores Del Rio e Pedro Armendáriz, do star-system mexicano, apesar do sucesso internacional do filme e dos padrões de atuação da época, não conseguem (assim como o resto do elenco) atingir o público atual em sua forma universal. A atuação está marcada no exagero melodramático (principalmente em certos movimentos de sobrancelha carregados).

Vale destacar no filme o uso simbólico do variado e belo figurino de Armando Valdés Peza nas personagens, principalmente no caso de Maria Candelária. A forma em que a protagonista utiliza seu xale (ou rebozo) remete diretamente a imagem da Virgem de Guadalupe, numa figura pura e materna. Também há a bela fotografia de Gabriel Figueroa a ser lembrada pelo uso da iluminação (como no caso de Lorenzo Rafael à noite em sua canoa) e enquadramentos (a imagem de Maria Candelária na igreja, submissa à Virgem de Guadalupe).

Apesar do índio bom citado anteriormente, Emilio Fernandez não se prende apenas às qualidades do povo mexicano. Ele parece fazer questão de representar o povo com um relativo equilíbrio, pois há também as pessoas de má índole presente na obra: o “casal” antagonista Lupe e o senhor Damian, ambos movidos por um tipo de inveja contra os protagonistas. Destaque para Damian, que mesmo com os traços indígenas mais fortes, ainda assim utiliza frases de certo teor racista como: “Aquele maldito índio!”.

“Maria Candelária” não é o tipo de filme em que hoje a maioria do público levaria a sério, mas não deixa de ter seus primores idealistas e técnicos. É uma ótima pedida para se conhecer mais do cinema e dos costumes mexicanos, e consequentemente seus signos culturais.

"Os esquecidos", de Luis Buñuel, 1950, por Lara Buitron


A história é relativamente simples: um grupo de jovens mexicanos marginalizados que tentam sobreviver de pequenos furtos em um mercado do subúrbio mexicano. Dentre esses jovens há quatro que se destacam: El Jaibo, o retrato mais nítido do clássico “trombadinha”: abandonado pelos pais, sem escolaridade ou chances de emprego, sem moradia e fugitivo do reformatório, sem perspectivas de um futuro melhor; Pedro, tem quatro irmãos, nunca conheceu o pai, foi privado de amor materno, não consegue emprego decente e se rende aos pequenos delitos, ele representa o menino que tenta mudar mas é como se toda tentativa de ser bom desse errado e piorasse sua situação; Ojito representa a bondade e ingenuidade de uma criança, é um garoto do interior abandonado pelo pai no meio da Cidade do México, frágil e sem já sem esperanças de voltar para casa aceita um trabalho semi-escravo em troca de comida e teto com Dom Carmelo, um cego avarento e de extrema-direita; por fim está Meche, a única menina da história, ela não faz diretamente parte do grupo de marginais, assim como Ojito, mas tem uma importância de peso no filme, pois mostra como eram tratadas meninas numa sociedade machista e miserável.

Luis Buñuel é o principal nome do cinema quando se fala em surrealismo, porém sua obra essencialmente surrealista é curta, conta apenas com dois filmes: Um Chien Andalou e L’Âge d’Or. Depois dessa fase vanguardista o cineasta parece mergulhar mais a fundo no real, afinal sua próxima obra seria um documentário ultra-realista: Las Hurdes, porém segundo o próprio realizador o documentário teria em sua gênese algo de surrealista, afinal “não são as imagens que são surrealistas, o mundo é que o é”. Buñuel não perderia nunca sua raiz surrealista, nem mesmo em sua fase mexicana em que o neo-realismo se vê tão presente, em Los Olvidados são apenas duas ou três cenas que remetem à sua primeira fase, mas se observarmos com cautela podemos ver que o filme todo em si tem um pé no surreal, apesar de uma narrativa aparentemente clássica e linear é interessante observar que o protagonista, Pedro, é apenas apresentado ao espectador quase no final do filme, como se organicamente a câmera se interessasse mais pela sua história do que pela dos outros.

