sábado, 25 de junho de 2011

“Pra Frente, Brasil”, por Iara Ximenes


O filme “Pra Frente, Brasil” (1982), do diretor Roberto Farias (irmão de Reginaldo Farias, ator que interpreta Jofre no filme), é o retrato da situação vivida pelos brasileiros durante a ditadura através da história de uma família.

Apesar de ter sido finalizado nos últimos anos da ditadura, em 1982, “Pra Frente, Brasil” foi censurado pelo governo e só saiu para o público um ano depois. Entretanto a história se passa em junho de 1970, como é mostrado no início do filme.

A primeira cena do filme mostra os irmãos Miguel (Antônio Fagundes) e Jofre Godói da Fonseca (Reginaldo Farias) e sua esposa, Marta (Natália do Valle), em um aeroporto. Os três vão para o Rio de Janeiro, porém Jofre vai em um primeiro vôo, mais cedo. No avião, ele conhece Sarmento, com o qual divide um táxi até o centro do Rio. A partir de então, por causa da divisão de uma corrida de táxi, Jofre se envolve em situações complicadas.

Daí pra frente o filme mostra um quadro de violência, mentiras e injustiças que se instala na ditadura e dura até seu final, onde as pessoas não têm nem mesmo a privacidade de fazer uma ligação, sem que esta, seja monitorada. Seqüestros, assassinatos e torturas, uma mentira atrás da outra, tudo para manter as coisas e as situações exatamente como o governo e a polícia queriam, mas, claro, a maioria das denúncias aparecem nas entrelinhas.

Jofre é seqüestrado por um grupo financiado por empresários; eles acreditam que ele, Jofre, faz parte de algum grupo de resistência e por isso o torturam em busca de informações. A história se desenvolve à medida que Miguel e Marta vão a procura do paradeiro de Jofre, tendo que, para isso, se envolver em perigosas circunstâncias. Enquanto isso, a parte do país que se mantém alienada, torce e assiste aos jogos da Copa do Mundo de Futebol.

Dessa maneira, o filme mostra a realidade da época por meio da história de uma família (de personagens fictícios) em busca de um ente, injustamente morto, mas que, na verdade, conta o que muitas pessoas viveram, presenciaram e sofreram durante a ditadura.

Bang Bang, um filme de Andrea Tonacci. Por Renan Brito


Não seria de todo errado dizer que Bang Bang não tem narrativa; poderíamos adotar essa afirmação e a partir dela discorrer sobre sua proposta e seus motivos. É certo que Bang Bang desconstrói a narrativa clássica do cinema, brinca e satiriza a curiosidade do espectador em saber qual desfecho terá a estória, desmistifica o herói enquanto herói e o vilão enquanto vilão etc. Mas a maneira como faz Andrea Tonacci, diretor do filme de 70, vai além da desconstrução e do embaralhamento dos fatos narrativos. Tonacci simplesmente monta, desmonta e remonta parte dessa narrativa. Sim, apenas parte dela, retalhando-a e a discrimando de seu todo, não oferecendo um início nem um desfecho aparentes, mas simplesmente remontando variações em torno de uma situação. Dando tiros às cegas (e não é gratúita a expressão), Tonacci constrói seu cinema, desconstruindo toda noção convencional da coerência do fio narrativo, procurando sempre novas possibilidades estéticas.

Bang Bang, no entanto, não é apenas a desconstrução narrativa de um filme para analisá-lo em sua condição de cinema. Tonacci cria em torno da situação clássica de perseguição, tão recorrente no cinema hollywoodiano (e essa escolha não é à toa), hipóteses várias que correspondem ao universo de possibilidades oferecido pelo cinema. Bandidos esdrúxulos e caricatos, um mocinho que não se vê como herói e a mocinha misteriosa que dança para a câmera, em frente a um plano de fundo ilustrado por elementos essencialmente urbanos: edifícios, construções etc. Aliás, a urbanidade é patente no filme, não só como plano de fundo, ou mesmo como cenário, mas como habitat natural dessas figuras grotescas que perambulam por aí sem objetivo aparente que não botar as garras no mocinho. Os elementos que compõem esse urbanismo exacerbado, a concretude, os mecanismos dos elevadores, amontoado de peças automobilísticas sucateadas, tudo isso realça a imundice, o caos, a exasperação da atmosfera urbana onde habitam os tais personagens dessa estória, que não é propriamente uma estória, já que a força motriz que move o chamado cinema clássico (a trama) condensa todo o filme e não oferece desfecho e muito menos explicação cabível para a perseguição. Tonacci brinca com nossa visão limitada, condicionada pelo cinema clássico, pelas estórias clássicas, de começo, meio e fim.


Próprio ao Cinema Marginal e sua filosofia, "já que não podemos fazer nada, a gente se avacalha e se esculhama", o filme de Tonacci é sujo e maculado por excelência. Esse cenário brutalmente urbano, caótico, sucateado, confere à imagem uma textura bastante exasperada, suja, imunda. É nele que os personagens atuarão (no próprio termo referente a ator, pois eles nem ao menos tentam nos persuadir, disfarçando-se de personagens, porque eles têm consciência do que realmente são: atores), onde a perseguição começará e recomeçará sem nenhum desfecho definitivo. Essa consciência de ator é também um artifício para assegurar a ideia de consciência de uma realidade que cerca a ficção. A câmera não mais se esconde para registrar a ação dos personagens e criar assim uma ficção verossímil suficiente para convencer o espectador. A cena no banheiro, em que o personagem, com máscara de macaco, canta "Eu sonhei que tu estavas tão linda", desfaz toda noção de barreira intransponível entre realidade e ficção. Ao mostrar a câmera, pelo espelho, Tonacci quebra essa barreira e instaura dentro da ficção o aparelho causador de sua própria condição. Em sua busca pelo que pode ser cinema, ele funde realidade e ficção, desmistifica a farsa do ator e joga um balde tinta na quarta parede do cinema, a parede invisível.


