sábado, 30 de abril de 2011
SERENATA TROPICAL: DELICIOSO ERRO HOLLYWOODIANO, por Vinícius Gouveia
A história é de mais um casal apaixonado, porém impedidos de permanecerem juntos por uma rixa familiar. As passagens musicais tornam o filme ainda mais agradável, divertido e escapista. A aventura fica por conta das corridas de cavalo. Assim, Serenata Tropical (“Down Argentine Way”) teria tudo para ser mais um filme de sucesso comercial, alavancado pelo harmonioso elenco composto por Don Ameche, Betty Grable, Charlotte Greenwood, Henry Stephenson e a brasileira Carmen Miranda. Contudo, a ambientação na Argentina foi feita de maneira pouco cuidadosa e trouxe uma interpretação política inesperada a uma comédia-musical que, aparentemente, não tinha grandes pretensões de ir além de “muitas aventuras e um amor impossível”, numa descrição Sessão da Tarde. Na verdade, o filme hollywoodiano mostrou-se tão polêmico na representação da Argentina que em determinado momento teve sua exibição suspensa neste país.
Independente das qualidades do filme no gênero onde foi enquadrado e de seus acertos, a escolha pela Argentina mostrou-se um erro por expor o despreparo ou falta de cuidado no trabalho de representar o país desde o roteiro até a direção. O filme é basicamente de estúdio, a artificialidade dos cenários torna o filme ainda mais falso, aspecto fortalecido pela arquitetura de traços americanos pouco coerentes com o local retratado. Os diálogos também são majoritariamente em inglês, embora algumas vezes pequenas expressões em espanhol sejam utilizadas para pontuar falas e trazer ao diálogo algum ar de autenticidade.
Amparado na rumba e nas canções (em português!) de Carmen Miranda, o musical mostra-se equivocado também na trilha, tornando-se uma amálgama de referências latinas e esquecendo-se de uma identidade mais específica do país ao qual se refere. Até o sapateado dos Nicholas Brothers soa como uma tentativa de “latinizar” um aspecto cultural americano e demonstra pouca autenticidade argentina, mesmo sendo um dos grandes momentos do filme.
Os figurinos são uma questão a parte. As roupas usadas pelos nativos são fortemente marcadas por referenciais mexicanos e abusam das cores. Mas os trajes dos mocinhos também recaem sobre outros clichês, o que demonstra ser um mal do gênero de modo geral e não específico desta representação – o que não serve como desculpa, mas ajuda a compreender o descuido comum ao período de produção.
A representação dos nativos também é problemática. Os argentinos são pícaros subservientes e alívios cômicos que erram o inglês – o que também é motivo para riso. Por mais que os estereótipos apresentados possam ser verossímeis, falta contextualização. Eles também estão sempre deslumbrados com o “primeiro mundo”. A independência política não é suficiente, há um complexo de colonizado muito forte permeando parte dos personagens do filme. A dependência econômica cria a necessidade de agradar o outro, o chefe americano portador dos dólares. E o povo parece ter sempre motivo para festas e danças, onde vemos excessos de trejeitos, o que é maximizado pelo caráter musical do filme. Essa maneira exótica como eles são construídos banaliza idiossincrasias, planifica-os. Neste filme não há ressalvas e sobram generalizações.
As identidades nacionais são praticamente abolidas e o filme se torna uma estandardização da América Latina, ao invés de falar sobre a Argentina. Serenata Tropical tenta exportar a imagem do país/continente, mas, por fazer de maneira tão desastrosa, apenas colabora com o fortalecimento de equívocos.
É como se para representar algum latino fosse suficiente usar artifícios americanos e envernizá-los com a “ginga” e a “malemolência” nas danças e nas falas, ou juntar aleatoriamente aspectos de vários países da América Latina, projetando às telas tortas representações. Até para o espectador que tem uma bagagem cultural mais vasta, o filme confunde por trazer uma visão deturpada e estranha da Argentina. No saldo final, temos uma feijoada de canções, instrumentos, arquiteturas e impressões latinas, que supostamente seriam apenas um país. Pouco se vê da Argentina sob tal ótica de hacienda mexicana misturada com um açucarado e divertido love story.
O aspecto que mais chama atenção de Serenata Tropical e o tornou motivo de muitas críticas foi a falta de tato nas representações dos argentinos que tanto foi comentada até aqui. Notamos o quanto repetições de estereótipos como estes contribuem para fortalecer padrões opressivos, às vezes aparentemente inexistentes. Eles colaboram para internalizar limitadas imagens dentro do representado, assim como disseminam estas imagens erroneamente. O controle social também ganha mais força, assim como erros de percepção são fortalecidos. (1) Até mesmo quando apenas uma figura é abordada (um gay efeminado, uma negra cômica), a repetição do estereótipo torna o personagem ponto de referência de categorias sociais mais amplas (raça, classe, gênero, nação, orientação sexual). Acaba tomando-se o todo pela parte.
