domingo, 30 de maio de 2010

"O feio fato feito " por Victor Laet


O feio fato feito (1)
Um defeito. Na verdade, uma observação: existe o fato e existe o feito. A uns importa o fato. A outros, a importância maior é o feito. O feito pode se torna fato, mas o fato não necessariamente precisa ter sido feito – sendo fato já é considerado feito, ocorrendo (de fato) ou não. O fato é (se não sempre legitimado) aceito. O feito só é deveras fato caso possa ser provado. O fato nem sempre é feio. O feito, nem sempre é feio. Outro defeito (ou outra observação): o mais feio é o fato feito ou o fato que não feito? Ou, o feito que não é o fato ou o feito que é fato?

Um feito. Em 1983, a ditadura militar na argentina conhecia o seu fim e se iniciavam as gravações de “La historia oficial” (2) : fato. Outro feito: as gravações foram interrompidas por dois anos devido às ameaças recebidas pela parte técnicas: fato. Neste jogo de palavras e cacofonia foi construída a estória do filme, a qual narra, em suma, a busca da verdade por uma professora de história (de cunho positivista).

Norma Aleandro protagoniza Alicia, uma típica mãe e esposa da burguesia argentina em 1985. Com o cabelo sempre preso, suas roupas discretas, com tons coloridos, mas comportados ela leciona história argentina para o ensino médio num colégio só de homens. No primeiro dia de aula a professora capitula que “a história é a memória do povo” e com o passar de suas aulas demonstra claramente sua adoção ao positivismo histórico ao validar, como uma ciência exata, os fatos. Documentação, fontes, para ela a memória do povo só é aquela a qual pode ser provada, documentada, datada.

O fim da ditadura faz com que os argentinos exilados e auto-exilados retornem e (somados aos que aqui estavam) se indaguem quanto a questões financeiras e desaparecidos e presos políticos (3) . Esse fato (e feito) é adotado pela diegese do roteiro e assim a trama evolui grandiosamente: depois de anos distante, Alicia reencontra uma Ana, uma amiga a qual foi exilada e esta a revela sobre feitos (não considerados até então como fatos) da ditadura. A partir daí a professora de história desperta um olhar de que nem sempre a história é como se contada, registrada. Como um aluno, o qual ele repreende, afirmou: ‘a história é escrita por vencedores’.

O despertar tipo pela protagonista não é só na forma como aborda sua metodologia. Incapaz de engravidar, ela e marido decidem adotar uma criança. Ao ter a menina, o casal pactua em nunca falar sobre a adoção e tratam de registrar e escrever uma história (ou a estória) da filha. Com o despertar, Alicia se depara com o fato de que os feios feitos ocultos da ditadura podem ter sido por aqueles os quais a ajudaram a sua família construir uma boa vida, sendo o mais feio destes feitos, o fato de sua filha poder ser uma filha de algum desaparecido político.

É nesta busca pela identidade da filha, na história da filha, na negação da estória documentada da filha que reside a força do roteiro e, principalmente, da direção de arte e cenografia do filme (4). Quanto mais se aproxima da verdade, mais colorida e livre a personagem se veste, mais solto fica o corte de cabelo (5).

O filme ainda aborda rapidamente questões como o apoio da igreja quanto à junta militar instituída e as guerras das Malvinas. O fotograma acima mostra uma das cenas de maiores tensões, pois apresenta relacionamentos familiares e visões políticas. Os sogros da personagem principal são espanhóis comunistas fugidos da ditadura franquista. Geralmente, discussões entre socialismo e capitalismo tendem a ser cansativas e, muitas vezes, imbecis. Não nesse caso.

“La historia” enturma uma lista de filmes argentinos feitos no período pós Galitieri. Esses filmes são caracterizados por um registro honesto e direto das torturas, repressões e desaparecimentos de opositores ao regime militar na segunda metade da década de 70. Junto do longa-metragem de Puenzo, são muito citados “No habrá más penas ni olvido” (1983, de Héctor Olivera) e “La noche de los lápices” (1986, de Héctor Olivera).

NOTAS:

1. Feio” sempre será, nesse texto, um eufemismo.

2. “La historia oficial”, direção de Luiz Puenzo, roteiro de Luiz Puenzo e Aída Bortnik, Argentina, 1985. (Título no Brasil: “A história oficial”).

3. “MILICOS, MUY MAL PARIDOS,
¿QUE ES LO QUE HAN HECHO CON LOS DESAPARECIDOS?,
LA DEUDA EXTERNA LA CORRUPCION,
SON LA PEOR MIERDA QUE HA TENIDO LA NACION,
¿QUE PASO CON LAS MALVINAS?, ESOS PIBES YA NO ESTAN,
NO DEBEMOS OLVIDARLOS… Y POR ESO HAY QUE LUCHAR…”

4. Direção de arte de Adriana Sforza e Cenografia de Ticky García Estevez

5. http://pelisargentinas.com/wp-content/uploads/2010/03/lahistoria-caps.png

sábado, 29 de maio de 2010

"Silvia Prieto", por Filipe Marcena


Silvia Prieto é o nome do filme. Você assiste e descobre que Silvia Prieto é uma mulher de 27 que acabou de se separar do marido e decidiu mudar de vida, conseguindo um emprego como garçonete e parando de fumar maconha. Também conhecemos seu ex Marcelo, uma moça chamada Brite que distribui amostras de um detergente que tem o mesmo nome que ela, um italiano que tem seu casaco Armani roubado por Silvia, e Gabriel, colega de Marcelo que é obcecado por desodorantes. Isso importa? Sim e não. Silvia Prieto, o filme, não é apenas sobre Silvia Prieto, a mulher. Nem mesmo é apenas sobre essas pessoas.