Pode-se pensar, a partir de então, que as ações e os olhares dos personagens para a câmera não mais serão dirigidos apenas ao espectador, mas para a própria câmera, posto que agora sua presença física e participativa é reconhecida e admitida e se encontra na mesma dimensão ficcional a que eles pertencem.

A câmera agora faz parte do espaço e de toda uma dimensão ficcional que também a abarca, junto aos personagens. Portanto, a situação de perseguição nem sempre corresponderá ao bandido que corre atrás do mocinho - essa ideia é aqui deturpada; agora não só o bandido persegue o mocinho, como a cãmera (tanto em sua função registrativa como em sua condição física) os persegue. Não que os queira presos (porque muitas vezes são capturados e logo na sequência estão livres de novo), mas a câmera quer registrar a reação por parte dos personagens. Ela os estimula, eles reagem. Numa cena, em que um mágico à Meliés brinca com a composição do quadro, nossos heróis (pois acho que nem ao menos podemos definir quem é herói e vilão neste filme) aparecem e desaparecem, fazendo poses altivas, que confirmem sua posição como herói ou vilão, para, depois, fazer desmoronar essas imagens, tornando-as até cômicas de tão desajeitadas. Quando, por exemplo, na mesma cena do mágico à Meliés, o cego perde seus óculos e começa a procurá-lo, tombando em tudo pelo cenário, e um dos bandidos come sem parar, emporcalhando-se todo.


No entanto, mesmo em suas sequências mais desconexas, ainda se encontra no espaço amostral desse cinema, uma cena de grande carga dramática: a cena em que os bandidos sofrem um acidente. Vemos no quadro, que afasta-se do chão lentamente, um carro em chamas, um homem estirado no chão, os bandidos que, após terem invadido um carro, vão embora, deixando de fora do veículo uma mulher que vinha nele. E, de fundo, uma música triste. Logo após um dos bandidos tenta contar a estória do filme e estabelecer, finalmente, um fio narrativo coerente. O que não acontece. O bandido é então acometido por uma torta na cara, enviada por alguém provavelmente da equipe de filmagem de Tonacci. Ele compreende a mensagem e desiste de continuar a estória.


O filme termina com risadas debochadas dos bastidores, enquanto um dos personagens insiste em cantar "Eu sonhei que tu estavas tão linda", enquanto se veste no banheiro. Parece então que já vimos de tudo no cinema. Talvez.


Bang Bang é a contribuição do Brasil à pesquisa estética que era proposta e realizada em praticamente todo o mundo, com maior vigor nas décadas de 60 e 70. Tonacci vai em busca de um novo cinema, sem fórmulas premeditadas, sem convencionalismos, sem técnicas manjadas, e nos oferece uma visão ousada e inovadora. Quebra antigos conceitos e lança sementes para o florescimento de outros. E assume a impossibilidade de velar a dimensão ficcional do cinema.


Referência:
XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo, Paz e Terra, 2006.

"A história oficial", por Rebecca Cirya



O filme A história oficial (1985) é um filme argentino dirigido por Luís Puenzo. O contexto histórico da narrativa fílmica é o pós-ditadura na argentina, mais precisamente no ano de 1983, nesse cenário vemos um país que ainda sofre os males (miséria, destruição e morte) causados por uma das ditaduras militares mais cruéis da América do Sul, denominada de “Guerra Suja”.

Alicia (Norma Aleandro) apesar de ser uma rígida professora de história da Argentina, vive alienada quanto à verdadeira história cruel e desumana pela qual a Argentina passou nos tempos de ditadura e que resultou em milhares de desaparecidos. É justamente na questão dos desaparecidos que o filme de Puenzo é mais enfático, pois o desenvolvimento da narrativa se dá pela conscientização política de Alicia e na sua busca pela identidade verdadeira dos pais de sua filha adotiva Gabi (Analia Castro).

É um filme que denuncia todo horror praticado pela ditadura sem mostrar cenas de torturas ou assassinatos, o espectador é informado da crueldade através de longos diálogos emocionantes, como é o exemplo da cena em que Alicia conversa com sua amiga Ana (Chunchuna Villafañ) recém-chegada do exilio. Anna após beber algumas taças de vinhos e licores conta entre risos e choros como foi torturada (choques elétricos, afogamento e espancamento) essa cena belíssima é embalada por uma música triste e melancólica que propicia um plano de fundo perfeito para a dramaticidade proposta pelo diretor. A cena filmada em close-up permite uma melhor visualização das emoções transmitidas por essas duas atrizes, excelente atuação.

Depois dessa conversa com Anna e da informação de que os filhos dessas pessoas torturadas muitas vezes eram vendidos ou doados as pessoas de classe média alta que não procuravam nem saber de onde eram essas crianças, Alicia então começa uma investigação para conhecer ou saber quem foram os pais de sua filha. Nessa procura ela vai conhecendo mães e avós que estão procurando parentes desaparecidos; sua relação com os alunos torna-se mais humanista, pois ela que antes só valorizava o conteúdo dos livros passa a aceitar comentários que não estão em livros, mas são relevantes.

