segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"E vou tomar aquele velho navio...", por João Roberto Cintra



Walter Salles e Daniela Thomas, diretores de “Terra Estrangeira”, dizem que a idéia para o filme nasceu da imagem de um navio encalhado numa praia. Metáfora curiosa: algo que serve para levar pessoas a diferentes lugares impedido de mover-se. No filme em questão, a mobilidade geográfica é evidenciada e discutida por personagens que tem que lidar com exílios, externos e internos, além da procura pelo real significado de casa, lar.

No filme, histórias a princípio distintas se cruzam. Miguel (Alexandre Borges) e Alex (Fernanda Torres) são brasileiros que foram tentar a vida em Portugal. Ele músico, mas arranja “bicos”, com passagem de produtos ilegais; ela trabalha como garçonete. Passam pelas mazelas e incômodos de estar na “casa dos outros”. Paco (Fernando Alves Pinto) vive no Brasil com a mãe (Laura Cardoso); ele faz faculdade de física, apesar de querer ser ator; ela, espanhola de nascimento, deseja voltar a ver sua terra natal ao menos uma vez. Sua morte, entretanto, interrompe esse sonho, deixando Paco sozinho e com a culpa de não ter realizado o que queria a mãe. É nessa hora que entra Igor (Luis Melo) na história: português residente no Brasil, seu negócio é tráfico de pedras preciosas e objetos de valor histórico. Aproveitando-se da situação de Paco, ele oferece a este a chance de conhecer a terra da mãe, trabalhando como intermediário da mercadoria. Já em Portugal, as vidas de Alex e Paco se cruzam e traçam um destino comum.

O filme funciona como uma bem elaborada metáfora da história brasileira antiga e recente. Há mais de 500 anos do seu descobrimento, há ainda nos brasileiros uma relação, muitas vezes inconsciente, com seu passado de colônia. Os colonos saíram de Portugal para explorar a nova terra; isso significou tanto desvendá-la como saqueá-la. A “terrinha”, a metrópole, funcionaria como o pai, a quem se deve obrigação e respeito; o que seria o Brasil para esses colonos? Ao mesmo tempo vieram também os colonizadores, pessoas que queriam fazer sua história na terra recém descoberta; queriam que a nova pátria lhes desse nome, lhes acolhesse. Mas isso nunca aconteceu. Jogados a própria sorte, os colonizadores tiveram que trilhar sua história sem o apoio do pai, e sem o respeito por ele – o que implica na falta também de valores como honra e amor.

Igor é a perfeita imagem do colono acima descrito. Vindo de Portugal, no Brasil encontra a terra do “tudo pode”. Não há em seu comportamento, assim como não havia em seus antepassados, a vontade de fazer a terra progredir – mas apenas extrair o seu melhor. Alex e Miguel são colonizadores, cansados de lutar em vão, e que tomaram a medida extrema de quem é maltratado em casa: abandonaram o lar (o país) à procura de serem tratados com dignidade e respeito, puderem se formar como donos de sua história – à procura do pai postiço que representa ainda Portugal. Personagens de ex-colônias, como Cabo Verde, aparecem no filme para mostrar que não só no Brasil Portugal deixou órfãos. “Aqui é o cabaré das colônias...”, diz um expatriado do continente africano.

Falando da história mais recente do país, dois temas são evidentes: as políticas econômicas do período em que se passa o filme e o exílio, que remete ao, então, muito recente fim da Ditadura Militar. Collor, primeiro presidente eleito com voto do povo após a Ditadura, instituía em março de 1990 o confisco do dinheiro de todos os brasileiros que estivesse na caderneta de poupança – desespero para a população que via, em meio à instável economia, a poupança como uma espécie de segurança. Eleito pelo pleno exercício da democracia, Collor faz dessa uma medida radicalmente ditatorial; mais uma vez o Brasil se vê longe de encontrar o “pai” que lhe apóie e dê amparo. Para muitos ficou impossível viver em um país desse modo. O exílio agora se fazia necessário não mais à força, mas como busca de uma vida melhor.

Na Ditadura Militar, ser exilado significava ser calado, impedido de exercer a função de cidadão. Quem teve que deixar a pátria nesse período carrega consigo o sentimento de impotência e abandono que lhe foi imposto, mesmo depois de ter voltado. A condição de exilado parece uma constante na memória do país – ou melhor, dos países, uma vez que ocorreu em quase toda a América Latina. Quando se deixa o lar de forma involuntária, tudo o que faz parte do exílio, do convívio na nova terra não parece seu, nada imposto o é. No filme, a personagem de Fernanda Torres fala do seu sotaque brasileiro que sempre a faz lembrar que não é dali, ou faz os portugueses olharem-na como eterna intrusa. Entretanto, não há como isolar-se do meio em que está, e acaba-se recebendo influências que nunca serão apagadas. Não se reconhece mais em sua casa de origem; mas também não se está em um lugar que se possa chamar de lar. Mesmo a personagem de Laura Cardoso sofria com seu não-lugar: vinda da Europa para o Brasil, não tinha sotaque, só a memória da sua cidade natal e as lembranças que mantinham viva a vontade de voltar lá e, como ela diz no filme, apenas olhar, reconhecer-se.

Diásporas involuntárias ativaram a memória como constante lugar de procura por fixar-se, mesmo que sempre se trate de um porto de passagem. Essa memória é evidenciada, e associada à história do filme, pela triste canção “Vapor barato”, cantada por Gal Costa durante a Ditadura Militar brasileira, como uma voz para os que tinham partido, mas que ainda resistiam, ainda que já um tanto cansados. Os exílios forçados desta época transformam-se numa espécie de saída, medida desesperada para pessoas que não encontram como sobreviver na democracia maquiada do período em que o filme se passa. Apesar disso, nenhum dos personagens está onde realmente queria: não se sentem acolhidos em seus próprios países e não estão seguros na condição de estrangeiros. O navio encalhado, na verdade resulta numa epifania para uma questão que procuram o tempo todo fugir: falta de mobilidade e de esperança das suas próprias vidas. Em tempos atuais, 64 ou 92 não parecem tão distantes como se poderia desejar.

"Subida ao Céu", por Sofia Donovan



Esse filme de 1952 é um dos melodramas que integram a prolífera Era de Ouro cinematográfica Mexicana. O espanhol Luis Buñuel, que iniciara sua carreira junto ao surrealista Dali, devido a desvios encadeados pela guerra civil em seu país acabou indo parar no México, onde adaptou sua produção ao popular gênero. Em Subida ao Céu estão presentes os excessos, o exagero das atuações e situações, a moral cristã, o império dos sentimentos mais básicos (os dramas familiares e afetivos) sobre qualquer aprofundamento contextual ou até do próprio desenvolvimento dos personagens, o maniqueísmo e outras tantas características melodramáticas.

Subida ao Céu conta as desventuras de Oliverio (Esteban Márquez), que tem sua noite de núpcias interrompida pela mãe moribunda, temerosa da ganância dos outros filhos. Ela lhe envia a outra cidade atrás do advogado da família para garantir que seus desejos para o destino da herança sejam cumpridos. Oliverio ingressa em uma espécie de epopéia melodramática, uma peregrinação angustiante na qual suas virtudes são requisitadas e colocadas em jogo.

Porém, apesar da temática, o filme me parece mais irônico do que trágico. É permeado por piadas; com políticos: um candidato a deputado encontra seu opositor, que simplesmente é igual a ele; com a questão do subdesenvolvimento: é sublinhado o deslumbramento do povo com a industrialização, sua preocupação com uma “urbanidad”; com a própria estrutura melodramática e a moral cristã que parece pregar: “Subida al Cielo” é realmente o nome de uma subida íngreme e seu topo é o lugar onde o protagonista comete o pecado de trair sua mulher. Vale ressaltar além de tudo isso o “circo” que acompanha o protagonista em sua viagem: o coronel “mandão” sempre armado, o já citado candidato a deputado que “fala bonito”, o latifundiário falido, as crianças infernais, a matrona, a “gostosona” interesseira, o motorista displicente, o aleijado, uma criança que nasce e outra que morre.

O filme se desenvolve sem preocupações com o realismo, o que é uma das características do gênero, mas é algo que também não se pode estranhar vindo de Buñuel. Dos planos e sequências que trazem a marca do filho do surrealismo se destaca um devaneio simbólico do protagonista, que perdido entre o desejo e culpa, interage com sua mãe, sua mulher e a mulher que o “tenta”, no qual Buñuel subverte tempo e espaço e abusa do absurdo. Tive a oportunidade assistir recentemente Os Esquecidos, que rendeu a Buñuel o prêmio de direção em Cannes, filme também de sua fase mexicana, e apesar das grandes diferenças, desse outro se tratar de um drama social, com personagens mais realistas e temática diversa, também nele há uma sequência marcante de sonho, inclusive relacionada à culpa.

O cineasta espanhol “entrou na onda” dos melodramas, mas, citando uma frase de um artigo de Luiz Zanin Oricchio (O Estado de São Paulo) nunca deixou de lado “alguns motivos centrais - a crítica da religião e da hipocrisia burguesa, os paradoxos da sexualidade, a força do desejo, os automatismos mentais, que obedecem, ao mesmo tempo em que escapam, as determinações sociais e históricas.”


Fontes:

http://www.revistaav.unisinos.br/index.php?e=9&s=9&a=50

http://pt.wikilingue.com/es/Cinema_mexicano

http://insurretosfuriososdesgovernados.blogspot.com/2009/01/anarquista-libertrio-surrealista.html

"Terra em transe", por Igor Calado



Realizado 3 anos após o golpe militar no Brasil, Terra em Transe sumariza os relatos da queda dos projetos políticos de esquerda na América Latina durante a década de 60, através da história do ficcional país Eldorado.

O filme conta a história do jornalista, poeta e ativista Paulo Martins e sua relação com a política do país latino, banhado pelo Atlântico. Nesse Estado alegórico, de grande pobreza, forças políticas se confrontam: o conservador e cristão Porfírio Diaz, ex-padrinho de Paulo Martins, e o demagogo populista Felipe Vieira, cuja campanha para governador é fortemente apoiada por Paulo. Nesse conflito, as contradições e reviravoltas políticas do país subdesenvolvido serão expostas e analisadas, em meio ao sofrimento do poeta desiludido.

