sábado, 28 de novembro de 2009

"Porque Machuca não fez historia" por Amanda Hureau


Chile, 1970. Allende está no poder, e estamos a três anos do golpe de estado. No bairro nobre de Vitacura, a escola Saint George é dirigida por um padre inglês. Como muitos dos padres estrangeiros que foram pro Chile naquela época de efervescência social, tenta promover e pôr em prática princípios socialistas, claro, mas também promover a igualdade social, o respeito e o companheirismo. Assim é como chega Pedro Machuca nessa escola, num intento de “mesclar as pêras com as maçãs”. A diferença é clara, os novos são “de camisa negra”, ou seja, mestiços e/ou de traços indigenas, e os de Vitacura, brancos e loiros. O padre é acusado por pais de alunos de querer manipular e “conscientizar seus filhos, mesclá-los com gente que eles não têem razão de conhecer”.

Num intento de reunir o (pouco) que se sabe dum tempo histórico nem tão distante, o jovem diretor, Andrés Wood, representa provavelmente grande parte da juventude chilena, que utiliza o pouco que se sabe para criar História, sua história. O problema é, justamente, que sabemos pouco. E não só os jovens. Ante a verdadeira falta de qualquer trabalho de historiador, uma análise histórica do período se ve dificultada por alguns aspectos: os documentos históricos aos quais se tem acesso são na maioria testemunhos, livros escritos por personalidades políticas (e usados com fins politicos), etc., mantendo o tema como tabu na sociedade, e ainda pior, na escola. Por tanto, talvez a unica opção restante seja se conformar. E é o que A. Wood faz.

Por que Machuca não fez história? Porque é apolítico.

Nada de ser um “filme feito por comunistas para comunistas”, nada de se posicionar. O enfoque não é o conflito político, e sua intenção não é explicar con precisão a epoca (recordemos que não é um documentarío senão um filme de ficção). E ainda menos defender o governo de Allende. É claro que não tem legitimidade histórica, nem valor histórico, nem era esse seu objetivo. O que representa é uma grave fratura social, que o conflito político simplesmente cristaliza, mas não provoca, nem inventa. O que representa é a pouca compreensão que a criança tem dessa fratura, da desigualdade, e como consequência, como ela as reproduz. O que representa é uma história linda de dois meninos de classes sociais diferentes (inclusive opostas), que tentam construir uma relação de amizade; e vemos como isto não resulta, pois no final, o que fazemos senão reproduzir o que nos ensinam? “Quando vistes que um branco seja amigo do indio?”. E não é preciso ser comunista para encontrar a história linda e amorosa. Porque o vídeo teve tanta importância no Chile? Entre outras coisas, porque não se posiciona. Seria por acaso que até pinochetistas gostaram dele?

Por que Machuca não fez história? Porque é atual.

Pois o filme não trata apenas do passado, duma época ultrapassada de confronto entre idealistas de esquerda e aqueles que lhes temiam e queriam voltar à Ordem. O filme trata, mais que nada, dum confronto social que segue sendo atual. Que não me venham dizer que já não não existem os “de camisa negra”, que já não se insulta simplesmente pronunciando a palavra”indio”, “roto”; que não me venham dizer que já não existem “os do otro lado do rio”, os “dessa favela asquerosa”, os “ordinarios”. Quem conhece o Chile sabe, perfeitamente, que ainda hoje a sociedade encontra-se fraturada entre aqueles que apoiam Pinochet e aqueles que não; e essa fratura, muitas vezes, se reflete no social: aqueles para quem tudo sobra, e aqueles para quem tudo falta. E essa fratura social é nítida. Não são meros estereótipos.

Quem conhece sabe que, tristemente, a juventude, como a pensa Benedetti, tem visto impôr-se sobre si uma “proximidade feita de incomunicação e distância”.
“A partir de uma ótica infantil, mas nada amnésica, viram uma boa parte dos duros confrontos e viram como outros adolescentes, os de sesenta e nove e setenta, eran feridos como inimigos e como seqüestraram seus país, às vezes suas mães e até seus avós, que e eles só voltariam a ver muito mais tarde e ainda atrás das grades e de longe ou também de uma proximidade feita de incomunicação e distância. E viram chorar e choraram eles mesmos junto de ataúdes que era proibido abrir, e viram como depois veio o silêncio estrondoso nas esquinas, e as tesouras nos cabelos e no diálogo, e isso sim, muito rock e jukeboxes e caça-níqueis para que esquecessem o inesquecível.” (Primavera num espelho partido, 2009, p. 95)

Quem conhece sabe, que nos foi imposto o silêncio, que nos foi dito e repetido que já não vale a pena recordar essas coisas e botar o dedo na ferida.

E é por isso que Machuca não fazendo história, nem História, conseguiu, tão somente, sensibilizar, utilizando o olhar infantil, em torno de um tema que é tabu. Mesmo se não contribuiu em nada enquanto para um trabalho histórico que todos esperamos e precisamos, talvez sim tenha elevado a curiosidade de alguns, que deixando seus “comunistas de merda” ou “pinochetistas de merda”, decidiram averiguar mais alguma coisa sobre a época, e perguntar por aquilo que foi desaprendido. Que decidiram tentar compreender, antes de assumir posturas partidárias, muitas vezes sem argumentos, nem conhecimento. E o problema é esse. Que por querer ser sensível e apolítico, não amplia ese desejo de saber mais. Pois a história é linda, e com isso, já é suficiente.

Onde foi parar o desejo de Benedetti de que aquelas “carroças, que ainda estiverem rodando, ajudem a recordar o que viram. E também o que não viram”?

5 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. bastante interessante o contraste do teu texto com o de henrique, que falam do mesmo filme com abordagens diferentíssimas.

    Me fez lembrar o contraste que aconteceu (de uma forma engraçada) quando eu escrevi sobre A paixão de Joana Darc no outro blog, e Gustavo também...

    tá muito bonito (e relevante) o que tu escreveu. beijinho.

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  3. muito legal, amanda! um olhar sensato e desarmado de conceitos pré-definidos e escorregadios... parabéns!

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  4. muito legal, amanda! um olhar sensato e desarmado de conceitos pré-definidos e escorregadios... parabéns!

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  5. obrigada gente! agradeço os comentários!

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