Estranha essa comédia do diretor argentino Martin Rejtman. Há algo de Eric Rohmer em seus personagens excêntricos e falantes e nos seus planos simples e funcionais, e também ares de David Lynch quanto ao comportamento das pessoas e na bizarra imprevisibilidade narrativa. Aliás, chamar o filme de “comédia” já é um rótulo suspeito, já que o humor de Silvia Prieto é extremamente sutil, esquisito. Na verdade é um filme quase repulsivo na estrutura episódica do roteiro, que é pecado para a maioria dos filmes, mas que é a base da criação de Rejtman. As conexões e eventos que ocorrem em Silvia Prieto são tão absurdos, a personalidade das criaturas que habitam esse filme é tão atípica que é impossível não se perguntar onde diabos aquilo tudo vai parar durante a projeção. Não há uma resposta satisfatória, mas, oh céus, o filme não é sobre a história.

Silvia Prieto, a mulher, prepara sempre quatro galinhas todo jantar, conta cada café que serve no restaurante onde trabalha e descobre que existe outra Silvia Prieto na cidade. Obcecada, a nossa Silvia decide conhecer a outra. Silvia também ganha de Brite uma boneca parecida com ela, que ganha seu nome. Já são três Silvias e a contagem ainda não terminou. Enquanto o filme discorre sobre o nada e sobre o quanto Silvia e companhia são superficiais, ocorre algo que prendeu minha atenção: os personagens comem muito, o tempo todo. De cinco em cinco minutos, alguém aparece num restaurante comendo alguma coisa. Ou comendo a galinha de Silvia Prieto, a primeira. Imagino se não teria sido essa a saída escolhida por Rejtman para nos aproximar daquelas pessoas, o estômago e a fome que une todos nós humanos. Funciona em partes, e não sei se pelas razões que o diretor desejava. Eu só queria saber se (e o quê) os amigos de Silvia estariam comendo na cena seguinte.

Reconheço um grande mérito em Silvia Prieto. Para um filme que depende tanto de acontecimentos corriqueiros e coincidências para se desenvolver, ele é muito mais bem sucedido que filmes como “Crash” (2004, Paul Haggis), “Babel” (2006, Alejandro Gonzáles Iñarritú) ou “Paris” (2009, Cédric Klapisch), pois, por mais imprevisíveis e incomuns que sejam seus personagens, existe uma naturalidade inegável na evolução das ações, a ponto de você questionar os absurdos que acontecem e ainda assim seguir em frente. Creio que se esse não fosse o caso, Silvia Prieto seria insuportável. E na verdade é um filme “agradável”, à sua maneira errática. Para terminar, Silvia Prieto ainda mostra uma reunião de Silvias Prieto contando histórias de suas vidas, sem se importar em nos dizer se elas realmente tem esse nome ou não. E não importa, afinal. O que importa é a experiência. Ainda não sei quem é – ou quem são - Silvia Prieto, mas dificilmente vou esquecer que a(s) conheci.

"O sorriso de uma vida" por Thiago Rocha


Sempre soou estranho quando se via nos filmes do italiano Bernardo Bertolucci os personagens falando em inglês, independente das questões geográficas. Entendia por um lado a vontade de dar um alcance internacional ao filme, mas por outro, não engolia a clara contradição de filmar em ambientes, lugares onde só as pessoas mais ricas poderiam falar inglês, e olhe lá. De qualquer forma, eram produções internacionais e tinham que atender a especificações do mercado. É o caso também dessa co-produção argentina e inglesa O Sorriso De Uma Vida (Eversmile, New Jersey, 1988), de Carlos Sorín.

A maior contradição no caso desse filme se dá por conta de que todos personagens falam inglês (homens, mulheres, crianças, bandidos), quer dizer, tem um quê de internacionalidade numa região, a patagônia argentina, que é mais tratado por suas idiossincrasias, seus costumes particulares, quer dizer, seu confinamento. Mal comparando, poderíamos chamar a patagônia de “sertão argentino”. Pelo menos no que se refere ao quesito paisagem. Na questão de como ela entra na narrativa dos filmes, é bem diferente. Geralmente a patagônia é mais explorada por seu isolamento, sua solidão. É mais uma paisagem emocional, onde os personagens entram na trama influenciados por esse espaço, por essa atmosfera especial, longínqua. Já o sertão é uma paisagem social, na qual se valoriza temas como a miséria e a fome. Os personagens servem mais a uma alegoria do que quer se representar como a desgraça nacional. Claro que há exceções. A patagônia já foi local de guerra, como em A Patagônia Rebelde (Hector Oliveira, 1974), assim como o sertão também já foi explorado de forma mais parecida com o cinema argentino com o mais recente caso de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (Marcelo Gomes e Karin Ainouz, 2009).

Fora isso, o filme trata-se de um gênero bem caro ao cinema latino americano: o road movie. E como tal, ele não foge de certos aspectos inerentes à construção desse gênero, como paisagens naturais e humanas, movimento pela estrada, busca por autoconhecimento, encontros com vários personagens. Mas curiosamente, talvez por se tratar de cenários parecidos, Sorín filma seus temas e personagens de forma semelhante a outro gênero: o western. Digo isso porque encontro muitas semelhanças, como por exemplo, os planos abertos mostrando a paisagem do local, onde aparece bem enfatizado o céu todo azul e as planícies arenosas e inférteis; os enquadramentos de Fergus O’Conell (Daniel Day-Lewis), um dentista representante de uma espécie de ONG dentária, que viaja pela América Latina para fazer tratamentos gratuitos para a população, são quase sempre em contra-plongée, como que engrandecendo a figura desse civilizador de um mundo cruel e ignorante tal qual um herói do Velho Oeste.

Sorín realizou esse filme depois de um importante prêmio no Festival de Veneza. Foi um fracasso comercial. Só depois de catorze anos o diretor realizaria outro filme, num esquema de produção bem mais simples, diferente deste. O Sorriso De Uma Vida é um filme estranho, resultado talvez de uma vontade de produção internacional que se demonstrou frustrada.