Terra em Transe condensa os traços estilísticos que tornaram conhecida a obra de Glauber, como o uso de alegorias: Paulo Martins (Jardel Filho) é o protótipo do intelectual de esquerda na América Latina, dividido entre a arte e a política e sofrendo com profundas contradições internas.

Porfírio Diaz (Paulo Autran) encarna as forças politicamente conservadoras da região, seu nome sendo alusão ao ditador mexicano homônimo. Felipe Vieira (José Lewgoy) é o estereotipo do político populista, de esquerda, comum nas décadas de 50 e 60, que conta com o apoio das massas populares, estudantes, ativistas e da facção de esquerda do clero; quando ascende ao poder, fará concessões a seus opositores de direita e não cumprirá suas promessas.

Outro recurso tipicamente glauberiano aqui presente é a atuação exagerada, irreal e brechtiana, com atores falando diretamente para a câmera em diversas passagens. Desse modo, Glauber pretende que o espectador saia de sua posição passiva e se questione (em geral, politicamente).


Opressão no passado e no presente

É curioso notar, segundo análise de Ella Shohat e Robert Stam (2006, p.112), o tratamento da questão indígena no filme. Ao ser eleito senador, Porfírio Diaz realiza um ritual na praia, aonde chega acompanhado de um padre e um nobre europeu do século XV; o grupo vai em direção a um índio, próximo do qual está instalada uma cruz. Diaz finca sua bandeira negra ao lado da cruz, ajoelha-se e reza. A passagem metaforicamente repete a “posse” européia do continente e a primeira missa católica no Brasil, criando uma releitura da chegada de Cabral e dos europeus ao Brasil – hipótese reforçada pela câmera que começa por filmar as águas e move-se em direção à areia, sugerindo que o séquito veio do mar.

O mesmo acontece na cerimônia de posse de Diaz que, realizado num palácio e com pompa européia, remete claramente às cerimônias dos reis barrocos ibéricos. O ditador que dá nome ao personagem Porfírio Diaz foi governante do México por 31 anos e é considerado responsável por campanhas de massacre aos indígenas desse país.

Desse modo, Glauber enfatiza a perpetuação da opressão, comparando a elite conservadora local com os colonizadores europeus e a oprimida população brasileira com os nativos do território. A ascensão de Diaz ao poder promete a Eldorado e seu povo o mesmo que trouxeram os colonizadores aos ameríndios, enfatizando a continuidade política de séculos.

A visão da América Latina como um continente em estado perpétuo de exploração e colonização, dependente de diferentes grupos opressivos ao longo da história, era uma imagem comum entre os intelectuais de esquerda da região na década de 60 e 70. Tal imagem foi cristalizada através da historiografia revisionista dessa época, de inspiração esquerdista, como demonstra a seguinte passagem de As Veias Abertas da América Latina, texto icônico desse grupo: “América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos [...] do Renascimento” (Galeano, p.17).


Crítica da esquerda populista

No plano político, Glauber prefere centrar-se na trajetória de Felipe Vieira, o líder populista, em detrimento da movimentação da direita, operando uma análise ácida das falhas da esquerda, que não conseguiu evitar o golpe. Apesar do caráter “palaciano” que toma o golpe de Estado no filme, este serve obviamente como paradigma para os golpes militares na América Latina do período, especialmente o de 64, no Brasil.

Felipe Vieira condensa a imagem do político populista e demagógico que se tornou comum no Brasil do entre-ditaduras, como Jânio Quadros, Miguel Arraes, João Goulart, entre outros. Contando com o apoio de militantes pela melhora das condições da população carente, o inexperiente Vieira ascende ao governo do estado de Alecrim, mas não encontra forças para pôr em prática seus projetos diante da oposição de diversos setores. Prefere trair suas bases e seus partidários e ceder às pressões para perpetuar-se no poder, o que eventualmente não consegue.

Entretanto, sua crítica mais ferrenha à demagogia de esquerda se dá no real papel do povo em tais governos. Glauber ressalta como a população, politicamente inapta e despreparada, não compreende criticamente e não faz parte do governo dos demagogos. Ao contrário: quando clama por voz e espaço, evidenciando sua degradação, o “dissidente” é calado, situação alegorizada no assassinato do pobre em meio à festa do comício de Vieira, aos gritos de “extremista”.


A terra em transe e o poeta em crise

Operístico, Terra em Transe é também histérico e catártico em sua visão da política às vésperas do golpe, encenando todo o processo de ascensão e queda da esquerda, golpe da direita e desencanto final e apoteótico numa estética acelerada e catártica.

O transe é evidenciado logo no começo do filme: as imagens iniciais começam no mar para depois chegar a uma terra de florestas densas, filmadas em vistas aéreas e tendo ao fundo cantos iorubás. Esse início anuncia o mote do filme: a análise desesperada da terra num momento político-social convulso. Em análise da obra de Glauber, Ismail Xavier indica que neste filme, como em outros do diretor, a história centra-se em épocas de ruptura social, que ele chama de “momentos de verdade”, depois dos quais a sociedade estaria irremediavelmente transformada e nos quais o estopim da transformação é a violência (2001, p.120).

O transe (mas não o filme) atinge seu apogeu nos comícios carnavalescos de Vieira, onde ele, seus apoiadores políticos e “o povo” que o segue entram em profundo estado de catarse. Essa união, no entanto, surge menos como uma forma de radical harmonia política do que como um modo de seduzir as massas, suprimir o debate e mascarar as dissonâncias, forjando uma coesão que existe nas festas, mas não na política.

O transe do título é experimentado também nas orgias das festas promovidas por Júlio Fuentes, o grande empresário e, principalmente, nas agonias do protagonista Paulo Martins, cuja desilusão com a situação política e seu papel como artista-intelectual de esquerda o levam a uma espiral de decadência e perturbação.

Ao final, seu desespero com a queda de Vieira e o fracasso final da esquerda o leva a uma resistência armada suicida. Sintetizando o desencanto geral da esquerda com o golpe, Paulo, depois de suas filiações partidárias diversas, procura na morte um ato último de coerência política. Agonizante, imagina a exterminação de Diaz e seus partidários e afirma, em resposta ao questionamento de sua companheira sentimental e de militância, que sua morte era “prova do triunfo da beleza e da justiça” – um recurso final de utopia num mundo onde esta acabava de morrer. A agonia de Paulo é intercalada com a coroação ibérica de Diaz e o filme termina com a visão do ditador coroado e seu rosto tomado por uma convulsão ensandecida, a face da direita no poder dali em diante.


Fontes:

SHOHAT, Ella & STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. Cosac Naify – São Paulo, 2006.

GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Paz e Terra, 45ª edição – Rio de Janeiro, 2005.

XAVIER, Ismail. Cinema Moderno Brasileiro. Paz e Terra, 3ª edição – São Paulo, 2001.

"Deus e o diabo na terra do sol", por Ramon Dias Ferreira




Talvez o mais influente e controverso diretor da história do cinema brasileiro, Glauber Rocha realizaria em 1964 Deus e o diabo na terra do sol, filme icônico do Cinema Novo, movimento que teve no Brasil uma maior expressão dentre as latino-americanas. Considerado até hoje por muitos críticos como o maior filme nacional já feito, Deus e o diabo viria, assim como todo o Cinema Novo, trazendo uma espécie de resposta a então recém-falida produtora Vera Cruz, que servia de exemplo para a ineficácia do atual sistema político/econômico nacional na criação de uma indústria cinematográfica. Logo surgia um cinema criado a partir das condições econômicas nas quais se encontrava o país, incorporando o seu estado de subdesenvolvimento de forma não apenas temática, mas também estética, provando que para se fazer cinema só era preciso “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”.

A obra acompanha a peleja de Manoel e Rosa, um casal de camponeses que vive em condições de miséria no sertão nordestino. Sonhando um dia ter um roçado só deles, Manoel trabalha como vaqueiro para o Coronel Morais, enquanto Rosa cuida da produção para a própria subsistência. Um dia Manoel vai para a cidade fazer a partilha do gado, quando torna-se vítima de um ardil pelo Coronel, que tenta roubar-lhe as poucas cabeças a que tinha direito. Revoltado com a injustiça, o vaqueiro não vê outra saída a não ser matar o coronel. Neste momento onde ocorre o grande ponto de virada da vida do casal, que passará a vagar pelo sertão em busca de redenção e esperança.

Já na breve apresentação pode ser notado o forte caráter revolucionário da obra. Diferentemente do Vidas Secas de Nelson Pereira do Santos, onde Fabiano recusa-se a matar o policial que o oprimiu, Manoel, tendo a mesma oportunidade que o outro, não hesita. O assassinato do Coronel Morais é a primeira ruptura com o sistema opressor rural, dando um novo rumo para a vida dos protagonistas. Em um mundo bipolarizado entre as forças de esquerda (revolucionárias, ou o “bem”) e direita (reacionárias, o “mal”), o filme reflete o forte idealismo (ou até maniqueísmo) de Glauber. O crime cometido por Manoel é dessa forma absolvido, pois ele (que representa a população oprimida) deve, segundo as leis marxistas, entrar em confronto direto com a elite latifundiária que o oprime, em nome de uma utopia chamada Revolução. Curioso pensar que a tal Revolução nunca se concretizou, talvez pelo fato da própria teoria marxista considerar o “proletariado” como uma entidade abstrata, desconsiderando seus anseios e individualidades, ou nunca ter-lhes perguntado de fato se o comunismo era de seu agrado.

Apesar, contudo, do caráter panfletário da obra (caráter que não pode ser atribuído apenas a Glauber, pois a produção foi realizada em uma época em que a utopia comunista havia retornado com uma nova força), o filme consegue transcendê-lo, apresentando um “sertão universal” próximo ao idealizado por Guimarães Rosa. Em sua busca por redenção, o Manoel-vaqueiro cruza um sertão repleto de misticismo, violência e amor, elementos tão presentes no coração de todo homem que procura a sua própria salvação. Torna-se então Manoel-beato, e aceita a fé como doutrina. Glauber faz aqui uma imersão no mundo das religiões messiânicas que surgiram no Nordeste, e ao lado do Beato Sebastião, Manoel segue em uma jornada espiritual através do Monte Santo, guiado pelas profecias e enunciações do fim do mundo. Contudo, apesar de seduzir pela promessa de salvação, o culto mostra-se de uma fé cega e radicalista, realizando sacrifícios para “purificar os pecadores pelo sangue dos inocentes”. Com as crenças abaladas, Manoel não consegue enxergar nesse ato desumano nenhuma forma de redenção, o que o faz abandonar o caminho da fé.

