segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Morango e chocolate", por Ana Luiza Alencar




Considerado o maior cineasta cubano, Tomás Gutiérrez Alea constituiu uma obra permeada por um forte discurso crítico e uma aparente necessidade de reflexão. “Seu criticismo sempre foi acompanhado de um grande nacionalismo e a disposição de contribuir intensamente, com seus filmes, para a melhoria de Cuba, o desenvolvimento de um cinema “revolucionário” e a formação da consciência política do povo cubano” (Villaça 2007, p.195).

Penúltimo filme do diretor e primeiro da curta parceria com Juan Carlos Tabío, Morango e chocolate (1993) contém todos esses traços, possui também certa leveza, talvez devido ao humor empregado. Alea apresenta um protagonista homossexual, intelectual e com grande sensibilidade artística, mas que se encontra a margem da sociedade que ele queria ajudar a desenvolver. Esse personagem enfrenta problemas com o “sistema”, e não encontra espaço para expressar suas opiniões. “Acontece que isto aqui é um cérebro pensante, mas se você não diz “sim” a tudo ou pensa diferente, fica isolado”, expressa ele em determinado momento do filme.

Villaça lembra que a disposição contrária a figura do intelectual em Cuba, remontava a um ensaio escrito por Che Guevara, no qual o guerrilheiro alertava para uma mácula que todo intelectual cubano trazia: o “pecado original” de não ser autenticamente revolucionário, sendo até mesmo contrário ao realismo socialista. Segundo a autora, a idéia do “pecado original” formulada por Che, foi usada para justificar a cobrança e o maior controle sobre artistas, cineastas e intelectuais. Como sinal de seu engajamento político o intelectual cubano deveria abdicar de sua condição privilegiada e igualar-se aos camponeses e aos operários, vivenciando suas experiências (Villaça 2007, p.202).

O roteiro de Morango e Chocolate assinado por Senel Paz, foi baseado em seu conto “El lobo, el bosque y el hombre nuevo”. Alea diz ter se interessado por adaptar o conto por se tratar de uma história muito atrativa e pelo fato de relatar o desenvolvimento da amizade entre um homossexual e um jovem comunista em Cuba, há alguns anos, ou segundo ele, praticamente na atualidade. Conforme o diretor trata-se de uma história comovente, porém narrada com muito humor. O filme “defende” a tolerância e a compreensão para aqueles que são considerados diferentes. O interessante para Alea era poder vencer a discriminação e compreender aquele que é distinto.

As críticas e opiniões do diretor surgem por meio dos diálogos e das atitudes dos personagens. Se refletindo especialmente na figura de Diego. Jorge Perugorría, que o interpreta, considera que um personagem da dimensão de Diego era quase uma necessidade para o cinema cubano, por se tratar de um protagonista “marginal”, que não satisfazia o sistema. Contudo, se tratava de um personagem real, com quem o público poderia se identificar. Não um tipo estranho, como o caracteriza David, o jovem comunista, no início do filme, mas sim, um tipo próximo, porém excluído das representações oficiais.

Por meio dos diálogos, os personagens levantam questionamentos importantes, que os conduzem a reflexão e a uma conseqüente mudança de perspectiva. A “intenção” era que este efeito causasse semelhante reação também no espectador. O humor, como aponta Denilson Lopes (2006, p.381), faz parte de uma estratégia do diálogo e da fluidez, não do isolamento e da marcação de identidades rígidas e bem definidas. Marcel Martin acrescenta que a vocação realista da fala é condicionada pelo fato de ser um elemento de identificação dos personagens, havendo, portanto, “uma adequação entre o que diz um personagem e o modo como diz e sua situação social e histórica” (Martin 2007, p.176).

Alea em seus filmes parece sempre convidar o espectador a refletir sobre algo mais, como se pretendesse criar bases para a discussão. Nas palavras do diretor: “O objetivo de um filme é dar um momento de diversão ao espectador, ou seja, um espetáculo. E as pessoas devem vê-lo por prazer. Só isso. Agora, se além desse prazer que podemos dar ao espectador, nós também podemos comovê-lo e convidá-lo a refletir sobre algo mais profundo, que o ajude a compreender melhor a realidade, é um passo mais alto e acho que é isso que o filme pretende”.

Os três personagens do filme são bem complexos, ou muito humanos. Diego tem um lado artístico apurado e gosta de exercer o papel de “maestro”. Não abaixa a cabeça diante dos problemas que lhe criam o “sistema” e conserva o humor. É apaixonado pela arte, pela literatura, pela música e por Havana, sua cidade, “uma das mais belas do mundo”, conforme tenta fazer David enxergar. A única “liberdade”, por assim dizer que Diego encontra é na expressão total da sua personalidade, não total, claro, porque seria impossível sem uma total liberdade de expressão também. A música é um meio encontrado por ele para burlar a vigilância dos vizinhos sobre as opiniões proferidas contrárias a um “sistema” castrador das individualidades.

