domingo, 29 de novembro de 2009

"Diários de motocicleta" por Cleiton Costa


Se tem um filme que possa ser chamado vulgarmente de latino-americano, esse filme é Diários de Motocicleta (Walter Salles, 2004). Ele foi produzido por cinco países latino-americanos (Brasil, Chile, Argentina, Peru, Cuba, entre outros não latinos); o diretor é brasileiro; atores pricipais: Gael García Bernal (mexicano), Rodrigo de La Serna (argentino); e a história tem como protagonista quem viria a ser o maior revolucionário-ícone-pop latino (ou talvez mundial): Ernesto Guevara de la Serna, antes de se tornar o tão conhecido guerrilheiro “Che”.

O filme narra a trajetória de Guevara e seu amigo Alberto Granado, que saem da Argentina com a moto “la poderosa” decididos a conhecer a America do Sul, por motivos essencialmente turísticos. Mas, com o passar do longo caminho percorrido, suas visões idealistas da America exótica vão ruindo diante da dura realidade dos países por que passam. Foi essa realidade que afetou profundamente Guevara e o fez seguir o rumo militante. A transformação no fim da viagem. O que afirma Diários de Motocicleta na proposta Road Movie.

Walter Salles, como diretor, teve uma boa sensibilidade para filmar essa transformação. O filme assume o ponto de vista de Guevara, e seu interior é refletido na estética formal da imagem. Logo no começo, os planos são mais rápidos, muita câmera na mão, e a fotografia mais intensa e quente, expressando a animação de começo de viagem, o início de uma aventura. Com o andar da viagem, quando encaram um povo sofrido e injustiçado pelos mais poderosos (donos de terras), gradativamente, os planos vão ficando mais lentos e contemplativos, a fotografia mais naturalista, quase documental.

Mas o verdadeiro desafio de Diários de Motocicleta estava claro: a construção do personagem Guevara. Desafio este que Walter Salles não venceu. Diante de tal símbolo latino (ícone humano que existiu e foi inventado ao mesmo tempo), sempre pairou o questionamento: como construir sua imagem num filme? Mistificá-lo mais do que já é? Ou revelar o lado pouco explorado do humano por trás do mito? Salles resolveu mistificar, o que não acrescenta informações sobre quem Guevara realmente foi. Deu-nos mais do mesmo, o que já sabemos decorado. O filme transforma Guevara na moral cristã personificada, a bondade em pessoa, o homem honesto que nunca mente, que entende a dor do próximo, que sempre estende a mão ao mais necessitado: seja para dar tudo que tem (como no caso dos comunistas ambulantes), seja para demonstrar confiança e respeito (no caso dos leprosos). Além das alegorias primarias para demonstrar essa transformação: os 15 dólares (nada sugestivo) da sua namora que ele doa, demonstrando total desapego do material; não esquecendo a cena da travessia do rio a nado, filmada de forma grandiosa, que simboliza a concretização da metamorfose. Só falta ele virar uma borboleta no final do filme, ou Jesus Cristo.

É claro que esse não é o único filme a abordar Che dessa forma. O próprio Che (primeira parte da cinebiografia de Guevara do diretor Steven Soderbergh) vai por esse caminho, mistificando Ernesto em sua fase militar em Cuba: homem duro, mas que nunca perde a ternura. Na verdade, os dois filmes se completam, cumprindo o papel de endeusamento. Fase do pré-mito e a fase do mito.

Diários de Motocicleta seria um bom filme se não tivesse esse Ernesto Guevara idealizado. Afinal, o filme é bem filmado e bem realizado narrativamente, além do valor social-histórico: escancarando a America Latina injusta do “ontem” que reflete no hoje. Mas não podemos analisar um filme pelo o que ele poderia ser, e sim, pelo o que é, pelo que chega até nós. Diários de Motocicleta é tão idealista quanto à tão famosa imagem do Che, com sua boina e seu olhar distante, que ironicamente virou marca registrada em camisas de lojas capitalistas.

sábado, 28 de novembro de 2009

"Porque Machuca não fez historia" por Amanda Hureau


Chile, 1970. Allende está no poder, e estamos a três anos do golpe de estado. No bairro nobre de Vitacura, a escola Saint George é dirigida por um padre inglês. Como muitos dos padres estrangeiros que foram pro Chile naquela época de efervescência social, tenta promover e pôr em prática princípios socialistas, claro, mas também promover a igualdade social, o respeito e o companheirismo. Assim é como chega Pedro Machuca nessa escola, num intento de “mesclar as pêras com as maçãs”. A diferença é clara, os novos são “de camisa negra”, ou seja, mestiços e/ou de traços indigenas, e os de Vitacura, brancos e loiros. O padre é acusado por pais de alunos de querer manipular e “conscientizar seus filhos, mesclá-los com gente que eles não têem razão de conhecer”.