O filme não tem julgamentos morais para com as crianças, como disse André Bazin: “a grandeza deste filme só se capta quando se sente que Buñuel nunca se refere a categorias morais. Não há qualquer maniqueísmo nas suas personagens. (…) Aquelas crianças são belas, não por fazerem o bem ou o mal, mas porque são crianças mesmo no crime e na morte”, talvez por isso o filme me remeteu quase que instantaneamente à obra de Jorge Amado Capitães de Areia, livro que conta a realidade de um grupo de crianças de rua que sobrevivem também de pequenos delitos em Salvador. Falando de cinema, o filme lembra bastante Rio 40º de Nelson Pereira dos Santos de 1955 e o mais recente Cidade de Deus Fernando Meirelles de 2002, não é a toa que os três filme encontraram-se em 2008 na lista da videoteca sobre órfãs da América Latina da Fundação Memorial em São Paulo (junto também da adaptação para cinema do livro Capitães da Areia). No longa de 1955 que inspirou o cinema novo, podemos observar incríveis semelhanças, além da moldagem moral onde a sociedade e o Estado são os reais culpados pela marginzalição, a história tem muito em comum, além dos dois filme serem um quase-documentário. Já o filme de Fernando Meirelles é mais plástico, a estética é muito trabalhada, mas a temática tratada é quase a mesma, um novo neo-realismo.

Assim como Júlio Bressane e Ruy Guerra disseram em um debate sobre cinema e poesia é possível sim plagiar algo que vai acontecer no futuro e José Carlos Avellar que o neo-realismo plagiou o cinema latino-americano, pode-se dizer que Luis Buñuel “plagiou” o novo neo-realismo brasileiro que apareceria de vez em quando nas telas a partir dos anos 80. O tema de Los Olvidados parece não se esgotar nunca, em pleno século XXI um filme rodado em 1950 ainda parece uma crônica latino-americana, Luis Buñuel com seu surreal neo-realismo continua nos fazendo pensar na sociedade em que vivemos e o que fazemos para muda-la, sociedade esta de sessenta anos atrás e que parece não ter mudado muito.Toda a América do Sul está cheia de Pedros e Jaibos, marginais e miseráveis, carentes de amor e educação.



Referência Biográfica e Fontes:
outinho, A., Trancoso, B., Barbosa, F., Pinheiro, L. e Costa, M. (orgs.) (2009) Cinema Surrealista (http://pt.scribd.com/doc/17704209/Cinema-Surrealista);

Machado Jr., R., Lima Soares, R. e Corrêa de Araújo,L. (orgs.) (2006) Estudos de Cinema SOCINE. Versão virtual da 1ª edição. São Paulo: Annablume. (http://books.google.com.br/books?id=0muinfUQs7MC&pg=RA3-PT170&lpg=RA3-PT170&dq=capit%C3%A3es+de+areia+los+olvidados&source=bl&ots=Bvfb220vGb&sig=O4zcHwrb0NIHAqcyZHVMS50fMmI&hl=pt-BR&ei=DxKkTeHkHofy0gHB1-nkCA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=7&ved=0CD8Q6AEwBg#v=onepage&q=capit%C3%A3es%20de%20areia%20los%20olvidados&f=false);

M. Hart, S. (2004) A companion to Latin American film. Versão virtual da 1ª edição. Reino Unido: Boydell and Brewer. (http://books.google.com.br/books?id=QGiRtopmuk4C&printsec=frontcover&dq=los+olvidados+cidade+de+deus&source=bl&ots=J4_j88uxzI&sig=ttFCPbB_PwyfO8AzQeYcS76sItk&hl=pt-BR&ei=WSOkTanhKayB0QHt4LTrCA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=10&ved=0CFQQ6AEwCQ#v=onepage&q=los%20olvidados%20cidade%20de%20deus&f=false);

Cadernos de textos da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, texto de José Carlos Avellar. (http://www.escoladarcyribeiro.org.br/media/Realismos.pdf);

Suplemento Cultural & Literário Guesa Errante, texto de Vicente de Paula M.C.F. Júnior pela comemoração dos vinte anos da morte de Luis Buñuel. (http://www.guesaerrante.com.br/2005/11/30/Pagina381.htm);

Revista Virtual de Cinema Contracampo, texto de Paulo Ricardo de Almeida. (http://www.contracampo.com.br/78/osesquecidos.htm);

Site Jornal de Poesia, texto de Gaspar Garção. (http://www.jornaldepoesia.jor.br/BHAH08luisbunuel.htm);

Site da Fundação Memorial de São Paulo. (http://www.memorial.sp.gov.br/memorial/RssNoticiaDetalhe.do?noticiaId=1362