sábado, 29 de maio de 2010

"Silvia Prieto" por Marina Paula


A sociedade do consumo, o mundo das aparências e a necessidade de uma afirmação sobre a autenticidade do indivíduo são alguns dos assuntos em que esbarramos ao acompanhar o enredo de Silvia Prieto. Mesmo tangenciando determinadas temáticas, é praticamente impossível precisar a verve do segundo longa do argentino Martín Rejtman. O diretor nos convida a um passeio pelo dia-a-dia de seus personagens, para assisti-los lidando com as estranhezas e mesmices do cotidiano.

A abertura fica a cargo da narração em off da protagonista. Silvia (Rosario Bléfari) acabara de completar 27 anos quando decide mudar radicalmente de vida – escolha que consiste em lavar todas as suas roupas, arranjar um emprego meia-boca, comprar um canário mudo e parar de fumar maconha. Sabemos muito pouco de sua vida anterior (ou subvida, visto que não somos informados sobre as origens dessa decisão e o quão aparentemente pouco ela precisa para atingir o seu outro extremo), e o que nos conta, usando um tom de voz monótono e inexpressivo, é apenas suficiente para mostrar, além de um vazio interior, o quanto a personagem se preocupa em projetar a sua melhor imagem mesmo para os mais íntimos, característica que virá pontuar diversas situações com o desenrolar do filme.

Ainda que não possa ser dividida em três atos, como indica a narrativa clássica, o filme, que acompanha as trajetórias de diversos personagens, não se perde por tramas dispersas. A história segue a lógica temporal, e tudo parece ser interligado por um elemento central: a dona do título. Através de Silvia conhecemos seu ex-marido, Marcelo (Marcelo Zanelli), que em um momento acaba trazendo junto sua nova namorada, Brite (Valeria Bertucelli), promotora de uma marca homônima de sabão e ex-mulher de Gabriel (Gabriel F. Capello, o Vicentico dos Fabulosos Cadillacs), um escritor que voltara recentemente do exterior, com quem Silvia tem um breve relacionamento. Mário (Mucio Manchini), por sua vez, foi amigo de colégio de Marcelo e Gabriel e se acha incapaz de conquistar uma mulher. É reconhecido quando decide recorrer a um programa de TV especializado em unir “corazones solitarios”, onde conhece Marta (Susana Pampín), que é massagista, não quer filhos e sonha com uma festa de casamento. Não chega a ser exagerado dizer que isto é basicamente tudo o que o roteiro e as atuações deixam transparecer dos personagens.

Se à primeira vista as formas escolhidas para representar esta classe média exageradamente apática podem afastar algum espectador, acusando os atores de amadorismo ou ineficácia, são exatamente elas que aparecerão como características mais fortes dos trabalhos de Rejtman. Em Silvia Prieto, a uniformidade dos tons usados em situações diversas (a mesma inflexão para lamentar um atropelamento ou festejar uma gravidez, por exemplo), nos afasta, se é que ela existe, da “essência emotiva” dos personagens, aumentando o grau de absurdo e, por isso mesmo, sugerindo um ar cômico às cenas.

É, também, esse afastamento um dos responsáveis a nos chamar atenção para outro aspecto, talvez o mais facilmente identificável – a grande influência exercida pela publicidade sobre os personagens, que, não apenas procuram consumir, mas se preocupam, principalmente, em usar seus novos pertences como forma de autopromoção.

A ilustração da prática consumista vai desde a alimentação até a vestimenta
(forma mais evidente de se fazer notar). Constantemente, o grupo é encontrado à mesa, havendo quase sempre entre os pratos pedaços de frango para serem comidos com as mãos – se bem nos lembrarmos, caricatura muito usada para representar a figura abastada do empresário capitalista nas filmografias engajadas do início do século XX. A isto, soma-se o desperdício, representado por Gabriel gastando meio frasco de desodorante por dia, e a necessidade de causar boa impressão, um pouco presente em todos os personagens, mas aparecendo com mais força em Silvia ou mesmo Mário, quando assume ter buscado a televisão por acreditar que conquistar a fama por alguns momentos seria a única maneira de fazer-se interessante.

Reforçando ainda mais essa importância da imagem, temos os personagens Brite
e Armani, que levam os nomes das marcas às quais estão vinculados seus segmentos, além dos conflitos da própria Silvia. Se antes a protagonista já se importava em impressionar, inventando viagens à Europa ou comprando eletrodomésticos só para receber visitas em casa, estes desejos de “parecer algo mais” intensificam-se com a aparição do que, por um momento, vai parecer a trama principal do filme, mas que logo receberá a mesma atenção que as demais. Dessa forma, a questão da identidade e da busca pela distinção surge quando Silvia descobre e passa a refletir sobre a existência de outras Silvias Prieto.

Não se nega que, apesar do grande número de personagens e abordagens, o enredo consiga apresentar certa unidade, e talvez o diferencial em Silvia Prieto seja exatamente a forma como esse termo pode ser aplicado. Se em outras produções a questão da unidade se dá a partir de um “motivo”, de um evento que de alguma forma irá desencadear uma série de acontecimentos, movimentando toda a trama ao seu redor, aqui ela parece ser muito melhor representada por um bloco maciço ou uma bolha fechada ao redor dos personagens. Sem dúvidas, existe um fluxo de acontecimentos, e as pessoas se movimentam todo o tempo, mas jamais esse movimento será direcionado à resolução de um problema fundamental para o andamento da trama. Ainda que algumas vezes as situações pareçam estar nos levando a um clímax, não existe o princípio de início – meio – fim; exposição – conflito –resolução. A unidade é o universo em que eles vivem, e a grande graça é assisti-los vivendo ali.

Para finalizar, quebrando completamente com as expectativas de quem ainda esperava um remate conclusivo para a trama, o filme de Rejtman recorre ao inusitado e usa de um tom assumidamente documental em seus momentos finais, trazendo testemunhos de várias mulheres, cada uma contando um pouco de sua vida e experiências. É, na verdade, esta escolha que talvez consiga anular a necessidade de um desfecho narrativo comum, fazendo com que os 80 minutos antecedentes a esta quebra se equivalham ao que é mostrado dali em diante: apenas uma ilustração do que se poderia passar na vida de uma das muitas Silvias Prietro espalhadas pelo globo.

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