Num intento de reunir o (pouco) que se sabe dum tempo histórico nem tão distante, o jovem diretor, Andrés Wood, representa provavelmente grande parte da juventude chilena, que utiliza o pouco que se sabe para criar História, sua história. O problema é, justamente, que sabemos pouco. E não só os jovens. Ante a verdadeira falta de qualquer trabalho de historiador, uma análise histórica do período se ve dificultada por alguns aspectos: os documentos históricos aos quais se tem acesso são na maioria testemunhos, livros escritos por personalidades políticas (e usados com fins politicos), etc., mantendo o tema como tabu na sociedade, e ainda pior, na escola. Por tanto, talvez a unica opção restante seja se conformar. E é o que A. Wood faz.

Por que Machuca não fez história? Porque é apolítico.

Nada de ser um “filme feito por comunistas para comunistas”, nada de se posicionar. O enfoque não é o conflito político, e sua intenção não é explicar con precisão a epoca (recordemos que não é um documentarío senão um filme de ficção). E ainda menos defender o governo de Allende. É claro que não tem legitimidade histórica, nem valor histórico, nem era esse seu objetivo. O que representa é uma grave fratura social, que o conflito político simplesmente cristaliza, mas não provoca, nem inventa. O que representa é a pouca compreensão que a criança tem dessa fratura, da desigualdade, e como consequência, como ela as reproduz. O que representa é uma história linda de dois meninos de classes sociais diferentes (inclusive opostas), que tentam construir uma relação de amizade; e vemos como isto não resulta, pois no final, o que fazemos senão reproduzir o que nos ensinam? “Quando vistes que um branco seja amigo do indio?”. E não é preciso ser comunista para encontrar a história linda e amorosa. Porque o vídeo teve tanta importância no Chile? Entre outras coisas, porque não se posiciona. Seria por acaso que até pinochetistas gostaram dele?

Por que Machuca não fez história? Porque é atual.

Pois o filme não trata apenas do passado, duma época ultrapassada de confronto entre idealistas de esquerda e aqueles que lhes temiam e queriam voltar à Ordem. O filme trata, mais que nada, dum confronto social que segue sendo atual. Que não me venham dizer que já não não existem os “de camisa negra”, que já não se insulta simplesmente pronunciando a palavra”indio”, “roto”; que não me venham dizer que já não existem “os do otro lado do rio”, os “dessa favela asquerosa”, os “ordinarios”. Quem conhece o Chile sabe, perfeitamente, que ainda hoje a sociedade encontra-se fraturada entre aqueles que apoiam Pinochet e aqueles que não; e essa fratura, muitas vezes, se reflete no social: aqueles para quem tudo sobra, e aqueles para quem tudo falta. E essa fratura social é nítida. Não são meros estereótipos.

Quem conhece sabe que, tristemente, a juventude, como a pensa Benedetti, tem visto impôr-se sobre si uma “proximidade feita de incomunicação e distância”.
“A partir de uma ótica infantil, mas nada amnésica, viram uma boa parte dos duros confrontos e viram como outros adolescentes, os de sesenta e nove e setenta, eran feridos como inimigos e como seqüestraram seus país, às vezes suas mães e até seus avós, que e eles só voltariam a ver muito mais tarde e ainda atrás das grades e de longe ou também de uma proximidade feita de incomunicação e distância. E viram chorar e choraram eles mesmos junto de ataúdes que era proibido abrir, e viram como depois veio o silêncio estrondoso nas esquinas, e as tesouras nos cabelos e no diálogo, e isso sim, muito rock e jukeboxes e caça-níqueis para que esquecessem o inesquecível.” (Primavera num espelho partido, 2009, p. 95)

Quem conhece sabe, que nos foi imposto o silêncio, que nos foi dito e repetido que já não vale a pena recordar essas coisas e botar o dedo na ferida.

E é por isso que Machuca não fazendo história, nem História, conseguiu, tão somente, sensibilizar, utilizando o olhar infantil, em torno de um tema que é tabu. Mesmo se não contribuiu em nada enquanto para um trabalho histórico que todos esperamos e precisamos, talvez sim tenha elevado a curiosidade de alguns, que deixando seus “comunistas de merda” ou “pinochetistas de merda”, decidiram averiguar mais alguma coisa sobre a época, e perguntar por aquilo que foi desaprendido. Que decidiram tentar compreender, antes de assumir posturas partidárias, muitas vezes sem argumentos, nem conhecimento. E o problema é esse. Que por querer ser sensível e apolítico, não amplia ese desejo de saber mais. Pois a história é linda, e com isso, já é suficiente.