Prosseguindo sua debanda pela terra do sol, o ex-vaqueiro e beato cruza o caminho de Corisco, cangaceiro que escapou ao massacre que dizimou o bando de Lampião. Surge o Manoel-cangaceiro. Mais uma vez levado pelo desejo de redenção do seu povo e de si próprio, Manoel junta-se a Corisco, e agora o mundo explorado é o do violento banditismo social. Mas, assim como na vez em que esteve junto a Sebastião, nosso herói (nos sentido arquetípico da palavra) começa a questionar a brutalidade bestial das ações do cangaceiro, o que o faz mais uma vez duvidar do caminho que esta tomando. É interessante observar que os personagens não possuem suas próprias individualidades, mas são emblemas das classes a que representam. O casal de protagonistas não é Manoel e Rosa, mas um retrato do sertanejo oprimido, espécie de versão nordestina do proletariado. Da mesma forma, Sebastião e Corisco representam, respectivamente, a religiosidade messiânica e o cangaço. Seus desejos e ações não lhes são próprios, mas sim da personificação destas entidades. Já Antonio das Mortes, matador que persegue os protagonistas durante o filme, personifica o veículos opressores utilizados pela Igreja e pelos latifundiários para acabar com as revoltas populares.

Com a morte de Corisco pelas mãos de Antonio das Mortes, Manoel e Rosa disparam em uma corrida para um futuro incerto. Todos os caminhos seguidos apresentavam um caminho para a transformação, mas nenhum parecia ser o correto. Assim, com este último ato, Glauber parece nos alertar (ou melhor, incitar) para uma mudança iminente na estrutura social do sertão (leia-se “mundo”), como um barril de pólvora prestes a explodir, e que apesar de ainda não ter encontrado um rumo, não pode continuar parado.

"Filme de amor", por Lucas Simões



O título é capaz de equivocar os distraídos. Mas não se engane, em “Filme de amor” existe, ao fundo, um nome de maior força - o intrépido Julio Bressane. O realizador, que foi um dos alicerces principais do cinema marginal brasileiro, permanece como exceção em um país movido em sua essência por produções de temáticas estritamente nacionais. Bressane, durante o regime militar, foi um dos cineastas que mais sofreram com a censura, tendo várias de suas obras rejeitadas pelas distribuidoras. Hoje, após certa abertura política e, sobretudo, cultural, o diretor pode enfim extravasar seus desejos reprimidos do passado.

“Filme de amor” faz parte dessa libertinagem bressaneana que busca contemplar a indefinição intrínseca do amor através de uma representação erótica imprecisa que dialoga a todo o momento com múltiplas manifestações artísticas. Já em seu começo, o filme vai surpreender o espectador, colocando-o em contato com uma cena em que exibe os bastidores da própria produção. Uma claquete surge na imagem e define a posição de sua realização como uma obra cinematográfica. Trata-se de um plano exterior ao contexto fílmico que serve mais como uma introdução metalinguística, porém essa cena é o ingresso para o mundo imagético de Bressane.

A história se baseia sutilmente no mito grego das três graças, mulheres consideradas deusas da beleza, felicidade, fertilidade, dentre outras características. De acordo com a mitologia, elas participavam de festas e encontros para promover a satisfação e despertar o prazer das pessoas. Em “Filme de amor”, o mito sofrerá uma adaptação contemporânea com duas mulheres (Hilda e Matilda) e um homem (Gaspar) que escapam de suas rotinas para viver um período isolados em um apartamento no meio do subúrbio carioca. Assim como as três graças, essas personagens participarão de um ritual dramático onde o jogo sensual de gestos e palavras busca evocar o prazer de um público não presente: aquele que assiste ao filme.

As ações teatrais dominarão todo o enredo. As falas, por exemplo, são constituídas não propriamente de diálogos, mas sim de pequenos monólogos. Trechos de clássicos da literatura como “Moby Dick” serão recitados. As palavras são proferidas como um apelo à reflexão sobre o amor, sobre a carne, sobre os segredos. As performances corporais potencializam um eroticismo que fica no limiar entre o vulgar e o puro, porém nunca atingindo esses polos. Durante essa encenação, alguns planos paralelos irão apresentar a estrutura urbana. Elementos como cabos elétricos, postes e concreto contrastam com toda dramatização incubada no apartamento.

O resgate renascentista também é outra opção estética evidente, desde a mitologia das três graças (que se torna um poderoso símbolo da época) até a constituição dos planos pictóricos, que dialogam com diversas pinturas como as de Boticcelli e Goya.

O trabalho peculiar com a câmera será refletido em diversos momentos do filme. Primeiramente, há uma preferência pelo plano-sequência, valorizando as atuações performáticas dos três personagens que em muitas cenas pertencem ao mesmo plano. Há também trechos em que a câmera permanece estática e na mesma sequência assume uma movimentação buscando novas perspectivas. Em parte de maior ousadia, os personagens estarão conectados na própria grua de captação e a imagem simula um poético voo pelo apartamento.

O poder visual é de agraciar os olhos. Em momentos, a fotografia de Walter Carvalho é preta e branca com um efeito que reforça a distorção entre a ausência e a presença de luz. Em outros trechos, as cenas ganham cores saturadas. A profundidade de campo produz a sensação de um motivo inatingível, como na cena em que, dentro de um trem, são filmados diversos vagões vazios. A iluminação atravessa os múltiplos níveis de um plano que tende ao infinito. O contraste de foco será outro recurso que, em geral, vai privilegiar o motivo mais próximo da câmera, porém irá contemplar imagens ao fundo que dirigem o olhar do espectador para uma realidade desfocada e ambígua. Como um exemplo, temos Gaspar em foco no primeiro nível que observa, ao fundo distorcido, as duas mulheres em um contato mais íntimo e carnal. O próximo plano, seguindo o mesmo recurso estético, exibe Hilda a observar Matilda e Gaspar em atos libidinosos.

Toda a plasticidade cinematográfica consegue elevar (ou transformar) as imagens em movimento à categoria pictórica. É o cinema impresso como uma pintura. Essas imagens estarão incorporadas de simbologias. Em uma cena de extrema maestria poética e domínio visual, Bressane apresentará uma das personagens recitando um trecho que relaciona o poder da lua e o ser humano. Inicialmente, a câmera foca na personagem Matilda e traduz apenas a representação de sua imagem. Nas palavras finais, Matilda profere: “Conhecer uma coisa viva é matá-la. É preciso matar a coisa para conhecê-la satisfatoriamente. Por essa razão, a consciência desejante, o espírito, é um vampiro.” Ao término, a câmera ganha movimento e segue em travelling até exibir de cabeça para baixo as outras duas personagens. A câmera agora possui contexto diegético, o vampiro está presente e observa o ato. Com o reforço sonoro, a perspectiva subjetiva finalmente é do morcego a espreitar. O efeito reproduz, dessa forma, uma sincronia homogênea entre o trecho recitado, as ações corporais, a movimentação da câmera e a banda sonora.

Ao falar sobre sua obra, Bressane comentou: “Filme de amor é sobre duas coisas: intervalos e sobrevivência. O intervalo é o que está entre as imagens. A sobrevivência fala das pessoas movidas por um impulso inconsciente, um desejo de recriar a existência para poder sentir aquilo que é duro demais para sentir-se, isto é, o sentimento de amor.”

Esses intervalos fragmentam o filme em pedaços, formando planos independentes, porém há uma relação de aproximação entre eles que mantém a harmonia de sua linguagem. Em uma comparação mais excêntrica, é possível relacionar o “impulso inconsciente” de Bressane com o impulso nervoso que atravessa os neurônios humanos. Apesar de bem próximos, os neurônios não se tocam, mas entre eles há uma série de elementos físico-químicos que servem para catalisar as reações na travessia do impulso. Similarmente, em “Filme de amor” há espaços entre as cenas, e a sobrevivência é o elemento perpetuador do seu impulso, da sua sinapse, da sua existência.

“Tangos, el exilio de Gardel" (Fernando Solanas, 1985), por Gibran Khalil




"O Exilio de Gardel” é um daqueles filmes oportunos que surgem em momentos importantes da história e são marcados justamente por este excesso de atualidade. Assim como o clássico de Rossellini, “Roma, cidade Aberta” – desenvolvido ainda com a ocupação alemã em curso e finalizada poucos meses após o fim da guerra – Fernando Solanas desenvolveu seu projeto sobre o exílio ainda em exílio, finalizando-o dois anos após o termino da ditadura militar argentina (83) se tornando assim um manifesto moderno sobre os problemas latino-americanos.

O filme conta o relato de vários artistas argentinos exilados na França – “a capital do exílio, dos milagres e das lágrimas” – que estão a produzir uma peça de “tanguedia” – Tango, comédia e tragédia – intitulada “O Exilio de Gardel”. Ao longo de quatro atos o filme vai desenvolver esta peça como uma metáfora ao próprio filme e, os questionamentos intelectuais em função da peça, como os questionamentos sobre a função do artista exilado frente a contexto político social do seu país.

A história se desenvolve no final dos anos 70 até 83. Período igual ao exílio do próprio cineasta - também na França. Assim, ao descrever a vida de vários artistas exilados, descreve-se a si próprio em suas angústias e tragédias. A produção da tanguédia é a metáfora completa da vida em exílio.

O alter ego de Solanas é o personagem de Juan Dos, responsável por produzir a peça do irmão que ficou na Argentina. Enquanto isso, um francês dirige a peça, tentando impor sua própria estética. Neste período do filme, desenvolve-se uma discussão acerca do que deve ser a estética de uma produção Argentina (mesmo latino-americana). Juan Dos defende a estética da desordem, do não estilo, do “sem fim”, já que o exílio também não tinha fim. A desordem como uma nova ordem, o não estilo como um estilo. É a voz do “subdesenvolvido” que propõe uma nova estética. A discussão termina com o diretor francês queimando “literalmente”, em um acesso de realismo fantástico de Solanas, sua caixa de fusíveis ao tentar compreender esta nova estética.