Uma das cenas do filme faz homenagem às mães e avós da “praça de maio” que tiveram seus filhos desaparecidos na ditadura e dedicam-se a procura deles com fotos e nomes. Ainda hoje essas mães e avós fazem manifestos na Praça de Maio, essa ação visa manter vivo na memória dos Argentinos o desaparecimento de seus filhos e netos. Como a própria protagonista do filme afirma na primeira cena em sala de aula: a história é a memória dos povos. Essa história apesar de triste e cruel é uma eterna lembrança nas vidas desses familiares vivos e de todo povo Argentino. Como negar esse passado? A memoria (passado) é fundamental na construção de uma identidade nacional, mesmo que ela traga consigo experiências desagradáveis.

A história oficial é um filme importante historicamente, pois revela uma parte da história não apenas da Argentina, mas que marcou a maioria dos países da América do Sul. Mais que isso é um filme humanista, que versa sobre relações, é uma busca pelo autoconhecimento, não se detém as questões políticas, mas penetra nas emoções e conflitos pessoais dos personagens. O filme começou a ser filmado ainda em 1983, final da ditadura, ousado para época, mas que impressionou milhares de pessoas e ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1986.

Lucia, a mulher do cinema político latino-americano, por Evan Diniz


O cinema não apenas como entretenimento, mas como arma social, uma poderosa expressão disseminou pelo mundo moderno, e mobilizou centenas de produções desde o neo-realismo italiano. O engajamento cinematográfico encontrou plena morada nos países ditos terceiro-mundistas, onde os cineastas encontraram a eficácia de sua linguagem visual. As constantes lutas políticas que marcaram e ainda marcam a história de Cuba, reflete o fato de o país ser um dos maiores representantes do cinema novo político na América latina. Lucia, de Humberto Solás é um grande exemplo de produto desse cinema.

Considerado por muitos como um dos melhores filmes do cinema latino-americano de todos os tempos, Lucia propõe um conjunto de três histórias de três mulheres chamadas Lucia em três épocas distintas porém, marcantes na história política do país.

A primeira história se passa em meados de 1895, em plena guerra de independência de Cuba. Lucia é de uma família rica de Cuba que mora com a mãe e convive com as demais mulheres da alta sociedade. A maioria das cenas em que mostra a vida da personagem, nota-se um pouco a falta de personagens masculinos mesmo em ambientes como ruas e a igreja. A própria família de Lucia tem personagens masculinos ausentes como seu pai e irmão que vive em um cafezal onde habitam inimigos do governo, e que ela guarda esse segredo por todo o filme. Lucia conhece um homem chamado Rafael, comerciante que voltou da Espanha, e por ele se apaixona. Rafael é um personagem super romantizado, que revela uma falta de interesse político como na cena onde perguntado de que lado estava entre Cuba e Espanha. Ele responde que não importa quem ganhe, e depois diz que a única coisa que importa para ele é a felicidade. (Podemos pensar nesse personagem como uma forma de crítica às constantes influências românticas que o cinema de Hollywood expandia). A cubana é seduzida por essa promessa de felicidade livre do pensamento político e da preocupação com sua pátria, que a mantinha afastada do seu irmão. Logo mais Rafael se revela um vilão e um traidor, fazendo com que Lucia revele o cafezal trazendo assim um combate onde seu irmão acaba morto.Também na mesma época se entrelaça a história da louca Fernandina, contada diegeticamente por uma personagem amiga de Lucia, a história trágica é contada aos risos por ela, revelando o outro lado da burguesia cubana desinteressado e pouco engajado. Fernandina, uma freira devota que rezava pela alma dos combatentes mortos foi emboscada e violentada, o que causa seu enlouquecimento. Vagando pelas ruas e sendo chamada de bruxa pelas pessoas, Fernandina representa uma consciência corrompida que compreende o que se passa na história, como na cena em que ela alerta Lucia sobre Rafael e depois, quando chora pela alma de Lucia que depois se vinga de Rafael pela traição a ela e a Cuba sendo morta por isso.

A segunda Lúcia vive em 1932, na primeira cena está trabalhando, grávida onde ela mesma conta sua história. Ela foi mandada ao Caio com sua mãe por ordem de seu pai, quando mais nova. Sua vida era solitária e tediosa, a mãe nunca a escutava e vivia saindo, deixando-a sozinha. Lá ela conhece Aldo, que está em Caio se recuperando de um ferimento. Aldo é um revolucionário e se feriu em ações contra a ditadura de
Machado. Humberto Solás faz o cruzamento de uma personagem cubana que é mantida longe das problemáticas sociais de seu país, com o de um cubano engajado. Eles vivem um pequeno romance e se separam depois que ele volta a Havana. Porém algum tempo depois, Lucia e sua mãe voltam a Havana e lá ela reencontra Aldo e começa a viver com ele. Lucia se torna uma revolucionária e decide ajudar o marido e os amigos nas ações de revolta. Humberto opta por reproduções realistas dessas ações nas cenas, onde os planos valorizam mostrar não apenas Lucia, mas todas as pessoas e as agressões físicas sofridas por elas, como um registro documental. Quando finalmente o governo de Machado cai, é que começa o maior drama do casal. Depois da revolução Aldo vê que tudo que aquilo pelo qual eles lutaram e seus amigos morreram, seus propósitos patrióticos estavam sendo esquecidos, Lucia que está grávida, torna-se a referência presente de toda aquela situação de conflitos emocionais e sociais. Sua história de amor a Aldo se equipara a história de amor de Aldo aos desígnios revolucionários de sua nação.

