sábado, 25 de junho de 2011

MORTE E VIDA ZULMIRA, por Txai Ferraz


Primeiro longa de Leon Hirszman, A falecida (1965) é uma adaptação do texto homônimo de Nelson Rodrigues. Trata-se, no entanto, de uma adaptação bastarda, quase diametralmente oposta às leituras que Arnaldo Jabor fez da obra rodriguiana nos anos 1970. Ao invés de uma libido exacerbada, nota-se no filme de Leon uma sexualidade contida, delicada.

Zulmira, personagem de Fernanda Montenegro (em seu primeiro papel no cinema), é uma suburbana carioca obcecada pela própria morte. Depois de ir a uma cartomante, interpreta o que foi dito pela vidente como a anunciação de seu fim e pensa estar terrivelmente doente. Zulmira acredita ter sido vítima de uma macumba feita por Glorinha, sua prima e também vizinha, e passa a se preparar morbidamente para seu enterro. Renega o marido, manda-lhe procurar afeto com a tal prima culpada por tudo, encomenda seu próprio caixão.

Todas as ações da personagem são movidas por esse confronto com Glorinha, ausente na maior parte da narrativa. Cria-se um triângulo amoroso carente do terceiro elemento. Não há informações suficientes para decodificar a figura da prima. E aí se esconde o maior trunfo desse filme.

Houve ou não macumba? Zulmira está mesmo à beira da morte ou tudo não passa de alucinações? A ambigüidade da narrativa põe em cheque os próprios preceitos do Cinema Novo. De um lado, a busca pelo nacional-popular e um tema que envolve religiosidade e misticismo, e de outro, uma abordagem adotada por parte de Leon claramente psicanalítica e individualista, com toques de existencialismo europeu.
Depois de curto passeio intimista pela personalidade de Zulmira, a protagonista morre antes que o filme conclua seu discurso cosmopolita-universalista da figura da mulher oprimida. O falecimento é súbito, inesperado, mas é aceito pelos personagens sem muita relutância. Volta-se então a uma leitura sociológica com forte sotaque cinemanovista. A morte de Zulmira transforma-se em um fenômeno em si, alegoria para compreender a condição da população da zona norte carioca. “Se eu quiser, eu posso morrer agora, já, imediatamente, ou não posso?”.

O filme, apesar de ter sido um fracasso de bilheteria admitido pelo próprio Hirszman, pretendia um público e é bastante palatável. Como em outros filmes do cinema novo, em um momento ou outro, deixa escapar paradoxalmente um tapa na mesma classe média que se buscava como público, esta última culpada por ter sido impassível ao golpe de 1964. Antes de morrer a protagonista converte-se ao protestantismo. O marido, desempregado, desconta todas suas frustrações no seu amor ao Vasco. Chega a dizer que inveja a esposa, por esta não gostar do esporte e assim não ter “nenhuma preocupação na cabeça”. De igual para igual, a religião e o futebol são vistos como alienantes.

Por último, é impossível conceber o tom intimista conferido ao filme sem pensar na brilhante atuação de Fernanda Montenegro e na fotografia sóbria de José Medeiros. O fotógrafo deixa de lado a câmera na mão e cria uma ambiência fúnebre a partir de seus enquadramentos longos, estáticos, ou com movimentos sutis.

A falecida é um feliz resultado da confluência de abordagens em tese contrárias. Desconstrói o estereótipo do Cinema Novo, mas não o contradiz. É seminal para entender o movimento não como uma escola de preceitos estéticos instransponíveis, e sim como uma luta cultural formada por visões divergentes, mas com discurso hegemônico frente à política governamental da época.

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