Onde foi parar o desejo de Benedetti de que aquelas “carroças, que ainda estiverem rodando, ajudem a recordar o que viram. E também o que não viram”?

"Machuca" por Henrique Vieira


Haa... Como se gosta de um bom e velho “arranca-rabo” entre a direita e os ideais comunistas. É verdade que não está mais tão em voga ultimamente - não há mais pra quê. Mas muitos saudosistas desiludidos se realizam, nem que por um momento, ao verem reativadas suas velhas e enérgicas discussões. Seus antigos temas da juventude. Afinal, o mundo era mais fácil enquanto estavam estabelecidos, bem direitinho, o bom e o malvado, cada um bem fixo em seu lado. É repousado neste tema e nesta visão simplista do mundo que Andrés Wood, jovem diretor chileno, faz um filme que, como diria Luís Fernando Veríssimo, é “profundo na superfície, mas superficial no fundo”.

O ano é 1973. O lugar, Santiago del Chile. Salvador Allende governava o Chile e o aproximava cada vez mais da esfera soviética, despertando inquietude em muitas pessoas do país. Na sociedade, duas facções se opunham: os que o apoiavam e queriam um regime socialista e os que o desaprovavam. É neste ambiente que acompanhamos um trecho da vida de Gonzalo Infante, garoto de 11 anos de classe média alta, que estuda num tradicional colégio de elite dirigido por um padre inglês. O padre é adepto às idéias socialistas e, um belo dia, decide aceitar em seu colégio alunos oriundos de uma favela próxima da escola. Entre esses alunos está o jovem Pedro Machuca, de 11 anos também, que termina se tornando amigo de Gonzalo.

A adaptação dos novos alunos não é fácil. Os “meninos ricos” zombam deles e os maltratam. Coisa que também acontece com Gonzalo. E aí se estabelece a característica mais marcante e irritante do filme: seu maniqueísmo, que aniquila qualquer possibilidade de aprofundamento na temática abordada. São os meninos bonzinhos de um lado (Gonzalo e Pedro) contra os meninos definitivamente malvados do outro. O loirinho, líder dos “meninos do mal”, se apresenta como um verdadeiro Draco Malfoy diante de Harry Potter.

Esse maniqueísmo logo toma proporções políticas quando, ao se aproximar de Pedro e de sua vida, Gonzalo se depara com o conflito entre o mundo ao qual pertence, liberal e conservador, e o mundo do colega, cujo tio e prima, inclusive, participam de passeatas comunistas e apóiam deliberadamente Allende. Além claro de perceber a desigualdade nos níveis sociais e econômicos que existe entre os dois.
O tema humano que tem por trás disso é muito interessante. Mas, infelizmente, é tratado com uma obviedade irritante. Desde o início, o filme adota seus “bonzinhos”. O padre comunista, a família de Pedro (muito simpática e prestativa), o próprio pai de Gonzalo, que defende idéias mais de esquerda. Todos eles partidários da esquerda, claro(!). Já a mãe de Gonzalo é mostrada como alguém superficial, que se preocupa demais com roupa e objetos importados e que, inclusive, trai o marido com um amigo rico que só pensa em dinheiro. Claro, ela não podia deixar de fazer parte dos “malvados” do filme, fazendo, inclusive, parte de uma passeata anticomunista num dado momento do filme.

Essa grande dicotomia é evidenciada num encontro dos pais do colégio com o padre onde muitos pais (de direita) revelam sua completa desumanidade (característica de qualquer pessoa de direita afinal, não é mesmo?) ao não quererem os “meninos pobres” perto de seus filhos, enquanto que os pais de esquerda, inconformados, defendem sua permanência.

Durante todo o filme, somos torturados por frases clichês que reforçam a irritante obviedade com que se é tratado o maniqueísmo. “Volta para a favela!”, “favelado de merda”, “meus amigos, temos que respeitar a todos de forma igual!”, ou ainda, as repetidas vezes que Pedro está diante de algum pertence de Gonzalo e exclama: “como você tem sorte!”. Como se o espectador precisasse disso para se dar conta da disparidade econômica entre os dois.