Em grupos periféricos comportamentos são generalizados, deturpados e até informações são trocadas (Buenos Aires como capital do Brasil). Mas, curioso notar que o mesmo não acontece com grupos dominantes. Se as representações das minorias, mesmo que individualizadas num personagem, são alegóricas, nos grupos dominantes as representações são “naturalmente” diversas. “Esses grupos não precisam se preocupar com “distorções e estereótipos”, pois mesmo imagens ocasionalmente negativas fazem parte de um amplo repertório de representações”. (STAM, Robert & SHOHAT, Ella - Estereótipo, realismo e lutar por representação.)
Por mais que comédias tenham tons figurativos e escapistas, onde o artifício é necessário e liberdades poéticas compreendidas, existe uma obsessão com o “realismo”, naquilo que é visto e ouvido. As pessoas questionam filmes a partir de suas verdades culturais e pessoais, só que materiais cinematográficos também constroem esse repertório. Dessa forma, uma representação (imagética, sonora) errônea ou limitada, mas aparentemente verossímil, deve criar uma noção incorreta para o espectador.
“... ficções cinematográficas inevitavelmente trazem à tona visões da vida real não apenas sobre o tempo e o espaço, mas também sobre relações sociais e culturais.” (STAM, Robert & SHOHAT, Ella - Estereótipo, realismo e lutar por representação)
Vemos claramente em Serenata Tropical uma representação infeliz de cultura e de relações sociais por um meio que aparentemente não mente (lembremos do realismo de Bazin): o cinematográfico (ele trabalha com imagens apreendidas do “real”, então não trata de inverdades, oras!). A infelicidade deste filme foi justamente nesse aspecto, escancarar a falta de zelo e a artificialidade da representação, que pouco tinha de real além dos atores. Ele pode até ter convencido espectadores americanos, que, majoritariamente, não deveria ter bagagem cultural sobre a Argentina, o que dificulta a percepção destes discursos preconceituosos e estereotipantes. Mas para a platéia argentina, e provavelmente seus vizinhos, a falta de controle sobre sua própria representação e o conteúdo social equivocado foi gritante – problema que atinge tantas outras minorias.
A mediação da câmera também é importante nessa representação. De maneira menos cínica que a mistura visual e sonora na tela, a estrutura narrativa, as convenções de gênero e o estilo cinematográfico ajudam ou freiam o fortalecimento dos estereótipos. Em Serenata Tropical, logo percebemos quem mais recebe atenção da câmera: os mocinhos Diego Quintana e Glenda Crawford. O ponto de vista sobre a história é deles e, mesmo numa comédia, são eles os personagens “sentimentalizados”. Os hermanos são peças decorativas. A perspectiva do diretor é clara.
Embora a política de escolha de elenco aponte os valores que o filme quer propagar (semelhante ao star system, pensemos nas personas que costumam fazer mocinhos, vilões, coadjuvantes), pensar que escolhas de atores de minorias para o elenco principal resolveria o problema de estereótipos e preconceitos é ingenuidade.
“A questão, quase literalmente, não é tanto a cor do rosto que aparece na imagem, mas a voz social real ou figurativa que fala “através” da imagem.” (STAM, Robert & SHOHAT, Ella - Estereótipo, realismo e lutar por representação)
Da mesma forma, nada adianta se a estrutura narrativa e as estratégias cinematográficas permanecem de grupos dominantes. Novamente nas palavras de STAM e SHOHAT, “um rosto epidermicamente correto não garante a representação de uma comunidade”. Também não vale a pena fazer um cinema de “imagens positivas” para que ele seja uma “máscara de perfeição”, ele irá soar tão falso quanto a arquitetura argentina de Serenata Tropical.
O que se sentiu foi a necessidade de auto-representação. O retrato unidimensional dos terceiro-mundistas e grupos de minoria por parte dos “dominantes” vem se tornando menos estereotipado e mais plural, visto o desenvolvimento da tecnologia cinematográfica e o fácil alcance a elas por parte dos que sempre ficaram à margem. A conscientização e erros escatológicos como os de Serenata Tropical já são pensados e evitados, mesmo que nem sempre seja com sucesso. É importante utilizar o cinema também (mas não apenas) como ferramenta social, preocupada em não errar na hora de falar sobre o outro.
Comédia-musical sem grandes pretensões além das mercadológicas, Serenata Tropical acabou gerando todas essas discussões acima. Mas, vale fechar um texto com um último comentário sobre o filme. Mesmo com todos os seus problemas, o filme ainda é uma leve e deliciosa comédia hollywoodiana de ares exóticos. É necessário não julgar as diversas questões fílmicas e extrafílmicas nesse tipo de obra para uma melhor apreciação, apenas deixar-se levar. Mas, quando ele acabar, não devemos deixar de lado as tantas interpretações que o filme suscita. Além do mais, é sempre bom ver Carmen Miranda.
NOTA:
(1) Curioso notar que ainda hoje no cinema brasileiro isso é um fato recorrente. Recente, o filme V.I.P.s traz uma representação do carnaval recifense de maneira pouco congruente. Estrelado por Wagner Moura e claramente desenvolvido no eixo Rio-São Paulo, além de premiado na mesma região, fica claro que o cinema contemporâneo, mesmo que nacional e de um país periférico, ainda tem problemas para enxergar determinados locais, principalmente aqueles “à margem da margem”. Então, este problema não é apenas localizado no período ou nacionalidade de um filme como Serenata Tropical.
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