"Amores Brutos", por Amanda Beçça


O México é uma referência mundial para o cinema produzido na América Latina desde a sua época de ouro nos anos 40, com “Maria Candelária” para o filme-auge. Depois disso, o cinema mexicano sofreu uma decaída com a “invasão” do americano e apenas poucos filmes – “A Montanha Sagrada” e “A Paixão Segundo Berenice”, por exemplo – conseguiram destaque nesse período que durou dos anos 50 até os 90. Na década antes da virada do milênio é que o cinema no México começou a engrenar novamente até chegar a proporções mundiais, como foi o caso de Amores Perros.

Amores Perros, ou Amores Brutos como traduzido no Brasil, é o primeiro filme de Alejandro Gonzáles Iñárritu, que logo conseguiu importância internacional por sucesso de público, crítica e prêmios em diversos festivais. Talvez ele a tenha conquistado pela união que Alejandro fez de uma temática universal e atual de amor e violência, com a qual todos podem se identificar, com o pano de fundo na realidade urbana da Cidade do México, que consegue tornar o filme bastante regional.

O filme é divido em três grupos e neles o tema das relações amorosas e familiares é o ponto em comum. O que os une é um único acidente de carro que acontece para mudar a vida dos personagens. Há um grande contraste entre as três histórias: o roteiro dá um passeio pelas realidades de pessoas da classe alta e baixa da sociedade, e mostra que mesmo diferentes todas elas têm problemas e são vulneráveis à vida.

No primeiro núcleo, Octavio e Susana, os personagens estão sujeitos à condição periférica e de baixa renda em que vivem e enfrentam problemas como a violência, a delinqüência e a desestrutura familiar. Octavio tem uma péssima relação com seu irmão, Ramiro. Ramiro, marido de Susana, a maltrata e assalta lojas e supermercados para obter uma maior renda. Todos tentam, à sua maneira, um meio de sobreviver das suas condições, seja tentando conviver com o caos, seja ganhando dinheiro fácil pra poder fugir dali. De qualquer modo, o coletivo se sobrepõe ao individual, e o choque entre as vontades de cada um sucede a tragédia que conecta os núcleos do filme. É impossível construir seus próprios caminhos: eles estão presos e engolidos pelo que a periferia tem a lhes tornar e a lhes oferecer.

No segundo, mostra a camada rica, com Valeria, uma modelo cuja carreira estava em alta, e Daniel, empresário que largou a família para viver feliz ao lado dela. Uma condição totalmente contrastante com a do primeiro grupo: Valeria optou por construir uma carreira e agora esta vendo os sucessos de todos os seus esforços. Do lugar mais privilegiado onde ocupa na sociedade, ela consegue criar um destino próprio. E ainda assim fica a mercê das causalidades e tragédias da vida: depois de sofrer o acidente de carro, não há nada que a mantenha em cima do topo. Depois que sua carreira desaba, sua vida bem estruturada se mostra não tão bem estruturada assim, ela é frágil como qualquer outra. E isso logo atinge sua relação com Daniel, que é quando tudo começa a – facilmente – sair do controle e tomar proporções permanentemente irreversíveis.

No terceiro núcleo, que se introduz pouco a pouco a partir do segundo e do primeiro, tem-se Chivo, o personagem mais misterioso. Pouco se sabe sobre ele: ex-guerrilheiro, matador de aluguel e afastado de sua família. O resto são palpites. O que se pode conhecer, ou reconhecer, é que ele vive as ações que optou tomar em contrapartida às conseqüências de suas escolhas anteriores. E é, em essência, aquilo que resultou a soma de seus ideais com as impossibilidades que o caos da sociedade teve a oferecê-lo. Na sua amarga alma pode não ter ferimentos, mas é cheia de profundas cicatrizes.

Tudo contribui para a sensação de desordem, de caos: a mise-en-scène é bagunçada, as cores são mortas e a câmera é nervosa. Iñárritu não economiza para deixar a atmosfera do seu filme a mais pessimista possível, ele leva e deixa os seus personagens na rua da amargura. Cada grupo pode estar no estágio que for das suas vidas, mas nenhum é feliz com as conseqüências de suas escolhas e são condenados à angústia e à dor. O que pode até ultrapassar um pouco a carga de realidade, mas é a medida certa para que essa “vulnerabilidade” do ser humano para com a vida fique explícita.

Por fim, cada grupo de personagens passa a idéia de um estágio: Octavio está no primeiro, na luta pelos seus sonhos. Valeria esta vivendo o que Octavio quer: seu sonho concretizado. E Chivo vive, desde o começo, a falência dos sonhos que conquistou, é o pós game-over. O que lhes resta é o troféu Lição de Vida, mas quem disse que era isso o que eles queriam? O Felicidade tão almejado se mostra, afinal, um ideal inalcançável.

"Terra em transe" por Kianny Martinez


Terceiro longa-metragem dirigido por Glauber Rocha, "Terra em transe" transcende o cinema novo ou seria o novo cinema? Grande resposta do cinema brasileiro ao golpe militar que ocorreu em 1964. Um dos filmes brasileiros que mais repercutiu até hoje, fruto do Cinema novo que surge no contexto de movimentos como a nouvelle vague francesa e o cinema independente norte-americano. Tendo por base os trabalhos realizados mundialmente no que diz respeito à utilização do cinema para difundir idéias e estilos que quebrassem com a hegemonia do cinema hollywoodiano. Assim construíram filmes que priorizavam a participação do espectador com o intuito de que esse assumisse uma postura crítica em relação ao conteúdo abordado nos filmes, rejeitando a idéia de massificação do produto audiovisual.