Machuca não se limita a um filme político. Na realidade o enfoque da história deveria ser mesmo o da relação de amizade entre os dois meninos. Mas esta relação está tão embainhada desse conflito político, que por sua vez é tratado de forma tão absurda, que fica difícil falar de outra coisa. O mais profundo que o filme atinge é uma sugestão de que, a meio prazo, uma relação entre dois meninos de classes sociais tão distantes se faz muito difícil, pela incompatibilidade inerente a esta relação. Mas quase não se aponta isso e é preciso meio que pegar no ar.
Finalmente, Machuca agrada àqueles esquerdistas nostálgicos que não perdiam uma oportunidade de trucidar a direita e vêem no filme seus inimigos bem definidos sendo postos como vilões. Tal os vietnamitas eram os vilões do herói Rambo. O filme chega a ser, poderíamos dizer, panfletário. Não serve como registro histórico, visto que é completamente tendencioso. É um filme de comunista feito para comunistas, numa época em que o comunismo não vale mais nada.

“Sorriam e digam WhisKY!” por Yanna Luz


“Sorriam e digam WhisKY!”

O que se sabe do processo colonial da América Latina, em suma, é que foi duro e explorador, e que os ocupantes não pouparam esforços para desconstruir os ambientes que encontraram e transformá-los em espaços com características semelhantes às dos quais eram oriundos. Aconteceu com o Brasil, de metrópole portuguesa, e aconteceu com todos os outros países da América do Sul, Central, e México - no Norte.

O que se pode dizer, então, no contexto atual de análise, sobre o que aconteceu e acontece de forma convergente com a cinematografia de tais países ocupados? O que pode ser dito é, provavelmente, o que disse Paulo Emílio em seu “Cinema e trajetória do subdesenvolvimento”, no qual alinhava o modo como tais países foram colonizados ao comportamento de seus Cinemas, tratando o primeiro fator como justificativa para o modo de conduta do segundo. Ao Brasil sobram comentários do tipo “Somos um prolongamento do ocidente, não há entre ele e nós a barreira natural de uma personalidade hindu ou árabe que precise ser constantemente sufocada, contornada e violada. (...) A peculiaridade do processo, o fato do ocupante ter criado o ocupado aproximadamente à sua imagem e semelhança, fez deste último, até certo ponto, o seu semelhante.”. Importante observar que tal análise se partirmos da mesma premissa da qual partiu Paulo Emílio, pode ser também estendida para os outros países da ‘latinoamerica’ e suas respectivas produções.

Outra conclusão que pode ser tirada sobre o atual cinema latino americano acontece ao passo que deixamos descansar na estante as breves páginas de Paulo Emílio e desfrutamos de alguns filmes recentes de tal cinematografia, tais como os vistos: Machuca, Pântano, As luvas mágicas, O filho da noiva e, por fim, Whisky. Ao nos deparamos com essas obras em sequência, e não necessariamente nessa ordem, fica impossível não sublinhar como buscam, cada uma a seu modo, possuir identidade reconhecível e peculiar. O quanto demonstram querer ser um Cinema latino-americano, enquanto conjunto de características, entre as quais algumas próprias. A ânsia de definição de fronteiras desse Cinema, em especial produzido no século XXI, pode ser reconhecida através da insistência retórica de O filho da noiva, ou das luvas mágicas, por exemplo, quanto à demarcação geográfica da trama, que ocorre geralmente
através de contextualização social e de forma óbvia em diálogos, ou ainda quando os filmes se utilizam de recursos narrativos quase novelísticos, bastante característicos, dentre outras recorrências.

Acima de tudo, é relevante a análise da característica mais marcante em todos esses filmes: a presença forte do cotidiano, não apenas como plano de fundo para as tramas, mas, como uma atmosfera que possui voz própria, atuação soberana e veiculadora de situações diárias que constituem, por fim, um posicionamento estético, o qual foi tomado por todas as obras anteriormente citadas. Dessa forma, a opção por histórias intimistas e “banais” parece ter sido uma solução plausível para um cinema de baixos orçamentos, que tem que dançar conforme a música, e até tem dançado no ritmo.

Em Whisky logo não é diferente, a abordagem do cotidiano dada pelos diretores Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll vem também dominadora, cercando os personagens Marta e Jacobo, a primeira, empregada do segundo em uma pequena fábrica de meias em Montevidéu, propriedade deste, que por sua vez, é um homem de aproximadamente 60 anos, solitário desde a morte da mãe. A relação entre os dois é distante, mas revela uma estranha interdependência. Determinado dia, Jacobo recebe a notícia que será em breve visitado pelo seu irmão, também proprietário de uma pequena fábrica de meias, sendo no Brasil (que, por sinal, é também mencionado por algumas vezes: literalmente e através de elementos citados como os famosos “dois beijinhos” ou o ainda-mais-famoso Tony Ramos, tudo participando da tentativa incansável de fazer a América Latina, como conjunto, soar familiar.). Em Jacobo tal visita reage como uma ocasião para afirmar que está com uma vida suficientemente equilibrada, oportunidade ideal para mascarar, diante do irmão, suas fraquezas. A presença desse quarto elemento na trama, (os dois primeiros seriam Marta e Jacobo, o terceiro o Cotidiano) provoca um desajuste nas articulações antes tão previsíveis e mecânicas, nos trazendo situações que se distanciam do Comum asfixiante e lodoso ao estilo de Pântano, ou ainda do cômico oferecido pelo As Luvas Mágicas: nos fazem pôr em prática um tipo de riso despretensioso e raro. Nos personagens, qualquer forma de prazer ou apreço só é apresentada do meio pro final do filme, e tudo começa com um sorriso bastante forçado para a foto de família. “Sorria e diga whisky!” é dito antes do clique em substituição esquisita ao arcaico – e até cômico- “olha o passarinho!” o comum acompanhante do flash em algumas infâncias.

