sábado, 25 de junho de 2011
"O noir colorido da femme fatale brasileira", por Vinícius Gouveia
Um filme noir é exibido no cinema. Ar-condicionado quebrado, sala quase vazia. O tédio parece estar presente no local. Lucas entra na sessão sem grandes pretensões. Pouco depois, ele desvia a atenção do filme e parte para uma troca de olhares com uma atraente espectadora, Suzana. Pronto, A Dama do Cine Shangai (1988) já começou. Dirigido e escrito por Guilherme de Almeida Prado, o aspecto central da trama é a relação entre os protagonistas e um misterioso assassinato que os ronda. Entretanto, esse enredo é mera desculpa para trabalhar aspectos do cinema noir sob uma ótica pós-moderna.
A Dama do Cine Shangai utiliza diversos aspectos do cinema noir, tornando-se um curioso pastiche abrasileirado. Existe um mistério a ser desvendado, um (pseudo) detetive, uma imobiliária que nos remete diretamente aos escritórios de investigação e até uma mise-en-scene sustentada por um trabalho de câmera que referencia a matriz em diversas passagens. O foco dramático está numa mulher, e no cinema noir não há outra opção se não a femme fatale, nesse caso interpretada por Maitê Proença. Embora seja Antônio Fagundes o carismático protagonista (meio cafajeste, meio boa praça), todo o interesse permanece na intrigante personagem feminina. Ela é quem manipula e conduz silenciosamente (e às vezes inconscientemente) a história como uma verdadeira femme fatale.
Fosse a intenção do diretor ou não, A Dama do Cine Shangai carrega em si parte do espírito do que foi os anos 1980. A Direção de Arte é afetada nos cabelos, maquiagens e figurinos. Maitê Proença não está muito distante do travesti interpretado por Miguel Falabella e os cenários em São Paulo tentam mimetizar os originais do cinema noir. Os excessos da década estão presentes na plasticidade do filme. A Fotografia também não fica atrás. Além dos movimentos de câmera, é recorrente o neon, que possui diversos significados no filme (modernidade, efemeridade e artificialismo; evoca o realismo pela referência ao mundo “real”, o extra-fílmico, não pelo filme em si). Esse tipo de iluminação é fundamental não apenas em A Dama do Cine Shangai, mas também em Cidade Oculta (Francisco Botelho, 1986) e Anjos da Noite (Wilson Barros, 1987) – os três juntos compõem a “triologia paulista da noite” e são apontados como exemplos do “neon-realismo”. Não por acaso, todos foram fotografados por José Roberto Eliezer. A trilha marcante de Hermelino Neder também dá tom ao filme.
Vale notar a brasilidade que perpassa A Dama do Cine Shangai. Chopp, linguagem informal, camisa de botão estourando na barriga. Os pingos de suor são por causa do calor, não há ventiladores funcionando. Em alguns momentos, notamos uma sensualidade tipicamente brasileira, talvez vinda das pornochanchadas e outras correntes anteriores. O ápice dessa lista de brasilidades é o casamento diurno com churrasco. Alguém já imaginou a Gilda de Rita Hayworth numa situação dessas?
São Paulo também não escapa à lógica do filme. A cidade também é transformada sob a lente do cinema noir, mas mantém a brasilidade já citada. Na noite, a capital é apresentada através das sombras e da disputa entre o claro e o escuro, embora seja o neon a grande luz da penumbra. Os estabelecimentos são o bar, o quarto de hotel e as ruas escuras – assim como os originais hollywoodianos. Ao mesmo tempo, passamos por um casamento com churrasco, os cinemas decadentes e personas tipicamente brasileiras. O trabalho que é feito no filme é o de apropriação de uma corrente aplicada ao contexto “urbano-tropical” de São Paulo. Essa opção não deve ser vista de modo polarizado, como um estrangeirismo ou crítica a um modelo externo, mas encarada como uma maneira pós-moderna de realização cinematográfica.
Nos anos 1980, finalmente chegou com mais força ao cinema a crise do ideal da originalidade e o discurso pós-modernista, que já era comum em outras formas de expressão artística. Assim, a narrativa foi ficando cada vez mais fragmentada, o tempo-espaço verossimilhante ao real não era mais fudamental. Nessa estrutura, “a narrativa pós-moderna tende a valorizar o processo de construção, relendo, resignificando e transformando elementos da tradição” (1) . O pós-modernismo aplicado ao cinema era caracterizado pela realidade ficcionalizada através dessa estrutura baseada no intertexto, citações, justa-posições, valorização da forma, entre outros elementos. “Não há obra autêntica na pós-modernidade, mas sim recortes, ângulos e conexões entre as referências que trazem o sujeito autor da obra e as que o mundo propõe” (2). Em entrevista, o autor do livro “Cinema Brasileiro Pós-Moderno – O Neon-Realismo”, Renato Luiz Pucci Jr., declarou que no neon-realismo “não há uma relação subserviente em relação ao original estrangeiro, apesar do evidente encantamento, tanto que essas apropriações se dão na forma de paródias lúdicas, respeitosas, mas que também brincam com o original” (3).
A metalinguagem corriqueira em A Dama do Cine Shangai se mostra coerente não apenas como uma firula do roteirista-diretor, mas também por ir de encontro com o discurso pós-modernista que aflorava no cinema da época. A “triologia paulistana” procurou seguir novas diretrizes no fazer cinematográfico e nos apresentou filmes estetizados e de estruturas narrativas estranhas ao que se era visto, mas estes filmes ainda mantinham alguma comunicação com o grande público. A auto-reflexão desse cinema e o fake (bem-humorado!) sinalizavam uma ruptura com o cinema clássico.
A Dama do Cine Shangai é mais que um noir colorido. O filme é reflexo dos anos 1980 e de discursos pós-modernistas. Nesse momento, o cinema brasileiro acenava para outro mais globalizado e se afinava um pouco mais com as correntes mundiais. Entretanto, a autenticidade brasileira não chegou a ser apagada, a filmografa nacional não é negada, já que chegam às telas figuras do nosso cotidiado.
Despido de tantas discussões e motivações externas, A Dama do Cine Shangai é essencialmente sobre escapismo da realidade através de filmes, cinema como desestabilizador de vidas pacatas e desinteressantes. Lucas, o protagonista, só não fazia ideia do quanto esse cinema poderia ser divertido, perigoso, intrigante e impactante – e o espectador muito menos.
NOTAS:
1. CINEMA, CULTURA E MÍDIA: PENSANDO A LINGUAGEM DO ESPETÁCULO, Vanessa Kalindra Labre de Oliveira
2. CINEMA, CULTURA E MÍDIA: PENSANDO A LINGUAGEM DO ESPETÁCULO, Vanessa Kalindra Labre de Oliveira
3. http://www.cinequanon.art.br/entrevistas_detalhe.php?id=11
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