"Terra em transe" critica de forma até um tanto quanto satírica a grande figura do líder populista e a extensa ‘massa alienada’ que se deixa influenciar pelo mesmo. Pode ser interpretado também como uma grande parábola da história do Brasil entre as décadas de 60 e 70, enquanto que alegoriza em seus personagens diversas tendências políticas existentes no Brasil desta época. Além de realizar massivamente críticas a todos aqueles que participaram desse processo, incluindo as diversas correntes da chamada esquerda brasileira. Um dos motivos pelos quais foi tão mal recebido pela crítica e pelos intelectuais nacionais. Utilizando de um freqüente veículo utilizado pelo Cinema Novo, a alegoria, Glauber cria Eldorado, país fictício da América Latina, grande visão, já que o filme visa retratar a totalidade da América Latina e não só o Brasil.

A forma narrativa do filme é a forma com a qual Glauber transporta suas idéias políticas e sociais. A fotografia não é esteticamente tão bela, ela puxa bastante para o real, sem filtros e fazendo bastante uso da luz natural da cena. Fato que pode ser percebido pelo branco que às vezes se destaca na cena, a imagem “estourada” devido ao excesso de luz. As cenas causam até um pouco de estranheza devido à atuação um tanto quanto forçada dos personagens, o fato de não captarem o som direto e de Glauber dá ordens enquanto filmam para que se capriche na atuação também influência nesse fato. E assim percebemos uma espécie de carnavalização nas cenas de cunho mais político, o que marca bem o filme. Creio que de maneira proposital.

Mesmo com o excesso de alegorias tão utilizado no Cinema Novo e no próprio Terra em transe, não se vê reduzido à banalidade as questões complexas. Como poucos, ele explorou o lado mais forte e abstrato da linguagem cinematográfica: “É preciso libertar a imaginação e entender o cinema em seu plano audiovisual”, dizia ele.

Em “A alegoria histórica”, Ismail Xavier define muito bem a noção de alegoria como “a concepção de que um enunciado ou uma imagem aponta para um significado oculto e disfarçado, além do conteúdo aparente”. Assim, é visível a necessidade de inserir o espectador na obra para que ocorra a identificação dos processos alegóricos. Em Terra em Transe o convite à interpretação alegórica é traçado a partir de estratégias de montagem e principalmente da caracterização dos personagens a partir de sua posição política e social.

Como os dois outros filmes anteriormente realizados por Glauber, Terra em transe é paradigmático, onde a forte crítica social se une a maneira de filmar que pretendia quebrar totalmente com o estilo ‘importado dos EUA’. É impressionante a capacidade que algumas obras possuem de permanecerem atuais e com seu caráter reflexivo intactos mesmo com o passar do tempo. Cheio de estilo e de idéias era ele.

“Iracema, Uma Transa Amazônica”, por Paulo Fernando de Sá


Filmado envolta do clima da construção da famosa Transamazônica, estrada que para grande parte da população brasileira seria uma das saídas para conectar o norte do país com as demais regiões, o filme Iracema, dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna, mostra, através de uma mescla do ficcional com o documental, a história de uma índia que sai de seu habitat de origem e começa a se prostituir. Além da personagem da índia, interpretada por Edna de Cássia, também existe a figura de Tião Brasil Grande, vivido por Paulo Cezar Pereio, que na obra é um caminhoneiro fascinado pelo suposto impulso de modernização que ocorre no Brasil da época, dos anos 1970.

Através de abordagens com facetas denunciadoras, jornalísticas e contestatórias é que o filme mostrou ao espectador brasileiro e internacional - pois o filme viajou por vários festivais fora do país – a real problemática do Brasil. É válido ressaltar que o governo da época estava estimulando a produção de filmes, e de outros meios de divulgação, que mostrassem ao povo o que o próprio governo estava fazendo em prol da nação. Não foi bem por esse caminho, porém, que Bodanzky, também roteirista do filme, decidiu caminhar, apesar do filme ter esse propósito no princípio. Há presença de vários planos de duração longa, acima da esperada, retratando queimadas, desmatamentos, precariedades de higiene; a câmera na mão também se faz presente durante praticamente todo o filme, retratando verdadeiros depoimentos de pessoas, as quais serviriam como figurantes, sobre suas condições e situações de vida; o zoom e o close-up são recursos usados para enfatizar o banal, mostrar os diferentes rostos de diferentes pessoas , as diferentes ações, os olhares perdidos.

O personagem de Pereio é a representação da adesão ao governo da época, ou pode ser encarado como o próprio governo. Sempre defendendo o processo de modernização do governo brasileiro nas suas conversas nos diferentes municípios em que visita, Tião faz com que contestemos a atuação do governo no país, ou seja, instiga nosso olhar crítico a respeito da situação. Há um contraste claro entre a posição exercida pelo personagem de Pereio e a real situação do país mostrada no filme, onde os problemas ecológicos – desmatamentos e queimadas – e sócio-econômicos – prostituição, tráfico de seres humanos e mau planejamento na administração do dinheiro público – se mostram tão gritantes.

O filme mostra, através de clara tomada de posição, sendo esta nada pacífica, muito mais que a trajetória de uma indiazinha rumo à prostituição e decadência. Critica a situação sócio-econômica e ecológica brasileira, assim como levanta questões que permanecem em voga até hoje.

"Como se faz um filme sobre uma carta." Por Luciano Monteiro


Os anos 60 e 70 foram, certamente, os anos mais revolucionários para a sétima arte. Com o estopim do cinema novo e do chamado terceiro cinema na América Latina o mundo viu, pela primeira vez, os rostos e vozes desse povo tão oprimido, terceiro-mundista. Cineastas como Glauber Rocha no Brasil e Fernando Solanas, oriundo da Argentina, davam a palavra de ordem dos novos cinemas.

Dentre os brasileiros um dos que mais teve representatividade dessa geração foi o carioca Arnaldo Jabor. Com uma filmografia destacada pela experimentação, tanto no sentido cinematográfico quanto no sentido dramatúrgico, Jabor era e ainda é um dos mais fervorosos defensores do cinema autoral, cunhado nos moldes do cinema novo.

