sábado, 30 de abril de 2011

Assombrações de uma São Paulo Velha, por Diogo Marcos Testa



Meu avô paterno, Antonio Moldes Testa, veio da Espanha, de Granada, para São Paulo com quatro anos de idade. Namorou e casou com minha avó, Iraci Pinto Moldes Testa, a cortejando pela janela. Descendente de Italianos, José Sebrian Marcos, meu avô materno, casou com minha avó, Maria Aparecida Zerrener Marcos, descendente de Alemães, igualmente a cortejando da janela.

De volta ao meu avô paterno, o Espanha, como era chamado em todos os comércios que teve ao longo da vida: dono de botequim, vendedor de móveis usados, carreteiro e açougueiro, assim como Mazzaropi naquele filme "A filha do açougueiro", de 1961. Inclusive meu avô também tinha o hábito, que meus tios detestavam, de aumentar umas cervejas na conta dos vagabundos do botequim assim como Gustavo, a personagem interpretada por Mazzaropi, extorque do dono do cachorro que estragou sua lingüiça um preço mais alto que o valor real da mercadoria.

Hoje em minha cabeça, a imagem de São Paulo como a megalópole que é ofusca uma lembrança muito antiga, da minha infância, que ainda é pertinente; a lembrança do centro suburbano, dos bairros dos operários e comerciantes, como as personagens retratadas no filme, que não por coincidência residem num cortiço chamado "rua da fábrica" e que Mazzaropi faz o favor de escrever embaixo, a giz, quando está sozinho em quadro "da fábrica de linguissa", assim mesmo, com dois 'ss'. Erro gramatical ou português arcaico? Mario de Andrade se deliciaria com a contribuição milenar de nossos erros.

Ismail Xavier, teórico de cinema, chegou a insinuar o melodrama como um gênero do pobre ou do subdesenvolvido por excelência, se não chegou a tanto ao menos se fascinou pela sua apropriação no cinema abaixo do trópico de câncer. O melodrama permite algumas coisas que o drama sério não permite; o traço que gostaria de ressaltar é o exagero, que não é senão um traço de diferenciação, pois por dedução posso concluir que para existir o exagero é preciso uma diferença gritante de comportamento, todas as contradições existentes entre riso e no choro das máscaras da tragédia grega. Tais diferenças exageradas não são vistas por bons olhos em sociedades, em última análise preconceituosas, que fundaram sua imagem na homogeneidade enquanto escanteiam sua alteridade ao silêncio. Algo impensável num país como o Brasil, que mesmo fundado pela colonização européia é um país essencialmente mulato, e digo mulato porque miscigenado. A prova que apresento é simples: se juntarmos os europeus todinhos: portugueses, holandeses, espanhóis, franceses, alemães, italianos, etc.; e separarmos desses apenas os que não fizeram o favor de ter filhos com africanos e índios e colocarmos esse povo ao lado dos negros e mestiços desse país ficaria óbvio que os brancos constituem, essencialmente, uma minoria.

Faço uma comparação com dois outros filmes: Psycho de Alfred Hithcock (1960) e Le Boucher, de Chabrol (1970), ambos focados na figura de um açougueiro, assim como o Gustavo de Mazzaropi. No filme de Hithcock, inglês de humor negro, o protagonista subjuga a mulher e a fatia como pedaço de carne. Além, a alteridade de classes sociais é homogênea, tanto serial killer quanto vítima tem a mesma dignidade, independente de sua condição financeira; o que poderia ser, em última análise, inverossímil. No filme de Chabrol o jogo se inverte e é a mulher que subjuga o desejo do homem e o leva, entre ambigüidades, a tornar-se um assassino; a diferença de classes do açougueiro para a professora é visível, entretanto, pasteurizada.

Quanto ao açougueiro de Mazzaropi, mata ninguém coitado, não subjuga, não impõe de forma direta; na melhor tradição do píncaro que insistentemente se repete na identidade nacional engana todo mundo e encerra seu conflito sem encarar de frente os mitos do sexo e da morte, tão caros à narrativa séria.

Além, o melodrama favorece um clichê fundamental para se trabalhar as diferenças: a família rica que se interpõe contra o casamento com a família pobre, ou seja, uma metáfora que em seu tempo foi poderosa em prol da miscigenação das classes. É possível no filme ver os cortiços e residências luxuosas da megalópole e a paisagem turística em contraste com os farofeiros de santos. Mesmo que os farofeiros ainda persistam enquanto a paisagem turística do que um dia foi uma bela praia, hoje nem tanto. Esse clichê obriga o espectador a ouvir ambos os lados do jogo das desigualdades - a avareza e miséria da opulência, a alegria e caridade dos ingênuos, o peso econômico das relações humanas, as atitudes de delinqüência dos marginalizados e negligência dos proprietários. Me agrada que neste filme em particular essas relações não sejam impositivas, mostrando as dupla face em ambos os lados da moeda.

Ainda que pela lógica dos afetos esteja apegado ao filme, que me traz a mesma sensação das músicas de Adoniran Barbosa, a quem presto aqui minha homenagem, é preciso atualizar o olhar sobre o gênero, que encontra desdobramentos até meados dos anos 70 em três figuras icônicas da paródia como forma subdesenvolvida de protesto: Mazzaropi, Oscarito e Grande Otelo.

A primeira questão é de geração - mesmo que nos seja inescapável a figura do píncaro, idéia da qual não compartilho, mas que aceito; a ingenuidade clownesca já me soa um tanto cafona e perniciosa, afinal, todas as diferenças entre Charles Chaplin e Adam Sandler. Assim como no filme o sotaque caipira de Gustavo contrasta com o linguajar suburbano de seu filho, que já diz em 1960 coisas que cansei de ouvir em minha adolescência, trinta anos depois, como o clássico "pô meu".

Outro mito que caí por terra e que o cinema brasileiro já esboça reconhecer é a instituição do casamento nos tempos do divórcio. Mito que já é retrabalhado, de uns tempos pra cá, no gênero da comédia romântica norte americana, que aliás, não é mais que um nome sério para o melodrama dos colonizados.

Em tempos onde a identidade é construída na miscigenação de Freud, Buda e Facebook a tradição do melodrama abaixo do trópico de câncer oferece as mais diversas oportunidades para complicar uma situação que se vista preto no branco, apenas favorece um discurso de subordinação a culturas e identidades. Faço aqui um apelo: a ditadura já caiu, o país já se diz rico, terminemos essa briga e esse olhar que nos divide daqueles que nos exploraram e nos exploram. Afirmemos-nos nós próprios como exploradores e explorados, de mesma e complexa estatura em tempos globalização. Há um perigo em ainda nos vermos nos velhos boleros cantados no filme e que eu tanto escutava na radiola de minha avó. Ou o malandro vira um empreendedor, um cult ou qualquer ícone para revitalizar o gênero ou temo, ele (ou nós que gostamos tanto de nos ver nele) estará relegado a ser o que tem sido: caipira e peça de museu.

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