A terceira e última história, se passa no ano de 196..., Solás não quis deixar claro o ano em que se passava a história, apenas a década. Uma decisão que gera uma pergunta pelo motivo, que nos direciona a uma possibilidade de dar atemporalidade à crítica política do filme, deixando assim mais abrangente a todo o período e a toda uma situação social. Lucia vive em um povoado rural, onde as mulheres se tornam cada vez mais atuantes no trabalho e na sociedade de um país revolucionário, trabalha com suas amigas e se sente feliz por fazer algo que considera útil. Ela está recém-casada com Tomás que insiste para que ela deixe de trabalhar e fique em casa. Logo após em uma festa, Tomás tem um acesso de ciúmes ao vê-la dançando com outro homem e a partir desse dia, a obriga a viver em casa trancada, sem poder trabalhar. Lucia desse modo se torna uma escrava de Tomás, escrava da indiferença das pessoas pela utilidade da mulher na construção de um país. Depois de um tempo chega no povoado os alfabetizadores, pessoas responsáveis por alfabetizar a população. Tomás se vê obrigado pelo governo revolucionário a acolher um alfabetizador em casa para ensinar a sua mulher. Ao ver o modo como Lucia é mal tratada pelo marido, o alfabetizador a questiona e orienta a deixá-lo. Podemos abranger esse questionamento a toda a sociedade da época e notar que é como um questionamento de toda uma nação engajada: Porque ficar presa em casa a mercê das ordens de uma pessoa? Tomás é um retrato de um povo que se mostra como uma representação da estagnação, ao contrário de Lucia que chora por ter que ficar em casa e não se sentir útil.

A cena final do filme é uma cena emblemática, pode-se dizer um pouco surrealista. Uma menina com um lenço branco na cabeça ri, observando a briga de Tomás e Lucia, que mostra-se constante. A cuba antiga e a nova Cuba em um embate onde nenhum dos lados quer ceder. O fato de usar personagens femininos em todo o filme dá uma dimensão ainda maior do olhar que o diretor quer dar as suas críticas e questionamentos, porque a mulher que estava até então conquistando seu espaço, é a principal voz no filme e participante ativa de todos os embates mostrados. A reflexão política em todo o filme, a consciência desse discurso atrelado à narrativa é característica essencial dos filmes políticos dessa geração de produções latino-americanas. Humberto Solás problematiza toda essa linguagem como um pano de fundo às histórias das Lucias, e seu filme coberto de representações e críticas se torna um ícone dessa proposta e modelo representativo de seu tempo.

Impressões de realidade, por Mariana Bernardo


O Pagador de Promessas (1962), um filme de Anselmo Duarte, recebeu de mais de trinta prêmios em festivais internacionais, dentre eles a Palma de Ouro do Festival de Cannes, onde concorreu com filmes dos diretores Buñuel, Bresson, Antonioni e Felinni. Mas o que pôde dar tanta notoriedade a esse filme? Nesse pequeno estudo tentaremos encontrar algumas das possíveis respostas.

Na crítica cinematográfica brasileira, com recorrência, O Pagador de promessas tem lugar como mais um filme de “estrutura direcionada apenas a conduzir ação destinada a imatar os espectadores pela emoção e pelo impacto frente à série de fatos ou acontecimentos narrados direta, linear e superficialmente.”, e ainda, segundo o mesmo autor “inclui-se na categoria do filme que visa o sucesso comercial, não passando de um espetáculo” (BILHARINHO, 2009, p. 101 e 102).

O filme conta a história do agricultor Zé de burro, interpretado por Leonardo Vilar, na tentativa de pagar uma promessa feita a Santa Bárbara num terreiro de Candomblé junto a Iansã, que seria o Orixá que representa a santa da igreja católica no sincretismo religioso. Zé sai do interior da Bahia, junto com sua esposa Rosa (Glória Menezes) com uma cruz nos ombros para pagar a promessa que segundo ele, salvou a vida de seu burro. Tendo caminhado mais de sete léguas chega enfim à igreja, porém se depara com um padre de postura inflexível, que proíbe sua entrada na igreja alegando que o homem não é cristão, mas um devoto do diabo que está tentando cumprir uma promessa feita por um motivo torpe.

È possível observar muito dos costumes do Brasil, ainda que haja, mesmo com sutileza, a construção de estereótipos, de uma Bahia demasiadamente organizada e pessoas pobres muito bem vestidas. Personagens como o capoeirista preguiçoso e malandro, interpretado por Rocco Pitanga, da mocinha interiorana pura, e fácil de corromper, Rosa, que ao chegar à capital trai o marido e começa a se alimentar de novas ambições. O sincretismo religioso entra como discussão central, merecem atenção também, os traços de uma sociedade nordestina patriarcal e ainda a representação do cotidiano de uma capital nordestina.