Em Tudo Bem, filme de 1978, o cineasta constrói uma jornada em busca de uma identidade nacional, brasileira nata, com suas misturas, dicotomias, particularidades e sincretismos. A ação toda se passa dentro de grande apartamento classe média alta e, dentro os personagens centrais encontramos Juarez, vivido por Paulo Gracindo, homem atormentado pelos fantasmas da cultura brasileira e lusitana. Sua frustrada esposa Elvira, encarnada de maneira magistral por Fernanda Montenegro, e finalmente Luiz Fernando Guimarães e Regina Cazé interpretam os filhos do casal. A estória se passa durante as atormentadas semanas de reforma do apartamento e o que mais chama a atenção são os personagens coadjuvantes. A empregada sensual, o nordestino e sua família de retirantes, a outra empregada milagreira, o namorado americano da filha, que, mesmo sem aparecer fisicamente em nenhum momento do filme, é o personagem mais querido e bem estimado pela família, numa clara crítica de Jabor ao colonialismo americano.

Neste filme tudo vira carnaval, samba, bagunça, misticismo. Arnaldo Jabor mesmo sendo hoje um dos comentaristas jornalísticos mais chatos e sem noção, acerta no tom do filme, apesar de cair em certas figuras estéticas repetitivas do chamado cinema de autor brasileiro. Os momentos de monólogo sem necessidade narrativa e a famosa verborragia constantes neste tipo de filme e em especial na obra do cineasta chega a cansar o espectador atual. Porém, o filme cresce no seu pequeno caos da vida privada e nos mostra como uma nação pode ser tão bem representada na vidinha comum de uma simples família e seus drama pessoais. Certa vez Alberto Cavalcanti disse “se você quiser fazer um filme sobre o sistema de Correios, conte a estória de uma carta”. Jabor, numa estória de uma família nos dá sua versão definitiva do Nascimento de Uma Nação: a Nação Brasileira.

"Guantanamera" por Rinaldo da Silva Pereira Junior


“Fale de sua aldeia e estará falando do mundo’’ disse alguém, creio que Tolstoi. Assim é com Jorge Amado e sua Bahia de Todos os Santos, assim é Gabriel Garcia Marquez com sua Macondo, microcosmo que reproduz os problemas colombianos e assim é no cinema com Woody Allen, por exemplo, e sua New York e é desse modo também que ficamos conhecendo Cuba através do bom humor e da critica afetiva de Gutierrez Alea.
‘’Brasil e Cuba têm muitas coisas em comum’’ afirmou certa vez em entrevista o escritor cubano Pedro Juan Gutierrez quando em ocasião do lançamento de sua ‘Trilogia súcia de La Habana’, onde inclusive apontou as similaridades com relação ao povo, e principalmente, a semelhança na abordagem da sexualidade nesses povos hermanos.

Com Guantanamera Alea revisita sua Cuba querida de uma maneira bem-humorada e criativa. Segunda parceria sua com Juan Carlos Tabío, depois do sucesso e polêmica de Fresa y chocolate, Guatanamera acabaria sendo o canto do cisne de Alea que morreria no ano seguinte, abril de 1996.

Temas como a velhice, a amizade, encontros e desencontros são tratados de maneira sutil e delicada, filtrados através de um olhar por vezes nostálgicos e sempre afetivo. Guatanamera pode ser descrito como um road movie incomum, estranho e absurdo: indo visitar sua cidade natal, Guantanamo, depois de cinqüenta anos ausente, bem-sucedida como atriz em La Habana, Yoyita reencontra seu eterno amor a quem tinha visto pela ultima vez quando ainda era uma niña de 12 anos. A emoção do reencontro e das lembranças de juventude acabam sendo um pouco demais, matando a velha atriz, e é no translado por terra de Guatanamo a La Habana do corpo de Yoyita que a estória se desenrola. Durante a viagem insólita acontecerá de tudo. Situações cômicas e tristes, encontros e rupturas, risos e lágrimas.

A similaridade de Cuba com nosso país se mostra em toda paisagem, todo close-up de um nativo. Prédios velhos e decadentes, vendedores de tudo em beira de estradas, povo modesto no vestir e no comportar-se, misticismo e conflitos sociais e pessoais bem semelhantes. Durante a viagem do cortejo fúnebre conhecemos varias pequenas cidades históricas de Cuba e seus personagens e muitas vezes nos recordaremos de nossas próprias viagens pelo interior do nosso Brasil. Os biótipos são parecidos e o calor escaldante e que quase cega, queima e cega os dois povos.

A veia documentarística de Alea se faz presente novamente, a propósito uma de suas marcas registradas: em Memorias del subdesarrollo são as imagens de época das atrocidades do governo autoritário pré-revolução castrista, aqui um guia de turismo discorre sobre a importância histórica e econômica de uma cidadezinha do interior, Bayama. É isso que faz do cinema de Alea um cinema curioso, multifacetado e inteligente. Com uma câmera curiosa mas discreta, com uma roupagem de ficção mas tratando de temas reais e caros ao povo cubano, vamos pouco a pouco descobrindo os problemas e particularidades da ilha: constantes faltas de luz, o dólar como moeda forte e de referencia, até para se comprar bananas à beira da estrada nos confins do país, a brujeria para proteger os caminhoneiros nas suas longas viagens, o conflito tradição X modernidade simbolizado pelo machista Adolfo que não aceita que sua mulher vista um simples vestido florido, e também pela fuga da filha de Gina para o ‘paraiso’ idealizado de Miami. A nova geração assim e sempre que possível foge e vai buscar longe de Cuba seus ideais e sonhos. Muito interessante também o uso da letra da conhecida canção titulo que se adapta para descrever o desenrolar dos acontecimentos durante a viagem.