Se ao início Marta era retratada sempre na fábrica, e sua imagem intercalada com planos aproximados de máquinas trabalhando incessantemente, (até lembram o plano-detalhe da agulha da máquina de costura no brasileiro Limite, de Mário Peixoto, inclusive pelos planos estáticos) de forma que uma imagem quase permeava a outra, ou que o close da máquina podia ser lido, em metáfora, quase como um close da própria Marta, (mostrando a força com a qual o Cotidiano infiltra vidas) ao final, a personagem mostra-se desvinculada desse contexto inicial. Há, ao longo da narrativa, uma descoberta dela sobre si mesma, sobre as suas diversas possibilidades de existência, e um desfecho que permitiu visão otimista ou ainda, pode se arriscar dizer em uma leitura mais ampla, que o filme ousou acreditar em progresso.

O curioso é pensar que, apesar de tamanho empenho em compor um mosaico de filmes que quase buscam a negação à tese inicial de Paulo Emilio, na tentativa de afirmar que não somos apenas um prolongamento do ocidente e de identificar uma identidade latino-americana, não soa estranho verificar o título, de única palavra estrangeira? Whisky (e não Uísque, você vai ver no Google...), por fim, convida a uma experiência interessante e apreciável de análise do panorama das recentes produções vizinhas, mas é suficiente para fazer acreditar que o cinema latino-americano é cultura original?

Somos mesmo colônias devoradas pelas metrópoles (elas, crocodilos que são!)... (desculpem o infame trocadilho musical) COTIDIANAMENTE. Ou, recaindo na trajetória do subdesenvolvimento: “de fato, o segundo [ocupante] também é nosso e seria sociologicamente absurdo imaginar a sua expulsão”? Nesse segundo caso, caros espectadores, convém ficarmos mais calmos com o Whisky de W, K, e Y. Embriaguemo-nos é de Cinema, enfim. E um brinde à Latinoamerica!

"O abraço partido" por Germana Glassner



Apesar do baixo orçamento e, consequentemente, precariedade nas produções o Cinema Argentino Contemporâneo tem se destacado como um cinema de qualidade ao apostar na profundidade psicológica de seus personagens. Um dos realizadores desse “Novo Cinema” é o cineasta Daniel Burman, que estreou na carreira, em 1997, e desde então já acrescentou a seu currículo onze filmes (quatro curtas e sete longas), entre eles a “trilogia” “Esperando o Messias” (2000), “O Abraço Partido” (2003) e “As Leis de Família” (2005), que refletem sobre temas como identidade e paternidade.

Com “O Abraço Partido” Daniel ganhou o troféu Urso de Prata no Festival de Berlim de 2004, o filme (assim como os outros da trilogia) conta a história de Ariel (Daniel Hendler) e tem como ambiente a Argentina ainda em crise, principal causa da decisão do protagonista em batalhar pelo passaporte polonês (seus avós eram poloneses) e, dessa forma, ter a possibilidade de entrar na Europa.

Ariel é um jovem que viveu na ausência da figura paterna e sofre alguns reflexos disso em sua intimidade. Ao reencontrar seu pai e descobrir que o real motivo desse afastamento é uma antiga traição de sua mãe com o vizinho, o jovem questiona as suas antigas certezas que estiveram presentes durante toda a narrativa. O filme é conduzido pelo ponto de vista do protagonista e utiliza uma câmera na mão, quase subjetiva, que acompanha de maneira intimista o personagem, exceto nas cenas em que há um distanciamento emocional da parte dele, nessas, são utilizados planos gerais e médios com a câmera fixa. A montagem picotada de acordo com o fluir de seus pensamentos, também, aumenta a sensação de envolvimento do espectador.