Além da movimentação incomum do bairro da Igreja de Santa Bárbara, causada pela chegada de Zé do Burro, as baianas vendem seus acarajés na porta de igreja, o dono da bodega se informa de todos os acontecimentos da cidade sem sair do balcão, o cordelista, além de ganhar a vida com esse trabalho, utiliza sua poesia de cordel como escudo contra o poder da igreja representado pela figura prepotente do padre. Em meio a tudo, poucas mulheres com papéis representativos para a narrativa, raramente chamadas pelos nomes, e quase sempre subjugadas ao comando de homens. Quando Rosa tem a possibilidade de mudar de vida, sair do interior, se ver livre de acompanhar o marido em seus atos “insanos”, como os considera, é através da prostituição. Enquanto isso Bonitão (Geraldo Del Rey), o cafetão e Zé do Burro sempre dão as últimas palavras.

A partir da metade do filme há uma rede de pessoas desejando utilizar a imagem de Zé do Burro, a favor de si e de suas respectivas instituições, muitos passam a depender seus interesses da resolução desse impasse. Um jornalista a fim de tornar o fato um grande furo, divulga Zé do Burro como um comunista defensor da reforma agrária, mesmo que o sertanejo não saiba nem o que se trata, apenas doou metade de suas terras como parte do pagamento da promessa pela salvação de seu burro. Depois disso, políticos voltam os olhares a esse homem. O Arcebispo, dada a grande repercussão que ganha o fato, passa a se preocupar com o impacto que a decisão do padre pode causar, e trata de tomar o comando da situação. Bonitão tenta se aproveitar para convencer Rosa a ficar na capital. Não se pode dizer que o filme é monótono, sempre há alguma ação importante, ligada ao fato central da trama.

Sobre as técnicas utilizadas, não há grandes observações. A trilha sonora dialoga entre o clássico instrumental e o regional, altiva, grave quando deve. Funciona. Inclui valor dramático e enriquece a narrativa. Movimentos de câmera simples, muitos planos fechados. No momento da tomada da decisão pelos clérigos, se Zé do burro deve entrar ou não na igreja, por exemplo, a câmera acentua a hierarquia da instituição e as relações de poder. Essa câmera passa por todos à mesa, mas foca no senhor sentado à cabeceira, o Arcebispo, quem determinada a ação final, em seguida o jornal na sua mão se torna o jornal da mão de Bonitão através de uma rima visual. Um bom trabalho de roteiro e montagem.

O pagador de Promessas tem um discurso que pontua os poderes dominantes e mostra quão pretensiosas podem ser as mínimas ações dos representantes da imprensa, da igreja, políticos e patriarcas. Um enredo ao entorno da falta de espaço que detêm um sertanejo pobre, que se vale de seu sincretismo religioso, tão comum à cultura brasileira, ainda assim muito subjugado. E um desfecho tragicamente belo ao som de berimbaus. Considerando que nenhuma representação cinematográfica é capaz de representar verdadeiramente a realidade, apenas pode trazer em maior ou em menor escala impressões dessa realidade, o filme é coerente consigo em todo instante, e capaz de espelhar, de certa forma, a imagem do nordeste do Brasil no período.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÀFICA
BILHARINHO, Guido. O cinema brasileiro nos anos 50 e 60. Instituto Triangulino de Cultura. Uberaba, Brasil, 2009.

MORTE E VIDA ZULMIRA, por Txai Ferraz


Primeiro longa de Leon Hirszman, A falecida (1965) é uma adaptação do texto homônimo de Nelson Rodrigues. Trata-se, no entanto, de uma adaptação bastarda, quase diametralmente oposta às leituras que Arnaldo Jabor fez da obra rodriguiana nos anos 1970. Ao invés de uma libido exacerbada, nota-se no filme de Leon uma sexualidade contida, delicada.

Zulmira, personagem de Fernanda Montenegro (em seu primeiro papel no cinema), é uma suburbana carioca obcecada pela própria morte. Depois de ir a uma cartomante, interpreta o que foi dito pela vidente como a anunciação de seu fim e pensa estar terrivelmente doente. Zulmira acredita ter sido vítima de uma macumba feita por Glorinha, sua prima e também vizinha, e passa a se preparar morbidamente para seu enterro. Renega o marido, manda-lhe procurar afeto com a tal prima culpada por tudo, encomenda seu próprio caixão.

Todas as ações da personagem são movidas por esse confronto com Glorinha, ausente na maior parte da narrativa. Cria-se um triângulo amoroso carente do terceiro elemento. Não há informações suficientes para decodificar a figura da prima. E aí se esconde o maior trunfo desse filme.

Houve ou não macumba? Zulmira está mesmo à beira da morte ou tudo não passa de alucinações? A ambigüidade da narrativa põe em cheque os próprios preceitos do Cinema Novo. De um lado, a busca pelo nacional-popular e um tema que envolve religiosidade e misticismo, e de outro, uma abordagem adotada por parte de Leon claramente psicanalítica e individualista, com toques de existencialismo europeu.
Depois de curto passeio intimista pela personalidade de Zulmira, a protagonista morre antes que o filme conclua seu discurso cosmopolita-universalista da figura da mulher oprimida. O falecimento é súbito, inesperado, mas é aceito pelos personagens sem muita relutância. Volta-se então a uma leitura sociológica com forte sotaque cinemanovista. A morte de Zulmira transforma-se em um fenômeno em si, alegoria para compreender a condição da população da zona norte carioca. “Se eu quiser, eu posso morrer agora, já, imediatamente, ou não posso?”.