Diego tem também um lado religioso, de um tipo de religiosidade “latina”, que compartilha com Nancy (Marta Ibarra). Daquele tipo de religiosidade de falar com os santos, de brigar com eles, dar comida, bebida, acender velas, colocá-los de castigo, ou recompensá-los quando algo de bom acontece. Nancy é contradição pura, ao mesmo tempo em que é a vigilante da vizinhança para o governo, trabalha no mercado negro, vendendo produtos do “inimigo”. Faz várias tentativas de suicídio frustradas, porém sem a intenção de que elas sejam bem sucedidas. Ela parece confiar inteiramente na sorte, nos astros e nos santos. Suas contradições não são de modo algum arbitrárias, é através dela que percebemos também algumas contradições do próprio sistema. Já David é um jovem comunista, membro da Liga da Juventude. Por ser filho de camponeses e ter a oportunidade de estudar em uma universidade pública, ele tem a consciência de que isso só havia sido possível graças a Revolução. Como forma gratidão e de continuar contribuindo com ela, cursa ciências políticas, ao invés de literatura, para qual tinha talento.

Diego é “estigmatizado”, uma vez que na Revolução “não entra maricón”, como profere Miguel, o colega de David, que o obriga a se aproximar de Diego para descobrir as atividades anti-revolucionárias deste, como o desejo de realizar uma exposição com obras sacras e a suposta ligação com uma embaixada. Ele é visto um “desviante”, considerado como engajado numa espécie de negação da ordem social. No sentido empregado por Erving Goffman, em seu livro Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, os desviantes “são percebidos como incapazes de usar as oportunidades disponíveis para o progresso nos vários caminhos aprovados pela sociedade; mostram um desrespeito evidente por seus superiores; falta-lhes moralidade; elas representam defeitos nos esquemas motivacionais da sociedade” (Goffman 1982, p.155). Lopes acrescenta que o preconceito na sociedade não se expressa somente através da violência física, mas, sobretudo, através da violência simbólica.

David realiza um percurso de “desnaturalização” do olhar, passando a compreender as razões de Diego, vendo nele uma espécie de tutor, mantendo, contudo, sua ideologia, por necessitar dela para seguir crendo nas mudanças. Como aponta Strauss (1999), toda classificação está sujeita a contestação e reavaliação por parte do próprio classificador. A partir da amizade com Diego, David encontra-se em uma situação tal, que se vê obrigado a ampliar seu “vocabulário”. Entrevemos ao final que David conseguiu fazer uma “reinterpretação” satisfatória dos seus conceitos. Se permitindo até ser visto na rua na companhia de Diego, sem se sentir constrangido, como de início. E claro a última cena, na qual finalmente dá o abraço que Diego há tanto lhe pedia.

Uma das cenas mais marcantes do filme é a do "almoço lezamiano”, preparado por Diego, no qual este reproduz uma das passagens do livro Paradiso, o mais famoso daquele que é considerado o escritor mais popular de Cuba: José Lezama Lima. Através deste “cubano universal”, eles celebram a amizade e o amor, o que poderia haver de mais precioso em meio às inseguranças e privações com que estes personagens têm que lidar.

O resultado é um filme muito humano, que trata do respeito, da compreensão e da tolerância para com aqueles que são marginalizados. E não apenas com os homossexuais, mas com todos aqueles que são discriminados de alguma forma pela sociedade. Lida também com a questão da necessidade da liberdade de expressão. Para Robert Stam, o cinema latino-americano tem a urgência social e a vibração cultural da arte. “Em lugar de consolar ou distrair o espectador, esse cinema transrealista o incitaria a ativamente interrogar e transformar o mundo” (Stam 2003, p.119).

Engels escreveu que um romancista teria cumprido honrosamente sua tarefa quando, mediante um retrato fiel das relações sociais autênticas, obrigasse o leitor a questionar a permanência da ordem vigente, mesmo que não indicasse uma solução, mesmo não tomando partido ostensivamente. Sua crítica se destinava ao mundo burguês, entretanto, podemos fazer um paralelo com qualquer ordem estabelecida, e neste caso podemos substituir a figura do romancista pela do cineasta. Empregando as palavras de Engels, podemos, portanto, concluir que Alea cumpriu sua “tarefa”: a de questionar a ordem vigente.


Referências bibliográficas:

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1982.

LOPES, Denilson. “Cinema e gênero”. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006.

MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2007.

MELEIRO, Alessandra (org.). Cinema no mundo: indústria, política e mercado: América Latina, volume II. São Paulo: Escrituras, 2007.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003.

STRAUSS, Anselm. Espelhos e máscaras: a busca de identidade. São Paulo: Edusp, 1999.

VILLAÇA, Mariana Martins. “A cena político-cultural cubana dos anos 1970: uma análise histórica do filme A Última Ceia”. In: CAPELATO, Maria Helena [et al.]. História e cinema: dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007.

XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, cinema novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac e Naify, 2003.

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