Mas Alea é também universalista e preocupado com os dilemas e dores do ser humano. A velhice e os arrependimentos pelo que fizemos ou deixamos de fazer, no papel de Cándido, o eterno amor de Yoyita, que se repreende por não ter tido coragem de largar tudo e tê-la seguido até Havana, preferindo a repetição e o tédio de sua cidade natal. Ficar preso a um lugar por comodismo ou medo. O sonho da nova geração nas velhas cidades do interior em um dia chegar até a capital da republica, onde encontrarão mais e melhores oportunidades. A dor ou alegria do reencontro entre as pessoas, no par Yoyita e Cándido e Gina e seu ex-aluno, sempre apaixonado, Mariano.

A amizade incondicional dos caminhoneiros Mariano e Ramón. Dores e alegrias de qualquer um em qualquer lugar do planeta. Sua aldeia representando o mundo.
É assim o cinema de Alea: usando o microcosmo de sua aldeia e falando de coisas banais e corriqueiras ele alcança uma dimensão muito maior: o microcosmo representado o mundo, a dimensão humana e universal. Todos nós podemos nos reconhecer nos seus filmes, lá observamos a nós mesmos nos nossos conflitos e além de tudo simpatizamos com nossos semelhantes nas suas duvidas, paixões e esperanças e confirmamos de fato que nossa aldeia é o mundo.

"Memórias do subdesenvolvimento" por Thiago Pereira Francisco



O filme de Alea declara a vivência solitária de um integrante da elite cubana, cujo observa de perto a partida do país, em grande escala, daqueles que eram seus próximos, tanto parentes como amigos. O regime declarado por Fidel Castro era por demais oposto às condições das elites nacionais.

O diretor retrata a capital Havana mais triste, distante do cotidiano de festas e requinte de outrora, muitas vezes, essa condição é acompanhada pelo silêncio das personagens e de pessoas da época, numa forma, talvez, de dar mais ênfase ao retrato de suas expressões. Em contrapartida, põe logo no início uma comemoração popular caracterizada por uma explosão de dança e música.

O caráter político do filme – da instalação de um novo regime e crise da antiga vida burguesa – é acompanhado pela vida privada do protagonista (Sérgio). Uma vida solitária na maior parte do tempo, cuja condição é temporariamente quebrada pelo relacionamento com uma jovem. É um filme que consegue concatenar as histórias de dentro e de fora, o privado e o público.

Sérgio é uma personagem que representa um intelectual que escolhe não fugir do país, assim passa a sentir as mudanças que diariamente acontecem na nação. Ele tem uma visão crítica da própria classe, mas não comunga das novas condicionantes políticas que vão de encontro a ela. Além disso, seus interesses de consumo são bem distintos da maioria dos habitantes de Cuba. Em suma, é alguém que está em na ilha, mas não a pertence e que, paulatinamente, apenas sobrevive.

O diretor usa vários recursos como fazer o personagem principal olhar com o telescópio de seu apartamento o novo país que bate à porta. A saída e volta de coadjuvantes não exige necessariamente que se explique tudo o que aconteceu nas suas ausências. Outra coisa é que destaca as memórias do protagonista como o choque de uma Cuba que se foi e de sua dificuldade de manter hábitos anteriores nas novas condicionantes. Além disso, Utiliza várias cenas e reais da época e noticiais para integrar a realidade que aos poucos traga o personagem a ponto dele se entregar a uma rotina vazia e viver do passado. A realidade simplesmente continua enquanto ele desaparece.

"Tudo bem" por Lucas Caminha



Vencedor dos troféus Candango de melhor filme e melhor ator coadjuvante (Paulo César Peréio) no Festival de Brasília de 1978, Tudo bem, nos mostra a vida de uma família da classe média carioca, que resolve reformar seu apartamento em Copacabana e fica "cercada de Brasil por todos os lados", como definiu o diretor Arnaldo Jabor. Tudo bem traz, já no título, uma ironia aos tempos vividos.

A trama se desenvolve no espaço fechado de um apartamento em Copacabana. As personagens dividem-se em grupos: grupo 1, a família; grupo 2, as empregadas domésticas; grupo 3, os operários da construção civil.

A família é formada por: Juarez, o marido, funcionário público aposentado do IBGE e ex-militante integralista. Seu personagem traja, durante quase todo o filme, hobby e chinelos como se da vida nada mais esperasse. Seu lugar dentro da casa é o escritório ou a biblioteca. Lá se encontram suas lembranças do passado, a memória nacional simbolizada por cânticos indígenas e aves empalhadas da fauna brasileira. Elvira, sua esposa, é a típica mulher do mundo privado, sua preocupação fundamental é com a vida conjugal. Não dando crédito à impotência sexual do marido, apela para todo tipo de misticismo para afastar da vida dele a outra, a amante imaginária. É essa desconhecida que no subgrupo ocupa o lugar da mulher desejada em oposição à esposa santa e guardiã da moral. São dois os filhos do casal. A filha segue o exemplo da mãe, sua preocupação fundamental é arranjar um casamento. O filho, ao contrário do pai, trabalha numa empresa norte-americana. O grupo das domésticas é formado pela serviçal devota, vinda do norte, que no decorrer da trama torna-se milagreira, e na prostituta sem fé. E finalmente o terceiro grupo: os operários da construção civil.

O filme é bastante perspicaz pelas inúmeras referências que podem levar à reflexão. Basta dizer que um dos operários traz para dentro da casa, durante a obra, toda a sua paupérrima família, recém-chegada do Piauí; Paulo César Peréio surge como noivo da filha do casal e empresário, que tenta vender os benefícios do satélite para a vida das pessoas; dois operários se engalfinham por uma banana, provocando um excêntrico assassinato cuja arma é uma marreta; uma madame tenta furar fila no ritual espiritual da empregada. O mérito de Tudo Bem se dá pela riqueza de temas sugeridos, pela plasticidade alegórica (o filme é teatral, carnavalesco), pela comicidade bem dosada e criatividade do roteiro. A metáfora do filme desvenda um Brasil com diferenças sociais bem distintas, com ricos fazendo falcatruas para resolverem seus problemas. Mistura sincretismo religioso, loucura, traição, volatilidade do amor.