O filme, apesar de ter sido um fracasso de bilheteria admitido pelo próprio Hirszman, pretendia um público e é bastante palatável. Como em outros filmes do cinema novo, em um momento ou outro, deixa escapar paradoxalmente um tapa na mesma classe média que se buscava como público, esta última culpada por ter sido impassível ao golpe de 1964. Antes de morrer a protagonista converte-se ao protestantismo. O marido, desempregado, desconta todas suas frustrações no seu amor ao Vasco. Chega a dizer que inveja a esposa, por esta não gostar do esporte e assim não ter “nenhuma preocupação na cabeça”. De igual para igual, a religião e o futebol são vistos como alienantes.

Por último, é impossível conceber o tom intimista conferido ao filme sem pensar na brilhante atuação de Fernanda Montenegro e na fotografia sóbria de José Medeiros. O fotógrafo deixa de lado a câmera na mão e cria uma ambiência fúnebre a partir de seus enquadramentos longos, estáticos, ou com movimentos sutis.

A falecida é um feliz resultado da confluência de abordagens em tese contrárias. Desconstrói o estereótipo do Cinema Novo, mas não o contradiz. É seminal para entender o movimento não como uma escola de preceitos estéticos instransponíveis, e sim como uma luta cultural formada por visões divergentes, mas com discurso hegemônico frente à política governamental da época.

"Estrela Nua", por Lara Buitron



É incrível como alguns filmes muito interessantes se perdem no tempo. Não estou falando de filmes “datados”, estou falando de filmes esquecidos pelos espectadores. É o caso de Estrela Nua, de José Antonio Garcia e Ícaro Martins, que apesar de ter recebido alguns prêmios de atuação e ter um roteiro intrigante e inteligente parece ter se perdido na curta memória cinematográfica do país. Tanto é que demorei mais de um mês para conseguir encontrar algum material extra-filme que fosse realmente interessante e relevante para essa resenha, para minha sorte Carla Camurati, a atriz principal, não se esqueceu dele.

A história à primeira vista parece simples, uma garota que é chamada para dublar uma atriz morta. Poderia ser contada de vários e vários jeitos, mas apenas um cinema periférico, experimental e inteligente como o cinema da Boca do Lixo paulista conseguiria deixar essa narrativa digna do universo de Nelson Rodrigues e no de Clarice Lispector, isso se evidencia numa das primeiras cenas, em que Glorinha está dormindo na cadeira com u livro de Clarice no colo e o próprio filme que é dublado é baseado em várias obras de Nelson.

O filme bebe também no universo da própria Carla Camurati, os próprios diretores admitiram que pensaram no filme para ela, como a própria já disse em entrevistas, quando era mais nova achava que sua imagem não pertencia a ela, que ela era mais do que um rosto bonito e que por isso não gostava de se ver no espelho, assim como a personagem de Cristina Aché, Ângela, que diz ao se olhar no espelho: “Eu odeio minha imagem”. Dentro do filme se encontra muito da atriz, várias coincidências, como na cena em que Glorinha corta os cabelos de qualquer jeito na frente do espelho, coisa que a própria Camurati admitiu ter feito com 13 anos em busca de uma imagem que fosse mais parecida com ela.

Acho que minha personagem predileta é Ângela, que é quase que uma segunda representação de Glorinha, seu eu lírico, tudo que acontece com ela no filme acaba acontecendo com Glória na vida real, por muitas vezes elas se misturam e não dá pra saber quem está morta e quem está viva. Sempre que vejo esse filme e penso no efeito-espelho das duas personagens me lembro da frase de Oscar Wilde: “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”, ou até mesmo da frase do próprio filme, dita por Renée “o cinema tem uma magia louquíssima, geralmente o que se filme acaba acontecendo na vida das pessoas que filmaram”. O interessante da personagem de Aché é que você só a compreende se compreender o subtexto do filme, ela começa como uma incógnita que aos poucos vai se revelando no corpo de Glorinha, como que a possuindo, acho que o raciocínio de possessão se fecha e se completa com a última cena, onde o espectador descobre que as duas são amantes, mas não se sabe se as duas estão vivas ou mortas.

Esse filme se tornou um dos meus filmes nacionais favoritos, acho que pelo diálogo com o universo nonsense e bizarro, ou pela trilha sonora incrível de Arrigo Barnabé e Os Mutantes, ou até mesmo pelo conflito psicológico intenso que se desenrola no filme. A verdade é que pelas imagens e figurinos bizarros a maioria das pessoas nem se quer pensariam em ver esse filme, achando que ele faz parte da viagem de ácido de alguém, mas na verdade ele é muito bom. Se não vale pela história, vale pela incrível atuação de Carla Camurati, que ganhou o prêmio de melhor atriz pelo júri popular do Festival de Gramado, e também de Cristina Ache, que no mesmo festival ganhou o prêmio de melhor atriz. Enfim, minha vontade era fazer todo mundo que eu conheço ver esse filme e tirar ele dos escombros da memória do cinema da Boca do Lixo.


Referências Bibliográficas:
- Sternheim, A. (org.) (2005) Cinema da Boca – Dicionário de Diretores. Versão Virtual da 1ª Edição. Coleção Aplauso. São Paulo: Imprensa Oficial.
- Leão da Silva Neto, A. (org.) (2010) Dicionário de Astros e Estrelas do Cinema Brasileiro. Versão Virtual da 2ª Edição. Coleção Aplauso. São Paulo – Imprensa Oficial.
- Nadele, M. (2008) José Antonio Garcia – Em Busca da Alma Feminina. Versão Virtual da 1ª Edição. Coleção Aplauso. São Paulo: Imprensa Oficial.
- Alberto Mattos, C. (2005) Carla Camurati – Luz Natural. Versão Virtual da 1ª Edição. Coleção Aplauso. São Paulo: Imprensa Oficial.