O filme poderia ser resumido a um musical político. O tema de Gardel vem do fato de várias de suas músicas terem sido censuradas na ditadura, sendo tocadas só no exterior, daí o seu exílio. Ao mesmo tempo que o filme concentra em si toda a discussão estética inerente ao período de florescimento dos cinemas novos, sua temática político militante é bastante clara. Reação ao abatimento do exílio. O terceiro ato é cercado por vozes de protesto que sonham com o país ideal para o qual eles querem voltar.

"O Exilio é ausência. Logo, o exílio existe aqui e lá”. Esta parece ser a máxima de Solanas sobre o exilio ao qual ele mesmo foi acometido. Através de uma tristeza plena, uma preocupação constante, os exilados vivem aparentemente seguros, entretanto, suas mentes, ausentes do seu “conteúdo”, vivem buscando informações do seu país. Assim, exclui-se a possibilidade de relacionar o exílio a uma sensação boa de segurança e conforto. O exílio é uma tragédia, uma desesperança plena, uma deficiência, onde se vive à solidariedade dos outros.

Por fim, crítico acerca de sua própria existência, sobre a vida no exílio e na Argentina, o cineasta escolhe o realismo fantástico para o seu termino. Este gênero narrativo tão comum em nossa literatura latino-americana. Após uma longa cena de protestos em homenagem aos desaparecidos políticos, o velho intelectual, Gerardo, encontra-se com Carlos Gardel e San Martín - os três exilados. San Martín e Gardel falam a Gerardo - já cansado e doente - que finalmente é hora de voltar. Era o fim do filme, pois era o fim do exílio. “Lá e cá”, todos voltariam para reconstruir um país.

"Memórias do subdesenvolvimento", por Bruno Alves Ferreira




Sergio, Sergio, Sergio eu te entendo! Enfim um filme que ilustra e me arrefece esta vontade titular que tenho de xingar os pobres e ignorantes coit... Opa, esse é outro filme e outro estudo... Uma teoria de estudos culturais que estou elaborando, a semiótica do desprezo pelos pobres e ignorantes coit... Oi? O filme... Sim! Sergio (Sergio no original) te entendo! Também tenho esta vontade titular que tenho de ser acusado injustamente de estupro e de me surpreender por ser inocentado. Esperem, meus amigos leitores e iguanas fãs de restart! Não, eu não tenho o desejo de violar meninoca alguma! O que eu tenho é sede! Sede dramática! Sede do pavor tomar-me a alma, sede das dúvidas, oh, tantas dúvidas! encherem minha massa cinzenta! Sede de uma tragédia insólita, como o Corinthians ganhando a libertadores, na minha vida! Há coisa mais chata que uma vida sem eventos e preocupações, onde seu único temor é se há sorvete de baunilha suficiente para se deliciar enquanto se assiste o novo episódio de Glee?

Ora! Já dizia Camus, Proust, Mann e outros escritores com um talento comparável à myself (em inglês: myself). Uma vida sem eventos é uma vida vazia de memórias! Ou melhor, uma correção com o espírito ardente da encheção de linguiça já que eu poderia corrigir, editar, remendar, consertar o texto (leitores que respeitam meu intelecto incomum e identificam de bate pronto qual parte do corpo eu chamo de minduim, com certeza notaram outros artifícios deveras reptelianos que uso e abuso para atingir o limite de palavras) repleta de memórias semelhantes que entremeios as recordações adquirem um caráter único, de unidade mesmo cabras da peste! Ora! Pensem bem e filosofem comigo e com aqueles citados no início do parágrafo. Hoje eu durmo, urino, defeco, acordo, como e assisto Glee. Exatamente nesta ordem. Amanhã durmo, urino, defeco, acordo, como e assisto Glee (fingiremos que Glee passa todos os dias e não somente às quartas, sextas e domingos). Meros seis meses dessa rotina em que i never stopped believing, ao rememorar estes doces momentos, vejo-me apreciando uma memória deliciosa, um amálgama de todos estes grandes momentos, mas que por suas semelhanças adquirem uma forma que delineia um grande vaziozinho na minha mente. Com 80 anos (ou seja, amanhã se contar em idade mental) minha vida resume-se em apenas 24 horas de dormidas, urinadas, defecadas, acordadas e walking on sunshine (através dos outros) e ocasionalmente single ladies.

Tais autores viam a memória como a única maneira de viajar no tempo. Camus em Primeiro Homem, Mann em Montanha Mágica e Proust entre a ida na padaria em Um Amor de Swann e o consumo do pãozinho francês (chamado de bolinho brasileiro na frança, um sapo de boina muito articulado me disse) em A Prisioneira. Uma vida cheia de eventos diferentes era uma vida cheia! Era uma vida em que ao fechar-se os olhos adquiria-se a capacidade de reviver inúmeros momentos que tomavam formas diferentes na sua memória! É como se a vida de Glee fosse um quadrado branco. Cada memória diferente significar um quadrado com uma cor diferente. Numa vida cheia de brilho, a memória seria preenchida apenas por quadrados brancos, transformando o sulfite da minha vie num... sulfite. Já com as memórias, ruins, boas, ou cafés com leite como a produção cinematográfica nacional, o sulfite se assemelharia mais à uma pintura de Jackson Pollock, arte xoxa e enganadora mas que ainda assim é considerada arte. Mas o que isso tem a ver com o filme, señor Bruno, pergunta-me um claudicante estudante. Mas tudo, little niño ragazzo moleque! Próximo parágrafo!

Sergio, escritor vagabundis, que vive de renda, de sedução e cover de Jece Valadão, vive no marasmo da solidão auto-induzida. Em plena Cuba (Cuíca em alguma língua morta indígena) no afã das mudanças, Sergio Chulapa (e tome chulapa na Elena) como qual a besta covarde que é, escolhe a abster-se do movimento produtivo, de enterprisar sua vida. Não amigos, não virei executivo ou investidor da bolsa embora tenha jeito pra coisa, a úlcera já foi adquirida a alguns anos. Sergio é um cara que parece acreditar que no matter o que ele faça puerra neñuma aconteçerá. O filme inicia com uma de suas milhares reclamações (acostumem-se) após sua família que de besta não tem nada emigrar daquele finzinho de mundo chamado Q-Bah para a terra dos bravos e libertos. Não estou falando do senado nacional e sim dos Estados Unidos da América. Mas Sergio tem ojeriza, um verdadeiro nojinho do consumismo americano. Mas ao mesmo tempo tem ojeriza, um verdadeiro nojinho da decadência econômica, do povo pobre e de Timão e Cúba em geral. Sergio é um verdadeiro mazombo cubano. Sente saudades de Parri (ou pachorá?) como se falso eruditismo o fizesse francês. Basta não tomar banho, burro! Dá zero pra ele. Mas aí que está, Sergio, pensador unicamente com o zarolho Serginho, não toma nenhuma atitude além de ir atrás de mulher! Aí que está a surpresa secreta do filme. O Sergio é brasileiro minha gente! Tudo bate! Reclama, reclama, reclama, pega muié, reclama, reclama e nada faz! E ainda se acha o umbigo do mundo! Mais brazuca que isso só Santoro nas Panteras. Alegorias cubanas que nada, Tomás Gutiérrez a Lêndia faz uma crítica velada ao povo brasileiro pós ditadura demonstrando um poder de previsão mais acurado que o sinal da MTV!

No, no, no, no! No hablo español dirão os mais conversadores! Argumentarão que a caracterização de Sergio é uma metáfora para o papel do intelectual na revolución cubana. Oxe! Da decadência da burguesia cubana. Oxe! Do exílio em sua própria casa, em seu próprio país, motivado pelos preconceitos que chegam de mansinho com o academicismo (só não é mais furtivo que aqueles pichadores anarquistas, deem um tempo seus caras de melão!). Oxe! De um homem consumido pelas suas taras econômicas. Oxe! Vocês são tudo doidos! E ainda falta uma linha!

"Los tres huastecos", por Lucas Freire Rafael



Amores, traições, conquistas, reviravoltas e uma enxurrada de outros títulos-bordões podem ser atribuídos a Los Tres Huastecos (1948), de Ismael Rodriguez. Seu brilhantismo de fato ainda não havia ocorrido, pois só tardiamente, em 1968, com o Animas Trujano, Ismael conseguiu projetar seu nome mundialmente. A prova disso foi o fato do diretor ter sido nomeado a diversas premiações mundo afora, entre eles, o Oscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira.

A sinopse por si só já evidencia a carga cômica que o filme possui: três irmãos gêmeos nascem em Huasteco, uma cidade do México, mas ainda bebês eles são separados devido a morte de seus pais. Então, cada um deles passa a criar sua vida em vilarejos próximos. Juan de Dios vive em Potosino e atua como padre e dono de uma igreja; Víctor, de Veracruzano, é capitão do exército; e, por fim, Lorenzo vive em Tamaulipeco como um dono de bar. Porém, um assassino conhecido por Coiote está à solta, e Victor foi designado a encontrá-lo e prendê-lo. No desenrolar do filme, as situações são feitas, obviamente, para que o reencontro entre os três irmãos ocorra e assim possibilite que a trama se desenvolva como o esperado.

No filme, desde o início, é forte a marcação do diretor de distinguir claramente as características, personalidades e caráter dos personagens principais, todos eles interpretados por Pedro Infante. Juan de Dios é atento às leis divinas e segue sua vida de acordo com a ética cristã, e por isso, muitas vezes durante o filme expõe opiniões discriminatórias em relação à mulher (provavelmente algo comum à época) e em torno de tudo isso, passa uma imagem de bondoso, educador, benevolente. Por sua vez, Víctor adentra na posição de capitão do exército e se demonstra autoritário, canastrão, mulherengo, o típico oficial que abusa da autoridade para conquistar mulheres. E por fim, o “misterioso” Lorenzo, que transparece uma imagem de sério, sisudo, introspectivo e de extremo mal-humor. Como pode-se notar, cada personagem possui uma profissão ou ocupação e sua personalidade é traçada de acordo com o estereótipo pertencente a cada cargo. Este fato evidencia ainda mais a ideia de separação entre os três personagens.

