sábado, 29 de maio de 2010

“Como água para chocolate - O início do hibridismo latino americano dos anos 90” por Larissa Cavalcanti


No início dos anos 80, o termo terceiro mundo utilizado para designar os países pobres estava em pleno declínio. No caso específico da América Latina, o termo não condizia com as grandes diferenças entre cada país e com o ascendente desenvolvimento econômico que acontecia na região. No cinema, o reflexo de toda essa mudança de paradigma estava claro: os filmes latino americanos não representavam mais uma unidade nacionalista contra o imperialismo norte-americano em busca de uma identidade própria, abordando temas político-sociais em primeiro plano; agora, a indústria cinematográfica de cada país funcionava de maneira diferente, cortando parcialmente os laços de “latinidade” tão presentes nas décadas anteriores. Cada país começou a voltar-se para temas diversos (particularmente regionais), com enfoque no personagem e não mais na trama e seu contexto. Os anos 90 foram o auge desse hibridismo, onde a busca por certa projeção internacional (através de uma técnica mais apurada) se aliou às ousadias narrativas de mistura de gêneros e conceitos.

Exemplo desse novo tipo de produção é o filme mexicano de 1993 “Como Água para Chocolate”, marco inicial dessas novas obras. Indicado para vários prêmios importantes como o de Melhor Filme estrangeiro no Oscar, o longa de Alfonso Arau foi sucesso internacional de bilheteria, inclusive nos Estados Unidos. O filme é um melodrama pouco tradicional, onde a realidade fantástica se faz muito presente.

Baseado no livro homônimo da então esposa do diretor, Laura Esquivel, “Como Água para Chocolate” se passa num rancho localizado na fronteira com o Texas, em plena Revolução Constitucionalista Mexicana do século XIX. O local é o lar de Tita, filha mais nova de uma tradicional família que tem a incumbência de cuidar da mãe até ela morrer e, por isso, não pode se casar. O problema é que ela se apaixona por Pedro, que, correspondendo a esse sentimento, casa-se com a irmã de Tita para ficar mais próximo desta. Essa é a base da trama: o amor proibido entre os dois. Porém, o filme está longe de ser mais um melodrama repetitivo devido aos vários aspectos interessantes inseridos na narrativa, destacando-o.

Logo de início, o filme nos surpreende com uma moça que olha em nossos olhos, chorando. Ela começa a explicar o motivo de sua sensibilidade, característica herdade de sua tia-avó, Tita, que passou praticamente a vida toda chorando por um amor proibido. Bizarra, mas não menos interessante, é a cena seguinte, que mostra o parto de Tita, onde uma enxurrada de lágrimas sai do ventre de sua mãe, índice do sofrimento que estava por vir para a criança. Além disso, a cena se passa na cozinha, único lugar da casa que Tita era livre e se sentia bem. Essa liberdade se dá, pois, numa poética metáfora entre alimentos e sentimentos, a moça literalmente falava através das comidas. E falava o que realmente sentia. Tudo começa quando ela é obrigada a preparar o bolo de casamento da sua irmã com seu amado. Ela o faz obviamente abalada e chorando sem parar, deixando cair lágrimas na massa do bolo. Ao comer o bolo, todos os convidados da festa passam mal e provam do sofrimento de Tita. Outra cena interessante de comunicação através da comida é quando a protagonista prepara um prato especial de codorna ao molho de pétalas de rosas (flores que Pedro havia lhe oferecido). Ao preparar o prato, toda a libido, sensualidade e desejo da moça é sentido por quem come a comida, inclusive Pedro, que entende o recado da amada. É uma forma interessante de diálogo sem palavras proposta pelo filme e não deixa de brincar com a noção geral de que a qualidade da comida depende da mão e do estado de espírito de quem cozinha. O nome do filme entra nesse jogo e faz uma metáfora interessante com a água que precisa estar em alta temperatura para derreter o chocolate, alimento que atribui a si uma conotação romântica e sensual.

Uma das cenas que me marcaram muito durante o filme foi a saída de Tita de sua casa para ir a uma clínica psiquiátrica, pois ela estava com sérios traumas após a morte do seu sobrinho. Ao sair de perto da sua mãe, Tita está coberta por um longo manto, costurado por ela ao longo do filme inteiro, principalmente após cenas de tristeza. Esse manto parece interminável, assim como suas lágrimas. Além disso, é a primeira vez que ela sai de casa e, ao invés do manto ser o véu do seu casamento, é um véu de tristeza e amargura, representando de forma belíssima sua vida sofrida.

Filho do estilo tão inerente ao cinema mexicano (o melodrama), “Como Água para Chocolate” não deixa de apresentar características próprias desse gênero, como as atuações forçadas, a paixão proibida, o maniqueísmo exagerado, entre outras. Porém, o faz de forma diferente, acrescentando aqui e ali pitadas de fantasia e poesia, como as receitas preparadas por sua protagonista. Essa mistura representa bem a tendência dos filmes latino americanos dos anos 90, que obtiveram sucesso de crítica e comercial.

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