Tocante sem ser apelativo, com um humor sutil e uma sensibilidade amadurecida, “O Abraço Partido” é a prova de que essa nova geração de cineastas traz uma proposta que vale a pena ser conferida. Filmes como esse, mostram a vitalidade e o dinamismo a que se propõe o atual cinema latino americano, abrindo margem a grandes expectativas.

"Whisky" por Lucas Andrade


Era engano” “É, às vezes acontece”. “Digam whisky”. Um homem que abre sua fábrica todo dia no mesmo horário. Um vendedor que sempre pergunta sobre o time do cliente. Um bolo que gira da mesma forma em uma vitrine e chama a atenção de transeunte. O dono da fábrica, o cliente, o homem que se encanta com o bolo, que sempre responde que às vezes acontecem enganos e que diz whisky ao tirar fotos é Jacobo. Sua vida parece ter uma rotina preestabelecida, e realmente tem, porém, a chegada do seu irmão irá impor um novo padrão em sua vida, pelo menos no tempo em que ele permanecer lá.

Pode parecer estranho que “Whisky”, esse filme singular, tenha sido feito no Uruguai. Ao se perguntar para um grupo de pessoas quantas já assistiram produtos audiovisuais desse país, pouquíssimas, talvez nenhuma, dirão que já. Então, era de se esperar que isso ocorresse por conta da baixa qualidade da produção, porém, essa obra mostra o contrário. Com um cinema naturalista e que se preocupa com a micro-esfera, “Whisky” conseguiu sair do Uruguai e chamar atenção do mundo, tendo inclusive ganho prêmios internacionais, como no festival de Cannes.

No filme, Jacobo, um velho ranzinza, pede a ajuda Marta (sua empregada e, de uma forma estranha, sua amiga) quando sabe da chegada do seu irmão Herman ao Uruguai. Ele pede para que ela finja ser sua esposa. Não se diz de forma exata o porquê dessa mentira, mas parece claro que Jacobo precisa de alguma maneira mostrar a Herman que conseguiu levar sua vida no Uruguai de forma bem sucedida. Há uma tensão na relação desses irmãos, eles parecem se falar apenas pela obrigação do parentesco. Até a troca de presentes parece falsa (e previsível, já que ambos dão os mesmos presentes um para o outro na ida e na volta).

É esse cinema naturalista o que mais chama a atenção no filme. E ele parecia prever o que estava por vir (ou talvez já fosse reflexo disto): o “cinema romeno” que mostrou ao mundo obras bastante cruas e reais. Como no “cinema romeno” atual, “Whisky” mostra uma situação, porém, ela nunca é o mais importante. O que chama atenção do espectador são as tensões e as reações dos personagens, que tem um grande grau de realismo. Não é preciso saber porque que Jacobo é ranzinza, nem porque Herman não pode ir para o enterro da mãe, porém, é impossível não notar as expressões de desgosto que Jacobo transparece ou o ressentimento dele por seu irmão não estar presente na morte da mãe.

Existem elementos que são mostrados de forma bastante suave e talvez passe despercebido por alguns. São ações como: basta Hermam ir embora e Jacobo logo separa as camas recolocando-as na posição do começo do filme. É após a partida do seu irmão também que ele volta a tomar café no bar, que ele recomeça a chegar cedo na fábrica. Todas essas situações tentam mostram que Jacobo está tentando voltar a sua rotina, porém, algo que foge do controle dele acontece. Marta não mais chega cedo e parece que nem se quer irá chegar. Ela parece ter “fugido” para viajar e ser livre com o dinheiro que ele dera para ela. Como defende a teoria de Syd Field, o filme começa quando tudo está normal, algo acontece e no final tudo volta ao habitual, porém, é um habitual em que nem tudo é igual a como era antes. Em resumo, é isso o que realmente acontece em “Whisky”, porém, o fato de estar dentro dessa “fórmula” não faz dele um filme menor.

"O abraço partido" por Matias Wulff


“O Abraço Partido” é um filme do diretor argentino Daniel Burman (2004). Conta a história de uma familia judia em Buenos Aires, no contexto da crise do final dos anos 90. O personagem principal, Ariel, de pouco menos de 30 anos, quer sair desse pequeno universo que lhe parece oprimente. Ele mora com a sua mãe divorciada. Seu pai foi embora misteriosamente para Israel, aparentemente para se inscrever no exército, quando ele era uma criança. Ariel tem um forte rancor por essa partida vivida como um abandono covarde cheio de segredos. Também o espanta a lembrança da perda de sua namorada. Ele pretende, então, afastar-se do ambiente do centro comercial para viver na Polônia. Quer descobrir suas verdadeiras raízes, de onde escaparam seus avós judeus durante a guerra, mesmo se a entrevista na embaixada da Polônia e o subsequente choque cultural o deixam desmotivado.

