domingo, 30 de maio de 2010

"O feio fato feito " por Victor Laet


O feio fato feito (1)
Um defeito. Na verdade, uma observação: existe o fato e existe o feito. A uns importa o fato. A outros, a importância maior é o feito. O feito pode se torna fato, mas o fato não necessariamente precisa ter sido feito – sendo fato já é considerado feito, ocorrendo (de fato) ou não. O fato é (se não sempre legitimado) aceito. O feito só é deveras fato caso possa ser provado. O fato nem sempre é feio. O feito, nem sempre é feio. Outro defeito (ou outra observação): o mais feio é o fato feito ou o fato que não feito? Ou, o feito que não é o fato ou o feito que é fato?

Um feito. Em 1983, a ditadura militar na argentina conhecia o seu fim e se iniciavam as gravações de “La historia oficial” (2) : fato. Outro feito: as gravações foram interrompidas por dois anos devido às ameaças recebidas pela parte técnicas: fato. Neste jogo de palavras e cacofonia foi construída a estória do filme, a qual narra, em suma, a busca da verdade por uma professora de história (de cunho positivista).

Norma Aleandro protagoniza Alicia, uma típica mãe e esposa da burguesia argentina em 1985. Com o cabelo sempre preso, suas roupas discretas, com tons coloridos, mas comportados ela leciona história argentina para o ensino médio num colégio só de homens. No primeiro dia de aula a professora capitula que “a história é a memória do povo” e com o passar de suas aulas demonstra claramente sua adoção ao positivismo histórico ao validar, como uma ciência exata, os fatos. Documentação, fontes, para ela a memória do povo só é aquela a qual pode ser provada, documentada, datada.

O fim da ditadura faz com que os argentinos exilados e auto-exilados retornem e (somados aos que aqui estavam) se indaguem quanto a questões financeiras e desaparecidos e presos políticos (3) . Esse fato (e feito) é adotado pela diegese do roteiro e assim a trama evolui grandiosamente: depois de anos distante, Alicia reencontra uma Ana, uma amiga a qual foi exilada e esta a revela sobre feitos (não considerados até então como fatos) da ditadura. A partir daí a professora de história desperta um olhar de que nem sempre a história é como se contada, registrada. Como um aluno, o qual ele repreende, afirmou: ‘a história é escrita por vencedores’.

O despertar tipo pela protagonista não é só na forma como aborda sua metodologia. Incapaz de engravidar, ela e marido decidem adotar uma criança. Ao ter a menina, o casal pactua em nunca falar sobre a adoção e tratam de registrar e escrever uma história (ou a estória) da filha. Com o despertar, Alicia se depara com o fato de que os feios feitos ocultos da ditadura podem ter sido por aqueles os quais a ajudaram a sua família construir uma boa vida, sendo o mais feio destes feitos, o fato de sua filha poder ser uma filha de algum desaparecido político.

É nesta busca pela identidade da filha, na história da filha, na negação da estória documentada da filha que reside a força do roteiro e, principalmente, da direção de arte e cenografia do filme (4). Quanto mais se aproxima da verdade, mais colorida e livre a personagem se veste, mais solto fica o corte de cabelo (5).

O filme ainda aborda rapidamente questões como o apoio da igreja quanto à junta militar instituída e as guerras das Malvinas. O fotograma acima mostra uma das cenas de maiores tensões, pois apresenta relacionamentos familiares e visões políticas. Os sogros da personagem principal são espanhóis comunistas fugidos da ditadura franquista. Geralmente, discussões entre socialismo e capitalismo tendem a ser cansativas e, muitas vezes, imbecis. Não nesse caso.

“La historia” enturma uma lista de filmes argentinos feitos no período pós Galitieri. Esses filmes são caracterizados por um registro honesto e direto das torturas, repressões e desaparecimentos de opositores ao regime militar na segunda metade da década de 70. Junto do longa-metragem de Puenzo, são muito citados “No habrá más penas ni olvido” (1983, de Héctor Olivera) e “La noche de los lápices” (1986, de Héctor Olivera).

NOTAS:

1. Feio” sempre será, nesse texto, um eufemismo.

2. “La historia oficial”, direção de Luiz Puenzo, roteiro de Luiz Puenzo e Aída Bortnik, Argentina, 1985. (Título no Brasil: “A história oficial”).

3. “MILICOS, MUY MAL PARIDOS,
¿QUE ES LO QUE HAN HECHO CON LOS DESAPARECIDOS?,
LA DEUDA EXTERNA LA CORRUPCION,
SON LA PEOR MIERDA QUE HA TENIDO LA NACION,
¿QUE PASO CON LAS MALVINAS?, ESOS PIBES YA NO ESTAN,
NO DEBEMOS OLVIDARLOS… Y POR ESO HAY QUE LUCHAR…”

4. Direção de arte de Adriana Sforza e Cenografia de Ticky García Estevez

5. http://pelisargentinas.com/wp-content/uploads/2010/03/lahistoria-caps.png

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