Essa tentativa de distinguir cada personalidade consegue se impor até certo momento, pois é a partir do reencontro dos irmãos que, aos poucos, as personalidades e/ou atuações vão se misturando até chegar ao caos que o final sugere, no qual encontramos todos os três personagens vestidos da mesma forma, interagindo entre si. Neste instante, todo o empenho visto durante o filme de sustentar essas três personalidades some, e no lugar, a confusão se instala. Já ao final de seus longos 120 minutos, o filme torna-se então um grande passatempo: descobrir quem é quem.

É um filme divertido, com canções alegres e cantantes, com personagens (em sua grande maioria) pitorescos que estão ali claramente para contar uma história sem muitas dificuldades, mas que infelizmente encontraram algumas. Mas se tratando do gênero, tais “empecilhos” podem ocasionar, hoje, o efeito inverso. Ao invés de deteriorar a obra, acabam por enaltecer e atribuir mais valores ao filme, e em definitivo, é exatamente isso o que ocorre com Los Tres Huastecos.

"Happy together", por Ricardo Moura



Happy Together é um elogiado filme escrito e dirigido pelo chinês Wong Kar-Wai, produzido na Argentina em 1997. O filme se inicia com um narrador, que depois descobrimos ser Lai Yiu-Fai, falando de sua conturbada relação com Ho Po-Wing. Ficamos sabendo, então, que após uma série de rompimentos e reatamentos, o casal de chineses resolve recomeçar mais uma vez, só que agora decidem ir para a Argentina.

Após a breve apresentação do problemático casal, o filme se transforma em um road movie e, já na América do Sul, os dois chineses decidem ir de carro às cataratas do Iguaçu. Diante dos vários problemas encontrados que os impedem de chegar às cataratas, o casal rompe mais uma vez. O road movie, então, termina sem cumprir seu objetivo. Ho Po-Wing e Lai Yiu-Fai nunca chegarão a ver as cataratas juntos. O recomeço frustrado em terras distantes, as dificuldades da condição de imigrantes chineses pobres em Buenos Aires e a incapacidade do casal de tornar concreto o plano de chegar às cataratas dão o tom de toda a narrativa.

Depois de romperem a relação na estrada, Lai Yiu-Fai consegue o seu primeiro emprego na cidade, como porteiro em uma famosa casa de tango de Buenos Aires. É então construída uma situação emblemática da condição dos imigrantes chineses na cidade, apresentada de forma muito sutil por Wong Kar-Wai, que foge durante toda a narrativa dos instrumentos simples e das fórmulas fáceis.

Fai trabalha no Bar Sur, uma das mais famosas casas de tango da Argentina – está sempre perto de onde se manifesta um dos mais emblemáticos ícones da cultura argentina, mas quase nunca passa da porta de entrada e jamais consegue dançar o tango, também não consegue dinheiro o bastante para retornar a Hong Kong, como deseja. O dinheiro que ganha é suficiente apenas para pagar o aluguel de um pequeno muquifo em um cortiço no subúrbio pobre de La Boca. Ele está sempre em um limbo periférico. Ho Po-Wing, por sua vez, consegue entrar e dançar como um cliente do Bar Sur, mas somente na condição de miché. Precisa vender seu corpo e, ironicamente, o faz para outros estrangeiros, porém ricos e não chineses, para conseguir assim ter acesso a uma Buenos Aires que de outra forma lhe seria vedada.

Também é notável a relação que Wong Kar-Wai constrói entre seu filme e a cidade de Buenos Aires. Eu já havia assistido ao filme antes de ir à Argentina, porém, depois de conhecer a cidade e os portenhos, mesmo com a superficialidade de um turista, e de conversar com pessoas que tinham vivido lá por algum tempo, a história do filme me apareceu de outra forma. O diretor chinês não cai na tentação em que caíram outros diretores que fizeram filmes em cidades com personalidade forte como Buenos Aires: a de fazer da cidade uma protagonista da narrativa. Muito menos impede as pessoas do resto do mundo de compreender e se envolver com a história da conturbada relação entre os dois personagens de tão fortes e distintas personalidades. Wong Kar-Wai, no entanto, fornece certamente uma ampla gama de elementos interpretativos aos que conhecem a relação dos portenhos com os imigrantes chineses, os bairros da cidade, e a relação entre o tango, o turismo e a prostituição. Os portenhos e as pessoas que lá viveram por algum tempo e que portanto conhecem a fundo a cidade de Buenos Aires têm, com certeza, a possibilidade de compreender a história de Happy Together de maneira singular.

A forma com que as cores são utilizadas na construção narrativa também é brilhante. O início triste do filme, em que o casal não consegue chegar às cataratas, e suas difíceis vidas após o término da relação depois de tão grande esforço para ir à Argentina, são representados em preto e branco. A primeira cena colorida, dominada por tons de um vermelho intenso, surge quando Ho Po-Wing chama Lai Yiu-Fai ao seu hotel – a primeira possibilidade de um recomeço. Quando descartada essa possibilidade, o branco e negro volta a dominar a tela até que Ho Po-Wing propõe novamente um recomeço. A cena em que os dois vão de ônibus do hotel de Ho Po-Wing ao cortiço em que vive Lai Yiu-Fai – a primeira após a proposta - é a primeira de uma série que o espectador vê em cores. Em seguida o apartamento, outrora visto por uma fria escala de cinzas, nos é apresentado aconchegante nas cores quentes de Wong Kar-Wai. Passamos novamente a ver cenas do trabalho de porteiro do Bar Sur, que continua o mesmo, só que depois do recomeço ele também fica colorido.

Apesar da pobreza e da difícil relação do casal, pontuada por constantes e intensas brigas, os momentos passados junto a Ho Po-Wing em seu pequeno apartamento são os que Lai Yiu-Fai identifica como os mais felizes da sua vida. A felicidade de Wong Kar-Wai em Happy Together é bonita, colorida, mas nunca é fácil.

"Morango e chocolate", por Ana Luiza Alencar




Considerado o maior cineasta cubano, Tomás Gutiérrez Alea constituiu uma obra permeada por um forte discurso crítico e uma aparente necessidade de reflexão. “Seu criticismo sempre foi acompanhado de um grande nacionalismo e a disposição de contribuir intensamente, com seus filmes, para a melhoria de Cuba, o desenvolvimento de um cinema “revolucionário” e a formação da consciência política do povo cubano” (Villaça 2007, p.195).

Penúltimo filme do diretor e primeiro da curta parceria com Juan Carlos Tabío, Morango e chocolate (1993) contém todos esses traços, possui também certa leveza, talvez devido ao humor empregado. Alea apresenta um protagonista homossexual, intelectual e com grande sensibilidade artística, mas que se encontra a margem da sociedade que ele queria ajudar a desenvolver. Esse personagem enfrenta problemas com o “sistema”, e não encontra espaço para expressar suas opiniões. “Acontece que isto aqui é um cérebro pensante, mas se você não diz “sim” a tudo ou pensa diferente, fica isolado”, expressa ele em determinado momento do filme.

Villaça lembra que a disposição contrária a figura do intelectual em Cuba, remontava a um ensaio escrito por Che Guevara, no qual o guerrilheiro alertava para uma mácula que todo intelectual cubano trazia: o “pecado original” de não ser autenticamente revolucionário, sendo até mesmo contrário ao realismo socialista. Segundo a autora, a idéia do “pecado original” formulada por Che, foi usada para justificar a cobrança e o maior controle sobre artistas, cineastas e intelectuais. Como sinal de seu engajamento político o intelectual cubano deveria abdicar de sua condição privilegiada e igualar-se aos camponeses e aos operários, vivenciando suas experiências (Villaça 2007, p.202).

O roteiro de Morango e Chocolate assinado por Senel Paz, foi baseado em seu conto “El lobo, el bosque y el hombre nuevo”. Alea diz ter se interessado por adaptar o conto por se tratar de uma história muito atrativa e pelo fato de relatar o desenvolvimento da amizade entre um homossexual e um jovem comunista em Cuba, há alguns anos, ou segundo ele, praticamente na atualidade. Conforme o diretor trata-se de uma história comovente, porém narrada com muito humor. O filme “defende” a tolerância e a compreensão para aqueles que são considerados diferentes. O interessante para Alea era poder vencer a discriminação e compreender aquele que é distinto.

As críticas e opiniões do diretor surgem por meio dos diálogos e das atitudes dos personagens. Se refletindo especialmente na figura de Diego. Jorge Perugorría, que o interpreta, considera que um personagem da dimensão de Diego era quase uma necessidade para o cinema cubano, por se tratar de um protagonista “marginal”, que não satisfazia o sistema. Contudo, se tratava de um personagem real, com quem o público poderia se identificar. Não um tipo estranho, como o caracteriza David, o jovem comunista, no início do filme, mas sim, um tipo próximo, porém excluído das representações oficiais.

Por meio dos diálogos, os personagens levantam questionamentos importantes, que os conduzem a reflexão e a uma conseqüente mudança de perspectiva. A “intenção” era que este efeito causasse semelhante reação também no espectador. O humor, como aponta Denilson Lopes (2006, p.381), faz parte de uma estratégia do diálogo e da fluidez, não do isolamento e da marcação de identidades rígidas e bem definidas. Marcel Martin acrescenta que a vocação realista da fala é condicionada pelo fato de ser um elemento de identificação dos personagens, havendo, portanto, “uma adequação entre o que diz um personagem e o modo como diz e sua situação social e histórica” (Martin 2007, p.176).

Alea em seus filmes parece sempre convidar o espectador a refletir sobre algo mais, como se pretendesse criar bases para a discussão. Nas palavras do diretor: “O objetivo de um filme é dar um momento de diversão ao espectador, ou seja, um espetáculo. E as pessoas devem vê-lo por prazer. Só isso. Agora, se além desse prazer que podemos dar ao espectador, nós também podemos comovê-lo e convidá-lo a refletir sobre algo mais profundo, que o ajude a compreender melhor a realidade, é um passo mais alto e acho que é isso que o filme pretende”.

Os três personagens do filme são bem complexos, ou muito humanos. Diego tem um lado artístico apurado e gosta de exercer o papel de “maestro”. Não abaixa a cabeça diante dos problemas que lhe criam o “sistema” e conserva o humor. É apaixonado pela arte, pela literatura, pela música e por Havana, sua cidade, “uma das mais belas do mundo”, conforme tenta fazer David enxergar. A única “liberdade”, por assim dizer que Diego encontra é na expressão total da sua personalidade, não total, claro, porque seria impossível sem uma total liberdade de expressão também. A música é um meio encontrado por ele para burlar a vigilância dos vizinhos sobre as opiniões proferidas contrárias a um “sistema” castrador das individualidades.