O trabalho de câmera oscila entre grandes planos e efeitos handheld que guiam os espectadores na labiríntica consciência de Ariel. Além de uma mis-en-scene instintiva, Burman decidiu filmar quase tudo com câmera na mao: móvel e rápida, esta se torna um mecanismo para entrar en contato permanente com os personagems e penetrar no centro da intimidade. Assim, desde os primeiros minutos, somos absorvidos no redemoinho da vida do pequeno centro comercial, microcosmo de intercâmbio cultural entre migrantes de diversas épocas e lugares, sobretudo da comunidade judaica da Argentina, fazendo-nos entrar nas situações cotidianas mais pitorescas e simultaneamente mundanas. Passando de um personagem ao outro rapidamente, Ariel nos apresenta seu olhar do dia a dia, e dos personagems que o rodeiam: sua mae; dona de uma loja de lingerie que joga constantemente com a saudade do pai Elias, e que vive na esperança de sua volta. O seu irmao mais velho, um comerciante ambicioso, não muito bem-sucedido, viciado no trabalho. O dono da nova loja de internet, um velho idoso que tem uma relaçao ambígua e incerta com a sua secretaria, uma loira de uns 30 anos. De imediato, nota-se uma atração por essa mulher de parte de Ariel, com a qual desenvolve uma relação ao longo do filme. Sua avó, sobrevivente de um campo de concentração, que pode ajudar a seu neto para obter a nacionalidade polonesa, mas que resguarda os segredos da familia, e sobretudo conhece a história do fantasma que atormenta e espanta a Ariel: Elias. Alem disso, a dificuldade comunicacional com uns novos donos de uma loja coreana, dá um caráter mais absurdo a esse mundo. A presença do pai é notável na sua vida, mostrada pelas conversas, pelos detalhes do comportamento das pessoas da galeria, pelas preocupações de Ariel.

Ao longo do filme, Burman emprega sua câmera voluntariamente caótica para traduzir no cinema as atribulações de Ariel e cristalizar sua procura balbuceante de identidade. Sem cair no Pathos, e sem perder a leveza, ele descreve os dilemas e as perguntas existenciais de Ariel: Ficar na Argentina com sua família disfuncional, num país em plena crise econômica ou partir para a Polônia? Fugir dos demônios do passado ou procurar as lembranças dos próximos para entender-se? Desfazer-se do seu pai para sempre ou reencontrar-se com ele no momento em que ele ressurge repentinamente na sua vida ? Para viver vai ter que tomar a dura decisão entre esquecer e dar as costas ou enfrentar os seus tormentos, e assim, descobrir outra realidade, aprender a perdoar.

Além de tocar o clássico tema da busca de identidade, o filme denota bem esses elementos que fazem a particularidade da comunidade judaica argentina: seja através da paixão secreta da avó pela canção yiddish, ou da relação mãe – filho extremadamente complexa. Não faz questão de uma exaltação das peculiaridades, mas do culto aos detalhes que dão ao mesmo tempo realismo e interesse ao filme. São esse detalhes que podem construir uma mensagem universal sobre as relações humanas, ainda que esse não fosse o objetivo de Burman.

Parece uma crônica agridoce sobre uma minoria e uma juventude em sofrimento, O abraço partido traz atuações autênticas e memoráveis (com Daniel Hendler no papel de Ariel), o filme é engraçado e tocante. O filme faz parte do novo cinema argentino e seu humor cínico judeu é comparável a Woody Allen. Um filme de risadas curtas e repetitivas que nos lembra da dificuldade de nos tornarmos, simplesmente, nós mesmos.

“O ano em que meus pais saíram de férias” por Clara Pérez


Em 1970 o Brasil foi tri-campeão de futebol da Copa do Mundo no México. Infelizmente, nem tudo no país era digno de ser celebrado na época. Pelo contrário, os jogos de futebol serviam, em parte, como fator de evasão da situação política. O Brasil atravessava o período mais turvo do regime militar começado em 1964 e cuja repressão contra os inimigos políticos e qualquer possível ameaça à ordem militar se incrementou consideravelmente depois que Médici assumiu a presidência no ano 1969. É nesse contexto que está ambientado “O ano em que meus pais saíram de férias”, segundo longa-metragem do cineasta e roteirista Cao Hamburguer.

