sábado, 30 de abril de 2011

O mundo existencial de Khouri, por Felipe César Almeida Silva


1968. O mundo fervilhava em meio a novas ideias e revoluções estudantis, tornando-se o que a História viria a chamar de “ano mítico”. Sua importância deve-se às transformações que sucederam os acontecimentos daquele ano, embriões das mudanças políticas, éticas, sexuais e comportamentais surgidas nos anos seguintes. No Brasil, em meio à ditadura militar, despontava o Tropicalismo – movimento musical liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil –, e correntes cinematográficas como o Cinema Novo e o Cinema Marginal pregavam propostas e estéticas distintas. Em meio a tantas agitações, Walter Hugo Khouri lança As Amorosas, filme que vai na contramão do espírito de sua época – embora dialogue, de maneira sutil, com as angústias da juventude sessentista.

Khouri é dono de uma extensa filmografia; seus 25 filmes são de uma coerência estética raríssima no cinema brasileiro, que poucas vezes viu um autor tão genuíno e intimista. Seja pela temática existencialista, silêncios, ritmo lento, pouca ação ou rigor estético, sua obra é geralmente comparada as de cineastas como Antonioni e Bergman, sempre evocando um cinema europeu. Contemporâneo de nomes como Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, não se engajou a nenhum movimento e manteve sempre seu estilo autoral, tendo em São Paulo a sua cidade mais emblemática.

“Eu quero uma coisa mais intensa do que tudo que existe” diz Marcelo (Paulo José), protagonista de As Amorosas, a certa altura do filme. Órfão, tem apenas suas duas irmãs. Uma delas é distante e possui sua própria família; a outra é sua amiga e confidente. Ele é universitário, não tem casa própria, mora de favor na casa de um amigo, não trabalha e nem se importa com isso. Acompanhamos sua crise existencial ao longo do filme, e é através de seu discurso que a filosofia de Khouri se explicita. Em meio a suas angústias, Marcelo vaga por aí e se envolve com duas mulheres, para no final se dar mal por causa de uma delas – ao tentar impedir seu estupro por outros rapazes e acabar espancado por eles.

Ele é o alter-ego de Khouri, sendo uma personagem recorrente ao longo de sua obra. Através de Marcelo, o cineasta aborda questões filosóficas e existenciais, sendo em As Amorosas sua primeira aparição. "Em As Amorosas a convergência para a filosofia pessimista e anti-historicista se dá por meio de elementos que vão dos diálogos à estrutura do filme, passando por atributos de personagem (como a biblioteca), estilo etc. Trata-se de um filme em que o empenho autoral se realiza em larga extensão: todos os recursos de composição analisados, sejam narrativos ou cinematográficos, concorrem para que se expresse a concepção de mundo que lhe é própria" (PUCCI JR, 2001, p. 116). Há um momento em que ele dá uma entrevista para um grupo de jovens aspirantes a cineastas que realizam um filme. Em seu discurso niilista encontram-se citações a obra Women in Love, do escritor D. H. Lawrence, romance que surge dentre a pilha de livros mostrada posteriormente em um determinado plano, no quarto de Marcelo. Esses estudantes de cinema que lhe entrevistam representam a juventude revolucionária da época. Embora não fique explícita a ideologia esquerdista deles, há indícios da mesma através de falas de Marcelo e a reação dos estudantes, além do título do filme que estão realizando, que reflete o momento de incerteza da época: O que? Para onde? Como? "A combinação de pessimismo e anti-historicismo leva As Amorosas à contramão do espírito de sua época. O próprio Khouri demonstra consciência disso ao contrapor o grupo de estudantes a Marcelo, em especial na sequência da entrevista. A reação dos militantes ao discurso de Marcelo, que falava do desejo de transcender a experiência, não poderia ser diferente: aversão completa." (PUCCI JR., 2001, p.114). Ele é um existencialista, que filosofa sobre o tempo e discorre sobre questões introspectivas; os estudantes estão presos ao agora e às transformações do período, pensando num âmbito maior de sociedade, considerando perda de tempo pensar em si mesmo. A diretora do filme se encanta com Marcelo e os dois vivem um breve romance, embora ela se envolva com ele para querer mudá-lo e adequá-lo ao modo de vida que ela considera correto. Nem todos compram esse modo de vida de Marcelo: ele sofre críticas do namorado da irmã, além da sua outra irmã casada e seu marido; estes representam a sociedade normativa e padrão, que acredita num modo de vida com rotina e emprego, sem questionar nada além. Marcelo vai de encontro a isso, recusando a trivialidade cotidiana.
Há três mulheres que orbitam ao redor de Marcelo durante a história: sua irmã Lena, a estudante de cinema Ana e a atriz Marta. Com a primeira, ele confidencia suas angústias e problemas existenciais e a enxerga como uma semelhante, embora em sua última conversa ela perca a paciência com o irmão e diga que ele é insuportável, sempre insatisfeito com os outros. Tanto Ana como Marta se apaixonam por Marcelo, mas ele não corresponde. Parece não acreditar no amor, só no sexo. Aliás, para Marcelo, o sexo é "a única maneira de transcender temporariamente as frustrações da existência" (PUCCI JR., 2001), pois não se interessa em mais nada no resto do filme. Parece estar à deriva, em busca de algo que não existe (como ele próprio declara), numa eterna crise. Além das duas mulheres com quem se envolve, Marcelo flerta com diversas outras, inclusive com Rita Lee, que na época era vocalista dos Mutantes – banda integrante do movimento tropicalista que explodia naquele ano –, durante um show deles.

Khouri faz do universo urbano e caótico de São Paulo um ambiente inspirador para essas angústias: os créditos iniciais do filme são compostos por desenhos que se originam de faixas de trânsito, e há uma sequência do filme em que Marcelo atravessa a rua e um travelling contínuo repete as faixas de pedestre, parecendo infinitas. É como se Khouri estivesse nos dizendo que Marcelo está vagando por aí, sem chegar a lugar algum.

O filme possui uma estrutura narrativa circular; começa e termina com um mesmo plano: um travelling vertical que desce por uma árvore e revela Marcelo, encostado na mesma. Ao fim do filme ele está numa floresta, à beira da morte, em posição fetal, após ter sido espancado por tentar evitar que rapazes estuprassem Marta. Ele olha para o céu; o filme termina. Marcelo chegou ao ápice de sua jornada: sua angústia existencial o levou até ali, quase causando sua morte. "(...) O caráter devorador do tempo é comprovado, ainda que de forma indireta, pela confirmação factual da vulnerabilidade humana: a sequência da tentativa de curra expõe a fragilidade do indivíduo, dada a gratuidade da situação e o perigo de vida enfrentado por Marcelo. Inserido numa cadeira de acontecimentos, portanto, imerso no tempo, o personagem fica à beira da desgraça ou da morte e é salvo apenas pela passagem da viatura de polícia, uma circunstância tão fortuita quanto a que o jogara naquela situação. Em suma, não existe mínima segurança na corrente de causas e efeitos que constitui a existência." (PUCCI JR., 2001, p. 102).

Referências Bibliográficas

PUCCI JR., Renato Luiz. O equilíbrio das estrelas: filosofia e imagens no cinema de Walter Hugo Khouri. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2001.

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