sábado, 20 de novembro de 2010

"Terra em transe", por Ricardo Duarte




Um poeta morrendo no deserto. Assim começa um dos filmes brasileiros mais conhecidos. Ao longo da exibição, num enorme flashback de 90 minutos, somos apresentados aos eventos que levaram Paulo àquele destino. Presenciamos não apenas a confusão e degradação do poeta, mas, paralelamente, a do fictício país Eldorado, a América Latina.

Os símbolos abundam nesse filme alegórico e barroco. Desde o país fictício aos personagens, esses sendo representações simbólicas bem definidas. Existe o ditador, o populista, o artista, os revolucionários, entre outros. O que pode parecer ser um defeito, não é. O ideal do filme não é provocar uma aproximação entre os espectadores e sua história, ou personagens, mas de soltar um grito, de provocar o transe e a reflexão. As atuações apenas reforçam o barroquismo da obra. Os atores gesticulam muito, agem de forma excessivamente teatral, recitam poesia em vez de palavras e falam diretamente pra câmera algumas vezes. Ações que aproximam o filme de uma peça épica de Brecht.

Na verdade, Glauber usa-se de elementos cinematográficos para elevar os objetivos de Brecht a um novo patamar. Especialmente a câmera: dinâmica e acusadora. Constantemente acuando os personagens pra primeiro plano, ela tem vida autônoma, mostrando desaprovar algumas ações das pessoas em cena, como nas sequências das orgias. Sempre guiando o olhar do espectador, Rocha tenta fazer com que o filme seja didático imageticamente. Cabe aqui abrir um parêntesis para ressaltar que, constantemente usado de forma negativa, para Rocha o didatismo é um fator essencial num filme, para poder, junto com o épico, promover a revolução.

"A didática e a épica devem funcionar simultaneamente no processo revolucionário. A didática: alfabetizar, informar, educar, conscientizar as massas ignorantes, as classes médias alienadas. A épica: provocar o estímulo revolucionário.” ¹


Um filme violento sem mostrar a violência. Seguindo seus preceitos de uma estética da violência, o diretor não faz da violência algo visível, para apreciação do público, para consumo. O som também ajuda nesse aspecto. Abandonando um estilo realista, uma arma pode fazer o barulho de uma metralhadora. Fato bastante recorrente no cinema de Godard, de quem Glauber era um fã devoto. A violência do filme fica a cargo da já citada câmera inquisidora, que, quando acua os personagens é como se os jogasse contra a parede.


Uma evolução no cinema glauberiano, “Terra em Transe” é uma espécie de recontagem urbana de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Saem os trovadores sertanejos, entra o poeta-narrador. Há ainda mais desespero e revolta do que o filme anterior, com um final que não deixa esperanças de uma possível melhora. Com seus símbolos, a carnavalização, paródias críticas de pessoas reais e uma espécie de tropicalismo, o filme não se prende especificamente ao cinema novo, mas torna-se um filme autônomo, que tem características cinema-novistas, mas também lembra bastante a estética do cinema marginal. Estética que o diretor iria se aprofundar ainda mais em Câncer, de 1972.

¹ ROCHA, Glauber. Revolução do cinema novo. Rio de Janeiro, RJ, Alhambra: 1981.

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