Nele, o direitor conta a história de Mauro, um garoto de Belo Horizonte de doze anos, cujos pais se vêem obrigados a “sair de férias” (versão dada ao menino para evitar ter que explicar-lhe que teriam que entrar para a clandestinidade em virtude da perseguição política que sofreriam pelo regime militar em consequência de suas ideologias de esquerda). Por causa destas “férias” impostas aos pais, Mauro deve ir morar com seu avô paterno em São Paulo (no bairro do Bom Retiro, conhecido pelas comunidades de imigrantes que se abrigavam lá) só que a sua inesperada morte dá um rumo inesperado à história. O menino, agora longe de sua família, tem que afrontar seu novo cotidiano numa comunidade bem particular composta pelo velho e solitário Shlomo (um judeu vizinho do avô), pela menina Hannah ou pelo estudante e ativista político Italo, de origem italiana, entre outros. Isso não será facil para ele já que terá que se adaptar à nova realidade que lhe rodeia ao mesmo tempo em que, ansioso, espera em vão uma ligação dos seus pais ou a chegada do dia da Copa do Mundo, dia no qual seu pai prometeu voltar. Este novo cotidiano de Mauro, seu instinto de sobrevivência que vai ter que desenvolver ao máximo durante os longos momentos que passa sozinho, sua ingenuidade inicial da qual pouco a pouco vai se desprendendo até deixar atrás parte de sua infância (de uma forma meio forçada com acontecimentos que vão obrigar-lhe a madurar), a paixão pelo futebol (elemento socializante e fator de evasão até no Brasil atual)... Estes são os principais temas deste filme que, de fato, poderia ir bem mais longe e aprofundar a atual conjuntura do país, ao invés de se prender de forma até certo ponto exaustiva sobre o cotidiano de Mauro, durante o que foi a fase mais sanguinária da ditadura militar brasileira.

O filme se compõe de algumas das lembranças pessoais do diretor que, como o protagonista, viveu a persecução política dos seus pais e que também adorava o futebol e foi goleiro na sua infância: “Muito da história do filme é parte de minhas memórias e das do Cláudio [outro dos roteiristas do filme]. Não é um filme autobiográfico, mas contamos muito de nossa própria infância nele”. De fato, a figura do goleiro é recorrente a todo o filme, fazendo alusão à metáfora deste jogador que, como Mauro, tem que sozinho o jogo ao qual está participando e escolher as melhores táticas para vencê-lo, sendo também o único membro que não possui o direito de errar.

O contexto histórico-político da ditadura e do tricampeonato mundial no México é um simples plano de fundo, sendo a questão principal a confusão do garoto Mauro frente a sua situação pessoal após o “abandono” por parte dos pais, e também com respeito à situação nacional da qual desconhece (parece que só no final do filme, com a detenção de Shlomo e a fuga de Italo, Mauro começa a perceber que algo fora do normal está acontecendo no Brasil). Com relação à análise do personagem de Mauro, aos seus sentimentos antagônicos (solidão e tristeza ligadas às saudades dos pais mas também pequenas alegrias infantis ligadas ao futebol, aos novos amigos...), o filme alcança as expectativas. Da mesma maneira que desde o ponto de vista técnico, conta com um elenco qualificado, desde o menino, até as interpretações da mãe dele, de Hannah, de Shlomo, de Irene... todas elas são inquestionáveis.

No entanto, é uma pena que um filme ambientado na fase mais cruel do regime autoritário seja tão superficial e tão alheio à realidade política que atravessava o país. É verdade que nem todos os filmes sobre um período histórico particular precisam ser documentais ou tratarem aspectos exclusivamente históricos, mas qual o interesse da história de um menino que sendo filho de perseguidos políticos, conta uma história até certo ponto banal? Que retrata um dia a dia no qual poderia ter qualquer outro menino morando em qualquer outro país, democrático ou não, (excluindo as cenas das pixações contra a ditadura que Mauro observa pela janela e algumas cenas finais, mas bem escasas e sempre superficiais, sem aprofundar nem um pouco na questão). Infelizmente, o filme limita-se a contar a história de um garoto que mora isolado de mais no seu prédio, totalmente inconsciente da realidade do Brasil do ano 1970, que como todos os garotos do mundo inteiro toma banho queixando-se da água fria, não gosta de ficar longe dos pais, espia mulheres bonitas, etc, etc. Tudo isso, na minha opinião, carece de interesse uma vez que já fizeram intermináveis filmes retratando essas mesmas coisas... até dá para entender porquê, segundo a crítica, as crianças que viram o filme gostaram dele. Mas para aquele que quiser, não necessariamente falo em saber um pouco mais sobre aquele ano do auge da repressão durante a ditadura militar, mas simplesmente se aproximar dos sentimentos das pessoas comuns que viveram aquilo, melhor abster-se de ver “O ano em que meus pais saíram de férias”, que pouco contribui neste sentido.