(Todos os livros aqui citados podem ser encontrados em: http://aplauso.imprensaoficial.com.br/)

"A inevitabilidade do amadurecimento", por Gustavo Massud


E Sua Mãe Também, brinca com o gênero da comédia teen ao implementar um triângulo amoroso incomum e confuso. Filme do ótimo diretor mexicano, Alfonso Cuarón, é uma odisséia adolescente sobre o amadurecimento e descoberta da vida.

A película conta a história de dois amigos muito próximos, Tenoch (Diego Luna) e Julio (Gael García Bernal), que se vêem prestes a ter suas vidas transformadas numa monotonia existencial, quando suas namoradas viajam para a Europa de férias. É neste meio tempo em que aparece a interessante mulher do primo de Tenoch, Luisa Cortés (Maribel Verdú), pelo qual os dois garotos se encantam instantaneamente.
Luisa é indiferente à primeira investida dos garotos, mas um acontecimento em seu relacionamento a fará mudar completamente de postura. Fato este que será determinante na decisão dela em viajar com os garotos para uma pra praia paradisíaca, inventada pelos dois, a Boca do Céu.

Quando a viagem começa é que o filme realmente se desenvolve. A relação de cumplicidade entre os dois jovens é um retrato verdadeiro da uma amizade adolescente, onde as conversas variam entre: sexo, mulher, futilidades e...sexo. Luisa, 10 anos mais velha que Tenoch e Julio, não se constrange com a situação em que se meteu, e tenta desfrutar ao máximo a viagem. Algo como uma mistura do clássico triângulo amoroso da nouvelle vague, somado ao enredo de “A Primeira Noite de um Homem”.

É durante a viagem que “E Sua Mãe Também” investe no sistema do road movie latino-americano. O caminho percorrido pelo trio é cheio de descobertas de um povo que vive fora dos grandes centros. Pessoas humildes e cheias de marcas em seus rostos que denotam uma vida dura, entretanto cercado de alegria encontrada em eventos tão corriqueiros dos quais não atentamos diariamente. Lembramos de “Diários de Motocicleta”, mas com a ressalva de que na viagem de Julio e Tenoch os motivos são bem menos “nobres”. Mas aparentemente o resultado (amadurecimento dos personagens),
se torna o mesmo.

A obra estabelece o triângulo amoroso na medida em que o interesse por Luisa cresce e ela coniventemente aceita a condição de objeto de desejo. Acontece que quando Tenoch finalmente tem seu desejo sexual atendido por Luisa, o objeto do filme parece mudar de posição. Julio assiste à cena de Tenoch e Luisa transando e passa a se sentir mal (“a única vez que sentiu aquela dor no estômago foi quando encontrou a sua mãe nos braços do seu padrinho na sala de sua casa”), mas não se explica exatamente o por quê, se é por ciúme de Luisa, ou de Tenoch. A relação entre os dois amigos se esfria e Luisa tenta intervir transando também com Julio. Mas a amizade dos dois está desgastada por revelações feitas um para o outro em momentos de raiva.

Nada diferente do vivido tantas vezes numa amizade pré-maturidade. Mas ao mesmo tempo, é estranho assistir tudo aquilo de uma maneira tão simples e verdadeira. É possível ver um pouco de nós mesmos no filme. A cena em que o trio finalmente se entrega, juntos, ao desejo recíproco é cercado de beleza e sensualidade. Esta cena também representa um rito de passagem para Julio, Tenoch e Luisa, que a partir de então, atingirão um novo degrau no amadurecimento pessoal.

Concluindo o trabalho de maneira coerente e crível, Alfonso Cuarón cria uma obra que atinge uma parte importante na vida de todos nós e estranhamente pouco abordada por outros filmes do gênero: a lacuna entra a adolescência e a maturidade, onde não sabemos exatamente o que estamos mais inclinados a aceitar. A vida monótona e sem responsabilidades de um adolescente, ou a responsabilidade e liberdade presentes na vida adulta? O filme retrata que a resposta para essa pergunta não é uma escolha, você a alcançará um dia de qualquer jeito. Querendo ou não.

"O noir colorido da femme fatale brasileira", por Vinícius Gouveia



Um filme noir é exibido no cinema. Ar-condicionado quebrado, sala quase vazia. O tédio parece estar presente no local. Lucas entra na sessão sem grandes pretensões. Pouco depois, ele desvia a atenção do filme e parte para uma troca de olhares com uma atraente espectadora, Suzana. Pronto, A Dama do Cine Shangai (1988) já começou. Dirigido e escrito por Guilherme de Almeida Prado, o aspecto central da trama é a relação entre os protagonistas e um misterioso assassinato que os ronda. Entretanto, esse enredo é mera desculpa para trabalhar aspectos do cinema noir sob uma ótica pós-moderna.

A Dama do Cine Shangai utiliza diversos aspectos do cinema noir, tornando-se um curioso pastiche abrasileirado. Existe um mistério a ser desvendado, um (pseudo) detetive, uma imobiliária que nos remete diretamente aos escritórios de investigação e até uma mise-en-scene sustentada por um trabalho de câmera que referencia a matriz em diversas passagens. O foco dramático está numa mulher, e no cinema noir não há outra opção se não a femme fatale, nesse caso interpretada por Maitê Proença. Embora seja Antônio Fagundes o carismático protagonista (meio cafajeste, meio boa praça), todo o interesse permanece na intrigante personagem feminina. Ela é quem manipula e conduz silenciosamente (e às vezes inconscientemente) a história como uma verdadeira femme fatale.