Diego tem também um lado religioso, de um tipo de religiosidade “latina”, que compartilha com Nancy (Marta Ibarra). Daquele tipo de religiosidade de falar com os santos, de brigar com eles, dar comida, bebida, acender velas, colocá-los de castigo, ou recompensá-los quando algo de bom acontece. Nancy é contradição pura, ao mesmo tempo em que é a vigilante da vizinhança para o governo, trabalha no mercado negro, vendendo produtos do “inimigo”. Faz várias tentativas de suicídio frustradas, porém sem a intenção de que elas sejam bem sucedidas. Ela parece confiar inteiramente na sorte, nos astros e nos santos. Suas contradições não são de modo algum arbitrárias, é através dela que percebemos também algumas contradições do próprio sistema. Já David é um jovem comunista, membro da Liga da Juventude. Por ser filho de camponeses e ter a oportunidade de estudar em uma universidade pública, ele tem a consciência de que isso só havia sido possível graças a Revolução. Como forma gratidão e de continuar contribuindo com ela, cursa ciências políticas, ao invés de literatura, para qual tinha talento.

Diego é “estigmatizado”, uma vez que na Revolução “não entra maricón”, como profere Miguel, o colega de David, que o obriga a se aproximar de Diego para descobrir as atividades anti-revolucionárias deste, como o desejo de realizar uma exposição com obras sacras e a suposta ligação com uma embaixada. Ele é visto um “desviante”, considerado como engajado numa espécie de negação da ordem social. No sentido empregado por Erving Goffman, em seu livro Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, os desviantes “são percebidos como incapazes de usar as oportunidades disponíveis para o progresso nos vários caminhos aprovados pela sociedade; mostram um desrespeito evidente por seus superiores; falta-lhes moralidade; elas representam defeitos nos esquemas motivacionais da sociedade” (Goffman 1982, p.155). Lopes acrescenta que o preconceito na sociedade não se expressa somente através da violência física, mas, sobretudo, através da violência simbólica.

David realiza um percurso de “desnaturalização” do olhar, passando a compreender as razões de Diego, vendo nele uma espécie de tutor, mantendo, contudo, sua ideologia, por necessitar dela para seguir crendo nas mudanças. Como aponta Strauss (1999), toda classificação está sujeita a contestação e reavaliação por parte do próprio classificador. A partir da amizade com Diego, David encontra-se em uma situação tal, que se vê obrigado a ampliar seu “vocabulário”. Entrevemos ao final que David conseguiu fazer uma “reinterpretação” satisfatória dos seus conceitos. Se permitindo até ser visto na rua na companhia de Diego, sem se sentir constrangido, como de início. E claro a última cena, na qual finalmente dá o abraço que Diego há tanto lhe pedia.

Uma das cenas mais marcantes do filme é a do "almoço lezamiano”, preparado por Diego, no qual este reproduz uma das passagens do livro Paradiso, o mais famoso daquele que é considerado o escritor mais popular de Cuba: José Lezama Lima. Através deste “cubano universal”, eles celebram a amizade e o amor, o que poderia haver de mais precioso em meio às inseguranças e privações com que estes personagens têm que lidar.

O resultado é um filme muito humano, que trata do respeito, da compreensão e da tolerância para com aqueles que são marginalizados. E não apenas com os homossexuais, mas com todos aqueles que são discriminados de alguma forma pela sociedade. Lida também com a questão da necessidade da liberdade de expressão. Para Robert Stam, o cinema latino-americano tem a urgência social e a vibração cultural da arte. “Em lugar de consolar ou distrair o espectador, esse cinema transrealista o incitaria a ativamente interrogar e transformar o mundo” (Stam 2003, p.119).

Engels escreveu que um romancista teria cumprido honrosamente sua tarefa quando, mediante um retrato fiel das relações sociais autênticas, obrigasse o leitor a questionar a permanência da ordem vigente, mesmo que não indicasse uma solução, mesmo não tomando partido ostensivamente. Sua crítica se destinava ao mundo burguês, entretanto, podemos fazer um paralelo com qualquer ordem estabelecida, e neste caso podemos substituir a figura do romancista pela do cineasta. Empregando as palavras de Engels, podemos, portanto, concluir que Alea cumpriu sua “tarefa”: a de questionar a ordem vigente.


Referências bibliográficas:

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.

LOPES, Denilson. “Cinema e gênero”. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2007.

MELEIRO, Alessandra (org.). Cinema no mundo: indústria, política e mercado: América Latina, volume II. São Paulo: Escrituras, 2007.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.

STRAUSS, Anselm. Espelhos e máscaras: a busca de identidade. São Paulo: Edusp, 1999.

VILLAÇA, Mariana Martins. “A cena político-cultural cubana dos anos 1970: uma análise histórica do filme A Última Ceia”. In: CAPELATO, Maria Helena [et al.]. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007.

XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.

"A filha do engano", por Marcílio Camelo




Ficha técnica:

Título original: La Hija del Engaño

Ano: 1951

Direção: Luis Buñuel

Roteiro: Carlos Arniches (peça teatral)

Luis Alcoriza (adaptação)

Janet Alcoriza (adaptação)

Gênero: Drama

Origem: México

Duração: 78 minutos

Tipo: Longa-metragem


Elenco:

• Fernando Soler ..........Quintín Guzmán

• Alicia Caro..................Martha

• Fernando Soto.............Angelito

• Rubén Rojo.................Paco

• Nacho Contla.............Jonrón


O Filme é dirigido pelo conceituado Luis Buñuel em sua fase mexicana. É a terceira adaptação para o cinema da obra “Don Quintín El amargao” (1924), de Carlos Arniches e Antonio Estremera, e foi adaptado para o cinema pelos roteiristas Luis Alcoriza e Janet Alcoriza.

Na primeira tomada do filme somos apresentados a Don Quintín (Fernando Soler), à sua esposa e à sua filha pequena. Ele está para viajar, mas por um problema técnico do trem, é obrigado a voltar para casa. Assim, chegando de surpresa em casa, ele descobre o caso de sua mulher e do seu grande amigo. Revoltado, ele coloca a mulher para fora de casa, e a mesma revela-lhe que a filha dela não é dele. Vemos então a decadência desse homem que leva a filha para uma pequena família camponesa criar e nunca mais a vê.

Vinte anos depois, Marta (Alicia Caro), a menina abandonada, aparece levando uma vida difícil ao lado do pai alcoólatra e agressivo. Conhece então um homem que quer tirá-la daquele lugar. Ao mesmo tempo, Quíntin aparece arrependido e em busca da menina, que descobriu ser sua filha, após sua ex-mulher revelar-lhe em seu leito de morte.

Uma série de desencontros se dá de forma até um pouco irritante e propositalmente cinematográfica. Mas num clímax rápido e forçado, vemos que Don Quíntin encontra por fim sua filha, e mostra-se com humor que o homem continua amargo, porém agora mais manso.

É engraçada a forma como o filme se faz didático e claro ao longo dos planos. O rancor e a amargura do personagem principal são vistos a cada tomada, e é intensificado quando ele encontra sua filha, mas não sabe que é ela e a trata mal. Um dos personagens que ajuda o homem a procurar sua menina resume toda a trajetória de vida dele em um ditado popular, nos minutos que precedem o clímax: “Quem cultiva ventos, colhe tempestades.”

Quando o filme caminha para o clímax o espectador tem bem claro em mente que só há duas possibilidades: ou ele mata a filha por engano, ou ele vai ser feliz para sempre... Bom, tudo dava a indicar que ele mataria a garota assim como o marido dela. Mas depois de descobrir que ela é sua filha, ele caminha de volta para sua casa e reflete sobre o mal que tem feito a todos que o circundam.

Essa caminhada que nos é apresentada em pouco menos de um minuto é o que o protagonista necessita para se arrepender e nos mostrar um final feliz extremamente inverossímil e sem credibilidade alguma. Assistindo a esse final, tem-se a ligeira impressão de que se trata de um sonho do personagem. Mas aparentemente não foi.

A tomada final mostra o Quintín olhando para a câmera e dando uma lição de moral ao público, com base na sua vida. Esse é o tom do filme a cada plano, não havia necessidade de se fazer mais claro.

"Enamorada", por Marina Rodrigues Soares



“O que não entendo é que sendo tão mexicano, ele nunca tenha se apaixonado”: com essa frase dita pelo personagem estrangeiro Roberts, se tem uma idéia do que esperar de Enamorada, melodrama mexicano de 1946. Uma das principais características do filme é a intensidade de seus personagens principais. Enamorada é mais um trabalho da premiada parceria entre Emílio Fernandez, na direção, e Gabriel Figueroa, na fotografia, e faz parte da “Época de Ouro” do cinema mexicano. Com atuações marcantes de Maria Felix, no papel de Beatriz Peñafiel, e do astro mexicano Pedro Armedáriz, como o General José Juan Reyes, este filme ganhou o Ariel (prêmio do cinema mexicano) de melhor filme, diretor, ator, ator coadjuvante, atriz, fotografia e edição.

Em Enamorada fica clara a veia nacionalista de Emílio “El índio” Fernandez, neste caso simbolizado pelo mito da fundação nacional. Com uma clara referência a “ A megera domada” de Shakespeare, a história acontece durante a revolução, quando um general zapatista conquista a conservadora cidade de “Cholula”. Enquanto os ricos latifundiários são confiscados, ele se apaixona pela bela e geniosa Beatriz Peñafiel, filha do homem mais rico da cidade, Don Carlos. Para alguns críticos o verdadeiro objetivo de Fernández foi uma reformulação mítica dos arquétipos nacionais de gênero, trazendo a visão de um novo México, onde as mulheres lutam por justiça viril e heroicamente ao lado de homens que demonstram sensibilidade.

Quando o filme começa fica aquela duvida sobre quem é o vilão. Desde o começo, com a chegada das tropas revolucionárias, temos claro que seu líder, José Juan, não é apenas um general implacável. Isso fica claro na sua amizade com o Padre – de quem foi colega no seminário - e na demonstração de carinho que tem por sua “filha”, na verdade a filha de um amigo que morreu. Isso já nos coloca uma dúvida: será que ele é tão frio quanto aparenta? Na mesma cena temos a resposta quando o Sr. Roberts, o noivo norte-americano daquela que virá a ser sua amada, percebe que o que lhe falta é o amor.