"Silvia Prieto" por Marina Paula


A sociedade do consumo, o mundo das aparências e a necessidade de uma afirmação sobre a autenticidade do indivíduo são alguns dos assuntos em que esbarramos ao acompanhar o enredo de Silvia Prieto. Mesmo tangenciando determinadas temáticas, é praticamente impossível precisar a verve do segundo longa do argentino Martín Rejtman. O diretor nos convida a um passeio pelo dia-a-dia de seus personagens, para assisti-los lidando com as estranhezas e mesmices do cotidiano.

A abertura fica a cargo da narração em off da protagonista. Silvia (Rosario Bléfari) acabara de completar 27 anos quando decide mudar radicalmente de vida – escolha que consiste em lavar todas as suas roupas, arranjar um emprego meia-boca, comprar um canário mudo e parar de fumar maconha. Sabemos muito pouco de sua vida anterior (ou subvida, visto que não somos informados sobre as origens dessa decisão e o quão aparentemente pouco ela precisa para atingir o seu outro extremo), e o que nos conta, usando um tom de voz monótono e inexpressivo, é apenas suficiente para mostrar, além de um vazio interior, o quanto a personagem se preocupa em projetar a sua melhor imagem mesmo para os mais íntimos, característica que virá pontuar diversas situações com o desenrolar do filme.

Ainda que não possa ser dividida em três atos, como indica a narrativa clássica, o filme, que acompanha as trajetórias de diversos personagens, não se perde por tramas dispersas. A história segue a lógica temporal, e tudo parece ser interligado por um elemento central: a dona do título. Através de Silvia conhecemos seu ex-marido, Marcelo (Marcelo Zanelli), que em um momento acaba trazendo junto sua nova namorada, Brite (Valeria Bertucelli), promotora de uma marca homônima de sabão e ex-mulher de Gabriel (Gabriel F. Capello, o Vicentico dos Fabulosos Cadillacs), um escritor que voltara recentemente do exterior, com quem Silvia tem um breve relacionamento. Mário (Mucio Manchini), por sua vez, foi amigo de colégio de Marcelo e Gabriel e se acha incapaz de conquistar uma mulher. É reconhecido quando decide recorrer a um programa de TV especializado em unir “corazones solitarios”, onde conhece Marta (Susana Pampín), que é massagista, não quer filhos e sonha com uma festa de casamento. Não chega a ser exagerado dizer que isto é basicamente tudo o que o roteiro e as atuações deixam transparecer dos personagens.

Se à primeira vista as formas escolhidas para representar esta classe média exageradamente apática podem afastar algum espectador, acusando os atores de amadorismo ou ineficácia, são exatamente elas que aparecerão como características mais fortes dos trabalhos de Rejtman. Em Silvia Prieto, a uniformidade dos tons usados em situações diversas (a mesma inflexão para lamentar um atropelamento ou festejar uma gravidez, por exemplo), nos afasta, se é que ela existe, da “essência emotiva” dos personagens, aumentando o grau de absurdo e, por isso mesmo, sugerindo um ar cômico às cenas.

É, também, esse afastamento um dos responsáveis a nos chamar atenção para outro aspecto, talvez o mais facilmente identificável – a grande influência exercida pela publicidade sobre os personagens, que, não apenas procuram consumir, mas se preocupam, principalmente, em usar seus novos pertences como forma de autopromoção.

A ilustração da prática consumista vai desde a alimentação até a vestimenta
(forma mais evidente de se fazer notar). Constantemente, o grupo é encontrado à mesa, havendo quase sempre entre os pratos pedaços de frango para serem comidos com as mãos – se bem nos lembrarmos, caricatura muito usada para representar a figura abastada do empresário capitalista nas filmografias engajadas do início do século XX. A isto, soma-se o desperdício, representado por Gabriel gastando meio frasco de desodorante por dia, e a necessidade de causar boa impressão, um pouco presente em todos os personagens, mas aparecendo com mais força em Silvia ou mesmo Mário, quando assume ter buscado a televisão por acreditar que conquistar a fama por alguns momentos seria a única maneira de fazer-se interessante.

Reforçando ainda mais essa importância da imagem, temos os personagens Brite
e Armani, que levam os nomes das marcas às quais estão vinculados seus segmentos, além dos conflitos da própria Silvia. Se antes a protagonista já se importava em impressionar, inventando viagens à Europa ou comprando eletrodomésticos só para receber visitas em casa, estes desejos de “parecer algo mais” intensificam-se com a aparição do que, por um momento, vai parecer a trama principal do filme, mas que logo receberá a mesma atenção que as demais. Dessa forma, a questão da identidade e da busca pela distinção surge quando Silvia descobre e passa a refletir sobre a existência de outras Silvias Prieto.

Não se nega que, apesar do grande número de personagens e abordagens, o enredo consiga apresentar certa unidade, e talvez o diferencial em Silvia Prieto seja exatamente a forma como esse termo pode ser aplicado. Se em outras produções a questão da unidade se dá a partir de um “motivo”, de um evento que de alguma forma irá desencadear uma série de acontecimentos, movimentando toda a trama ao seu redor, aqui ela parece ser muito melhor representada por um bloco maciço ou uma bolha fechada ao redor dos personagens. Sem dúvidas, existe um fluxo de acontecimentos, e as pessoas se movimentam todo o tempo, mas jamais esse movimento será direcionado à resolução de um problema fundamental para o andamento da trama. Ainda que algumas vezes as situações pareçam estar nos levando a um clímax, não existe o princípio de início – meio – fim; exposição – conflito –resolução. A unidade é o universo em que eles vivem, e a grande graça é assisti-los vivendo ali.