Fosse a intenção do diretor ou não, A Dama do Cine Shangai carrega em si parte do espírito do que foi os anos 1980. A Direção de Arte é afetada nos cabelos, maquiagens e figurinos. Maitê Proença não está muito distante do travesti interpretado por Miguel Falabella e os cenários em São Paulo tentam mimetizar os originais do cinema noir. Os excessos da década estão presentes na plasticidade do filme. A Fotografia também não fica atrás. Além dos movimentos de câmera, é recorrente o neon, que possui diversos significados no filme (modernidade, efemeridade e artificialismo; evoca o realismo pela referência ao mundo “real”, o extra-fílmico, não pelo filme em si). Esse tipo de iluminação é fundamental não apenas em A Dama do Cine Shangai, mas também em Cidade Oculta (Francisco Botelho, 1986) e Anjos da Noite (Wilson Barros, 1987) – os três juntos compõem a “triologia paulista da noite” e são apontados como exemplos do “neon-realismo”. Não por acaso, todos foram fotografados por José Roberto Eliezer. A trilha marcante de Hermelino Neder também dá tom ao filme.

Vale notar a brasilidade que perpassa A Dama do Cine Shangai. Chopp, linguagem informal, camisa de botão estourando na barriga. Os pingos de suor são por causa do calor, não há ventiladores funcionando. Em alguns momentos, notamos uma sensualidade tipicamente brasileira, talvez vinda das pornochanchadas e outras correntes anteriores. O ápice dessa lista de brasilidades é o casamento diurno com churrasco. Alguém já imaginou a Gilda de Rita Hayworth numa situação dessas?

São Paulo também não escapa à lógica do filme. A cidade também é transformada sob a lente do cinema noir, mas mantém a brasilidade já citada. Na noite, a capital é apresentada através das sombras e da disputa entre o claro e o escuro, embora seja o neon a grande luz da penumbra. Os estabelecimentos são o bar, o quarto de hotel e as ruas escuras – assim como os originais hollywoodianos. Ao mesmo tempo, passamos por um casamento com churrasco, os cinemas decadentes e personas tipicamente brasileiras. O trabalho que é feito no filme é o de apropriação de uma corrente aplicada ao contexto “urbano-tropical” de São Paulo. Essa opção não deve ser vista de modo polarizado, como um estrangeirismo ou crítica a um modelo externo, mas encarada como uma maneira pós-moderna de realização cinematográfica.

Nos anos 1980, finalmente chegou com mais força ao cinema a crise do ideal da originalidade e o discurso pós-modernista, que já era comum em outras formas de expressão artística. Assim, a narrativa foi ficando cada vez mais fragmentada, o tempo-espaço verossimilhante ao real não era mais fudamental. Nessa estrutura, “a narrativa pós-moderna tende a valorizar o processo de construção, relendo, resignificando e transformando elementos da tradição” (1) . O pós-modernismo aplicado ao cinema era caracterizado pela realidade ficcionalizada através dessa estrutura baseada no intertexto, citações, justa-posições, valorização da forma, entre outros elementos. “Não há obra autêntica na pós-modernidade, mas sim recortes, ângulos e conexões entre as referências que trazem o sujeito autor da obra e as que o mundo propõe” (2). Em entrevista, o autor do livro “Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo”, Renato Luiz Pucci Jr., declarou que no neon-realismo “não há uma relação subserviente em relação ao original estrangeiro, apesar do evidente encantamento, tanto que essas apropriações se dão na forma de paródias lúdicas, respeitosas, mas que também brincam com o original” (3).

A metalinguagem corriqueira em A Dama do Cine Shangai se mostra coerente não apenas como uma firula do roteirista-diretor, mas também por ir de encontro com o discurso pós-modernista que aflorava no cinema da época. A “triologia paulistana” procurou seguir novas diretrizes no fazer cinematográfico e nos apresentou filmes estetizados e de estruturas narrativas estranhas ao que se era visto, mas estes filmes ainda mantinham alguma comunicação com o grande público. A auto-reflexão desse cinema e o fake (bem-humorado!) sinalizavam uma ruptura com o cinema clássico.

A Dama do Cine Shangai é mais que um noir colorido. O filme é reflexo dos anos 1980 e de discursos pós-modernistas. Nesse momento, o cinema brasileiro acenava para outro mais globalizado e se afinava um pouco mais com as correntes mundiais. Entretanto, a autenticidade brasileira não chegou a ser apagada, a filmografa nacional não é negada, já que chegam às telas figuras do nosso cotidiado.

Despido de tantas discussões e motivações externas, A Dama do Cine Shangai é essencialmente sobre escapismo da realidade através de filmes, cinema como desestabilizador de vidas pacatas e desinteressantes. Lucas, o protagonista, só não fazia ideia do quanto esse cinema poderia ser divertido, perigoso, intrigante e impactante – e o espectador muito menos.

NOTAS:
1. CINEMA, CULTURA E MÍDIA: PENSANDO A LINGUAGEM DO ESPETÁCULO, Vanessa Kalindra Labre de Oliveira
2. CINEMA, CULTURA E MÍDIA: PENSANDO A LINGUAGEM DO ESPETÁCULO, Vanessa Kalindra Labre de Oliveira
3. http://www.cinequanon.art.br/entrevistas_detalhe.php?id=11