Por um acaso do destino, José Juan acaba se apaixonando pela filha de seu inimigo, mas ao descobrir o parentesco com sua amada, não só o liberta como pede perdão. Começa aí a redenção e o calvário de Juan, ao tentar conquistar sua amada. Por seu lado, Beatriz não é a típica mocinha melodramática. Ela não é do tipo que fica se lamentando, é forte e intempestiva, características que, alerta o Padre, podem lhe trazer problemas. E é essa atitude que faz José Juan se apaixonar.

Quando duas pessoas muito independentes e de origens opostas se apaixonam, o que se pode esperar? Nada além de problemas. O filme segue com seqüência em que Juan tenta conquistar Beatriz e ela o humilha. Logo após libertar Don Carlos, o General vai fazer uma visita à família e ele e Beatriz protagonizam uma cena de comédia paspalhão que poderia ter passado em branco. Em outro momento, os dois se encontram em frente à Igreja e, em meio a uma calorosa discussão, José Juan reage aos tapas dados por Beatriz e acaba por derrubá-la no chão. O Padre aparece para acalmar a situação e justifica a ação do General pela provocação de Beatriz, ou seja, seu mau gênio lhe trazendo problemas. Outra cena bastante bonita e nacionalista é a da serenata de mariachi, em que se tem uma das imagens mais bonitas do filme, um close nos olhos marcantes de Beatriz.

Uma simbologia interessante usada no filme é a do quadro que mostra os três reis magos de joelhos ao redor do menino Jesus. O quadro, é claro, está na Igreja, e Juan refere-se a ele como uma ironia, pois os três reis, que simbolizam poder e opressão, estão ajoelhados diante daquele que é símbolo de caridade e bondade, e que por esquecer-se desse símbolo a sociedade estava daquele jeito. Uma linha de moralidade típica do melodrama. Mais tarde, ao saber da opinião de Juan, é que Beatriz começa a ver o general com outros olhos e que seu coração começa a se abrir para ele.

Neste filme não há vilões, mas o maniqueísmo típico do melodrama está presente. Neste caso, a Igreja aparece como o lado bom que vai ajudar os homens, no caso Beatriz e José Juan, a se regenerarem de seus lados ruins – ela o gênio e ele a frieza – através do amor. É o Padre que faz com que Beatriz veja o lado bom de José Juan, e é na Igreja que acontece a declaração final que vai fazer com que eles fiquem juntos.

O final do filme é magistral. Mais um trabalho de fotografia brilhante de Gabriel Figueroa, em que ele consegue captar brilhantemente um momento em que as palavras são substituídas por gestos e expressões. Primeiramente, Beatriz abre mão do casamento com o noivo norte-americano, numa clara expressão do sentimento nacionalista, que é simbolizado pelo rompimento do colar de pérolas que ela havia ganhado do noivo. Logo em seguida ela pega da empregada o xale com que tomará o posto de soldadera – mulheres da tropa revolucionária que tiveram papel imprescindível na revolução – ao lado de José Juan. É impossível não se emocionar com a bela cena do soldado e a mulher caminhando a seu lado, e juntos vão enfrentando batalhas, desafiando a morte em nome do amor.

"Memórias do Subdesenvolvimento", por Márcia Roberta Martins




O ano é 1961, o momento histórico é pós – revolução cubana e o momento de Sergio Corrieri, personagem principal do filme Memórias do Subdesenvolvimento, é o reconhecimento de um país e de sua população, que não via como compatriotas seus.

Esse “reconhecimento” é a base da narrativa de Memórias do Subdesenvolvimento dirigido por Tomás Gutiérrez Alea, filme de 1968. Mesmo sendo filmado quase 10 anos depois da instauração da Revolução em 1959, mas – como dito acima – a obra se passa no ano 1961, ano de turbulências como a quase invasão da Ilha Cubana pelos Americanos do norte, aliados por sua vez aos cubanos exilados nas terras do Tio Sam.

No entanto, o exílio do qual o filme retrata é o exílio pessoal e esta é uma das leituras que a película permite fazer. O exílio gradativo, opcional e pessoal, pelo qual a personagem principal passa dentro do seu próprio país. Diferente do exílio opcional dos seus parentes: pai, mãe e ex-esposa que o “deixa” para trás, bem como alguns de seus amigos. Todos “fugindo” da situação em que Cuba estava mergulhando, pois os mais abastados não queriam viver em uma terra para qual o mundo virava as costas. Assim, a alta classe cubana se recusava a ser vista como parte da massa populacional também cubana, partindo a grande maioria para Europa e para países como França – o destino preferido pela grande maioria, pelo simples motivo de que a burguesia cubana acredita ser o local ideal para viver.

Sergio, por sua vez, mesmo continuando na agora Cuba comunista, parecia não estar vivendo aquela realidade. Pelo contrário, ele demonstra total desprezo para os fatos ao seu redor. Sua vida continuava a mesma, ou seja, um homem de posses, vivendo a base dos pagamentos dos aluguéis das suas casas, freqüentador de exposições de artes e de livrarias. Isso mostra que mesmo não saindo de Cuba ele era um exilado e não via a nova Cuba que surgia, mas preferia “ver” a velha Cuba na qual sempre viveu.

Esta sua visão particular sobre seu país continua por todo o filme. É como se sua vida caminhasse paralelamente à revolução que mudava a maneira de viver em Cuba. A revolução, desde que o Estado não fosse interferir em sua vida cotidiana, para Sérgio, era algo distante. Entretanto o atingia sem que o mesmo percebesse, uma vez que ele vivia isolado no seu espaçoso apartamento de classe média tendo como vista da sua imensa janela uma estrada pela qual passavam carros particulares fora de linha e tanques militares. Janela que o presenteava com outra vista, vista esta do silencioso horizonte que o oceano atlântico trazia todos os dias aos seus olhos. Silencioso como sua vida que é vivida dentro da sua “ilha particular”. Ele vive na sua ilha dentro da ilha.

"Memórias do Subdesenvolvimento", por Vanessa Albuquerque




Baseado no romance de Edmundo Desnoes, Memórias do subdesenvolvimento é dirigido pelo cubano Tomás Gutierrez Alea, em 1968. Retrata a Havana de 1961, marcada pela partida de inúmeros cubanos que, desacreditados no sistema político em vigor, abandonaram o país em busca de melhores condições de vida. O filme explora o dilema do intelectual de classe média alta, encarnado no personagem Sergio, que não consegue inserir-se ativamente nos problemas cubanos, mas reconhece e reflete o processo histórico que se desenrola. Sergio leva uma vida programada e tediosa, marcada por suas recordações pessoais, observando a cidade através de uma luneta instalada na sacada de seu prédio. É facilmente reconhecível o seu afastamento do mundo “real” cubano, das mazelas do subdesenvolvimento; embora Sergio tente compreender a situação de subdesenvolvimento, ele não faz parte dela.

Nesse contexto, entra em cena o relacionamento de Sergio com Elena - jovem do povo, ingênua e leiga - como uma tentativa de aproximação do personagem com a realidade do povo cubano, de seus valores e problemáticas. Contudo, ele não suporta essa intimidade e percebe a falta de entusiasmo que tem em relação a ela, atestando, mais uma vez, que há pouca possibilidade de entrosamento entre o seu mundo e o de Elena.

É característica do Cinema Novo Latino Americano a busca por afirmação política e estética. Principalmente a partir da segunda metade da década de 60, rompe-se com o modelo hollywoodiano, originando simbologias próprias, latino-americanas. O cinema estaria comprometido com o seu tempo e engajado na reflexão das particularidades da minoria, há muito marginalizada na produção cinematográfica. Da mesma maneira, considera-se que os sujeitos também devem constituir-se como parte ativa do processo histórico, conscientes de suas responsabilidades, principalmente no âmbito político.

Memórias do Subdesenvolvimento revela a preocupação do Cinema Novo em retratar as problemáticas do Terceiro Mundo a partir dele próprio, mas também sob a ótica do estrangeiro. Nesse caso, o olhar do estrangeiro revela um modelo de cubano caricaturado no tropicalismo, num atraso passivo, e não se envolve nas dinâmicas de sua sociedade.

A morte do pássaro e a forma como Sergio se desfaz dele com tanta naturalidade no início do filme soa inquietante, pois parece representar o próprio final do personagem, peça banal e descartável no sistema em que se insere, e a frase dita nesse momento repercute como uma premonição de Sergio para ele mesmo: “tudo em ti foi naufrágio”.

"Maria Candelária", por Natália Tavares




O drama de Maria Candelária, interpretada pela belíssima Dolores Del Rio se passa em uma pequena vila, Xochimilco, no México. Quem nos conta sua história é o personagem de um famoso pintor (Alberto Galán), que fascinado pela beleza pura e indígena de Maria Candelária, decide pintá-la, o que irá ocasionar a grande tragédia da trama. Por ser filha de uma prostituta já falecida, Maria Candelária não é aceita pelas pessoas da vila, o que a faz passar por inúmeras necessidades, já que ela não é permitida vender suas flores. A única pessoa da vila que a aceita é Lorenzo Rafael, interpretado por Pedro Armendáriz, ele se apaixona por ela e ela por ele, pretendendo se casar. Para isso, eles precisam de dinheiro, mas são atingidos por várias dificuldades ao longo da trama.

Dirigido por Emilio Fernadéz, escrito pelo mesmo e por Mauricio Magdaleno e fotografado por Gabriel Figueroa, o filme ganho a Palma de Ouro. O diretor conseguiu retratar na tela, com todo aquele melodrama típico mexicano, as injustiças sofridas pelos mais pobres e as raízes de sua nação. Gabriel Figueroa fotografou uma natureza ainda pura, assim como a beleza de Maria Candelária. O resultado é uma grande obra do cinema mexicano.

Dolores Del Rio e Pedro Armendaríz têm muita sincronia em cena, diferenciando-se dos outros habitantes da vila, o que contribui para a relação de seus personagens, já que pelo preconceito com Maria Candelária, os outros habitantes não aceitam conviver com ela. Estranhamente maquiada para uma índia, Dolores Del Rio está sempre deslumbrante e tem toda a dramaticidade necessária para se interpretar um papel em um melodrama mexicano. A cena em que Maria Candelária e Lorenzo Rafael se encontram na prisão é exemplo disso.