Para finalizar, quebrando completamente com as expectativas de quem ainda esperava um remate conclusivo para a trama, o filme de Rejtman recorre ao inusitado e usa de um tom assumidamente documental em seus momentos finais, trazendo testemunhos de várias mulheres, cada uma contando um pouco de sua vida e experiências. É, na verdade, esta escolha que talvez consiga anular a necessidade de um desfecho narrativo comum, fazendo com que os 80 minutos antecedentes a esta quebra se equivalham ao que é mostrado dali em diante: apenas uma ilustração do que se poderia passar na vida de uma das muitas Silvias Prietro espalhadas pelo globo.

“Como água para chocolate - O início do hibridismo latino americano dos anos 90” por Larissa Cavalcanti


No início dos anos 80, o termo terceiro mundo utilizado para designar os países pobres estava em pleno declínio. No caso específico da América Latina, o termo não condizia com as grandes diferenças entre cada país e com o ascendente desenvolvimento econômico que acontecia na região. No cinema, o reflexo de toda essa mudança de paradigma estava claro: os filmes latino americanos não representavam mais uma unidade nacionalista contra o imperialismo norte-americano em busca de uma identidade própria, abordando temas político-sociais em primeiro plano; agora, a indústria cinematográfica de cada país funcionava de maneira diferente, cortando parcialmente os laços de “latinidade” tão presentes nas décadas anteriores. Cada país começou a voltar-se para temas diversos (particularmente regionais), com enfoque no personagem e não mais na trama e seu contexto. Os anos 90 foram o auge desse hibridismo, onde a busca por certa projeção internacional (através de uma técnica mais apurada) se aliou às ousadias narrativas de mistura de gêneros e conceitos.

Exemplo desse novo tipo de produção é o filme mexicano de 1993 “Como Água para Chocolate”, marco inicial dessas novas obras. Indicado para vários prêmios importantes como o de Melhor Filme estrangeiro no Oscar, o longa de Alfonso Arau foi sucesso internacional de bilheteria, inclusive nos Estados Unidos. O filme é um melodrama pouco tradicional, onde a realidade fantástica se faz muito presente.

Baseado no livro homônimo da então esposa do diretor, Laura Esquivel, “Como Água para Chocolate” se passa num rancho localizado na fronteira com o Texas, em plena Revolução Constitucionalista Mexicana do século XIX. O local é o lar de Tita, filha mais nova de uma tradicional família que tem a incumbência de cuidar da mãe até ela morrer e, por isso, não pode se casar. O problema é que ela se apaixona por Pedro, que, correspondendo a esse sentimento, casa-se com a irmã de Tita para ficar mais próximo desta. Essa é a base da trama: o amor proibido entre os dois. Porém, o filme está longe de ser mais um melodrama repetitivo devido aos vários aspectos interessantes inseridos na narrativa, destacando-o.

Logo de início, o filme nos surpreende com uma moça que olha em nossos olhos, chorando. Ela começa a explicar o motivo de sua sensibilidade, característica herdade de sua tia-avó, Tita, que passou praticamente a vida toda chorando por um amor proibido. Bizarra, mas não menos interessante, é a cena seguinte, que mostra o parto de Tita, onde uma enxurrada de lágrimas sai do ventre de sua mãe, índice do sofrimento que estava por vir para a criança. Além disso, a cena se passa na cozinha, único lugar da casa que Tita era livre e se sentia bem. Essa liberdade se dá, pois, numa poética metáfora entre alimentos e sentimentos, a moça literalmente falava através das comidas. E falava o que realmente sentia. Tudo começa quando ela é obrigada a preparar o bolo de casamento da sua irmã com seu amado. Ela o faz obviamente abalada e chorando sem parar, deixando cair lágrimas na massa do bolo. Ao comer o bolo, todos os convidados da festa passam mal e provam do sofrimento de Tita. Outra cena interessante de comunicação através da comida é quando a protagonista prepara um prato especial de codorna ao molho de pétalas de rosas (flores que Pedro havia lhe oferecido). Ao preparar o prato, toda a libido, sensualidade e desejo da moça é sentido por quem come a comida, inclusive Pedro, que entende o recado da amada. É uma forma interessante de diálogo sem palavras proposta pelo filme e não deixa de brincar com a noção geral de que a qualidade da comida depende da mão e do estado de espírito de quem cozinha. O nome do filme entra nesse jogo e faz uma metáfora interessante com a água que precisa estar em alta temperatura para derreter o chocolate, alimento que atribui a si uma conotação romântica e sensual.

Uma das cenas que me marcaram muito durante o filme foi a saída de Tita de sua casa para ir a uma clínica psiquiátrica, pois ela estava com sérios traumas após a morte do seu sobrinho. Ao sair de perto da sua mãe, Tita está coberta por um longo manto, costurado por ela ao longo do filme inteiro, principalmente após cenas de tristeza. Esse manto parece interminável, assim como suas lágrimas. Além disso, é a primeira vez que ela sai de casa e, ao invés do manto ser o véu do seu casamento, é um véu de tristeza e amargura, representando de forma belíssima sua vida sofrida.

Filho do estilo tão inerente ao cinema mexicano (o melodrama), “Como Água para Chocolate” não deixa de apresentar características próprias desse gênero, como as atuações forçadas, a paixão proibida, o maniqueísmo exagerado, entre outras. Porém, o faz de forma diferente, acrescentando aqui e ali pitadas de fantasia e poesia, como as receitas preparadas por sua protagonista. Essa mistura representa bem a tendência dos filmes latino americanos dos anos 90, que obtiveram sucesso de crítica e comercial.