Apesar de ter estranhado as atuações excessivamente dramáticas e questionado várias vezes o modo em que tudo dava errado para Maria Candelária e Lorenzo Rafael, como na cena final, na qual torci por uma reação dela, por mínima que fosse, sei que essas são as características do gênero, e que, portanto, o sofrimento e o drama são “naturais”. Foi interessante observar como o gênero melodrama se constrói nesse magnífico filme.

"Barravento", por Lady Patrícia Oliveira




Mudanças à vista no cinema! Ávidos por um novo conceito e uma nova forma de fazer filmes, jovens cineastas latino-americanos seguiram na esteira de movimentos cinematográficos que tinham novo até no nome: na Itália, o Neo-Realismo; na França, a Nouvelle Vague. No Brasil, no início da década de 1960, surgia o nosso Cinema Novo, que tal como seus antecessores, buscava uma nova estética como resposta às produções clássicas e comerciais, tendo como pano de fundo a efervescência da pré- ditadura militar.

Foi Nelson Pereira dos Santos quem lançou as bases anos antes com seu Rio, 40 Graus, mas aqui, o maior representante do movimento foi mesmo o baiano Glauber Rocha. Depois de exercer a crítica de cinema em jornais, o jovem migrou para trás da câmera, levando consigo todo o seu engajamento por uma nova estética para aquele período. Após o curta O Pátio (1959), com apenas 20 anos de idade ele roda Barravento, seu primeiro longa, lançado três anos depois. Ainda que este filme tenha sido um projeto para o qual Glauber foi chamado às pressas, ou como ele próprio declarou, “uma experiência de iniciante”, ele já mostra a que veio.

Na história, uma pequena aldeia de pescadores encapsulada do mundo vive um dia de cada vez, até que um ex-morador retorna para incitar os habitantes a livrar-se de suas velhas crenças e lutar contra a escravidão que, segundo ele, ainda não acabou para os negros, maioria no local, pois estes ainda tiram seu sustento de uma rede alugada de um homem branco.

O letreiro de abertura avisa: barravento é o momento da transformação, momento em que ocorrem súbitas mudanças. Não poderia, pois haver melhor título para o filme que parecia prenunciar toda a obra de Glauber. Não há como escapar do tom de crítica social embutida na trama: Firmino é o elemento subversivo, a voz do diretor, pois aquele pequeno universo da aldeia representa uma parte do povo brasileiro, alienada pela religião e seu misticismo, estes supostamente responsáveis por suas vidas miseráveis. Pelo lado estético, ainda não há tanto a câmera na mão, marca do Cinema Novo. Mas as soluções encontradas pelo diretor contribuem para o realismo do filme, como o uso da luz natural das praias da Bahia como locações. Por outro lado, as cenas dos pescadores remendando a rede, ou jogando-a ao mar adquirem um caráter quase documental.

Em Barravento, mesmo que ainda não fosse Glauber Rocha em sua totalidade, já era possível vislumbrar as características mais marcantes de sua futura obra. O Cinema Novo estava nascendo no Brasil naquele momento, portanto ainda tateava, buscando a melhor maneira de contar histórias que espelhassem a realidade social do país, como uma maneira de conscientização política da população, o sonho jamais alcançado pelos cinemanovistas brasileiros.

sábado, 20 de novembro de 2010

"Terra em transe", por Ricardo Duarte




Um poeta morrendo no deserto. Assim começa um dos filmes brasileiros mais conhecidos. Ao longo da exibição, num enorme flashback de 90 minutos, somos apresentados aos eventos que levaram Paulo àquele destino. Presenciamos não apenas a confusão e degradação do poeta, mas, paralelamente, a do fictício país Eldorado, a América Latina.

Os símbolos abundam nesse filme alegórico e barroco. Desde o país fictício aos personagens, esses sendo representações simbólicas bem definidas. Existe o ditador, o populista, o artista, os revolucionários, entre outros. O que pode parecer ser um defeito, não é. O ideal do filme não é provocar uma aproximação entre os espectadores e sua história, ou personagens, mas de soltar um grito, de provocar o transe e a reflexão. As atuações apenas reforçam o barroquismo da obra. Os atores gesticulam muito, agem de forma excessivamente teatral, recitam poesia em vez de palavras e falam diretamente pra câmera algumas vezes. Ações que aproximam o filme de uma peça épica de Brecht.

Na verdade, Glauber usa-se de elementos cinematográficos para elevar os objetivos de Brecht a um novo patamar. Especialmente a câmera: dinâmica e acusadora. Constantemente acuando os personagens pra primeiro plano, ela tem vida autônoma, mostrando desaprovar algumas ações das pessoas em cena, como nas sequências das orgias. Sempre guiando o olhar do espectador, Rocha tenta fazer com que o filme seja didático imageticamente. Cabe aqui abrir um parêntesis para ressaltar que, constantemente usado de forma negativa, para Rocha o didatismo é um fator essencial num filme, para poder, junto com o épico, promover a revolução.

"A didática e a épica devem funcionar simultaneamente no processo revolucionário. A didática: alfabetizar, informar, educar, conscientizar as massas ignorantes, as classes médias alienadas. A épica: provocar o estímulo revolucionário.” ¹


Um filme violento sem mostrar a violência. Seguindo seus preceitos de uma estética da violência, o diretor não faz da violência algo visível, para apreciação do público, para consumo. O som também ajuda nesse aspecto. Abandonando um estilo realista, uma arma pode fazer o barulho de uma metralhadora. Fato bastante recorrente no cinema de Godard, de quem Glauber era um fã devoto. A violência do filme fica a cargo da já citada câmera inquisidora, que, quando acua os personagens é como se os jogasse contra a parede.


Uma evolução no cinema glauberiano, “Terra em Transe” é uma espécie de recontagem urbana de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Saem os trovadores sertanejos, entra o poeta-narrador. Há ainda mais desespero e revolta do que o filme anterior, com um final que não deixa esperanças de uma possível melhora. Com seus símbolos, a carnavalização, paródias críticas de pessoas reais e uma espécie de tropicalismo, o filme não se prende especificamente ao cinema novo, mas torna-se um filme autônomo, que tem características cinema-novistas, mas também lembra bastante a estética do cinema marginal. Estética que o diretor iria se aprofundar ainda mais em Câncer, de 1972.

¹ ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. Rio de Janeiro, RJ, Alhambra: 1981.

"Deus e o diabo na terra do sol", por Jackson Barbosa da Costa




Deus e o Diabo na Terra do sol (1964) é um filme de Glauber Rocha e fez parte do que ficou conhecido como o cinema-novo brasileiro e, num âmbito mais geral, como novo cinema latino-americano. Este era um cinema engajado, que se preocupava em retratar os problemas sociais, políticos e econômicos da região. O filme foi escolhido porque se encaixa nas discussões feitas em sala-de-aula e é um exemplo eficaz dessse cinema, trabalhando alguns dos problemas enfrentados pelo sertanejo.

Para falar sobre o homem sertanejo, Glauber conta a história de um personagem que vai simbolizar estes homens da caatinga, seu nome é Manuel (Geraldo Del Rey). O vaqueiro Manuel se revolta contra a exploração de que é vítima por parte do coronel Morais (Antônio Pinto) e mata-o durante uma briga. Foge com a esposa Rosa (Yoná Magalhães) da perseguição dos jagunços e acaba se integrando aos seguidores do beato Sebastião (Lídio Silva), no lugar sagrado de Monte Santo, que promete a prosperidade e o fim dos sofrimentos através do retorno a um catolicismo místico e ritual. Ao presenciar o sacrifício de uma criança, Rosa mata o beato. Ao mesmo tempo, o matador de aluguel Antônio das Mortes (Maurício do Valle), a serviço dos coronéis latifundiários e da Igreja Católica, extermina os seguidores do beato. Em nova fuga, Manoel e Rosa se juntam a Corisco (Othon Bastos), o diabo loiro, companheiro de Lampião que sobreviveu ao massacre do bando. Antônio das Mortes persegue de forma implacável e termina por matar e degolar Corisco, seguindo-se nova fuga de Manoel e Rosa, desta vez em direção ao mar.

Como mencionado acima, Glauber utiliza um protótipo de personagem que simboliza o homem sertanejo de modo geral, ou seja, se utiliza de uma linguagem metafórica. Assim como ele metaforiza o sertanejo, metaforiza os outros personagens: o coronel Moraes simboliza a classe abastada nordestina, detentora do poder político da região; o beato Sebastião representa o líder messiânico, que quer mudar a realidade através da fé religiosa; Corisco retrata o cangaço, que entende que esta mudança se dá pela luta armada; e Antônio das Mortes, matador profissional, figura sinistra, melancólica e lógica de assassino visionário, imagina que, uma vez eliminados o diabo (Corisco) e Deus (o Santo Sebastião), haverá então a guerra de libertação, ou melhor, a revolução, que redimirá o sertão. Outro personagem interessante é o cego Júlio, que representa uma espécie de cantor popular, cantando e narrando momentos importantes da película.

Como podemos perceber, estes personagens retratam a realidade brasileira. Suas relações representam a dinâmica de poder político e econômico, que é extremamente desigual a depender da classe social a que se pertence. Por exemplo, o coronel é detentor desse poderio, enquanto o sertanejo é o oprimido da situação, que por sua vez recorre à fé religiosa e à luta armada como forma de escapar dessa realidade social opressiva.

Isso mostra que Deus e o Diabo é um filme extremamente engajado, em que a fronteira entre teoria e roteiro é bastante fluida. Segundo José Carlos Avellar (1995, p.7), "podemos perceber o roteiro não só como anotação utilitária sem vida própria que desaparece quando o filme fica pronto, mas como expressão independente.". Assim, o roteiro não é só uma ferramenta de representação visual, mas também uma ferramenta política, em que a teoria anda junto.

Este é um filme que deve ser visto, não apenas por se tratar de um clássico do cinema brasileiro, mas porque aborda problemas recentes da nossa realidade, que antes de tudo precisam ser conhecidos para serem superados.

Bibliografia

AVELLAR, José Carlos. “Napoleão a Cavalo”, In: A Ponte Clandestina. Editora 34, 1995.