segunda-feira, 22 de novembro de 2010
"Deus e o diabo na terra do sol", por Ramon Dias Ferreira
Talvez o mais influente e controverso diretor da história do cinema brasileiro, Glauber Rocha realizaria em 1964 Deus e o diabo na terra do sol, filme icônico do Cinema Novo, movimento que teve no Brasil uma maior expressão dentre as latino-americanas. Considerado até hoje por muitos críticos como o maior filme nacional já feito, Deus e o diabo viria, assim como todo o Cinema Novo, trazendo uma espécie de resposta a então recém-falida produtora Vera Cruz, que servia de exemplo para a ineficácia do atual sistema político/econômico nacional na criação de uma indústria cinematográfica. Logo surgia um cinema criado a partir das condições econômicas nas quais se encontrava o país, incorporando o seu estado de subdesenvolvimento de forma não apenas temática, mas também estética, provando que para se fazer cinema só era preciso “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”.
A obra acompanha a peleja de Manoel e Rosa, um casal de camponeses que vive em condições de miséria no sertão nordestino. Sonhando um dia ter um roçado só deles, Manoel trabalha como vaqueiro para o Coronel Morais, enquanto Rosa cuida da produção para a própria subsistência. Um dia Manoel vai para a cidade fazer a partilha do gado, quando torna-se vítima de um ardil pelo Coronel, que tenta roubar-lhe as poucas cabeças a que tinha direito. Revoltado com a injustiça, o vaqueiro não vê outra saída a não ser matar o coronel. Neste momento onde ocorre o grande ponto de virada da vida do casal, que passará a vagar pelo sertão em busca de redenção e esperança.
Já na breve apresentação pode ser notado o forte caráter revolucionário da obra. Diferentemente do Vidas Secas de Nelson Pereira do Santos, onde Fabiano recusa-se a matar o policial que o oprimiu, Manoel, tendo a mesma oportunidade que o outro, não hesita. O assassinato do Coronel Morais é a primeira ruptura com o sistema opressor rural, dando um novo rumo para a vida dos protagonistas. Em um mundo bipolarizado entre as forças de esquerda (revolucionárias, ou o “bem”) e direita (reacionárias, o “mal”), o filme reflete o forte idealismo (ou até maniqueísmo) de Glauber. O crime cometido por Manoel é dessa forma absolvido, pois ele (que representa a população oprimida) deve, segundo as leis marxistas, entrar em confronto direto com a elite latifundiária que o oprime, em nome de uma utopia chamada Revolução. Curioso pensar que a tal Revolução nunca se concretizou, talvez pelo fato da própria teoria marxista considerar o “proletariado” como uma entidade abstrata, desconsiderando seus anseios e individualidades, ou nunca ter-lhes perguntado de fato se o comunismo era de seu agrado.
Apesar, contudo, do caráter panfletário da obra (caráter que não pode ser atribuído apenas a Glauber, pois a produção foi realizada em uma época em que a utopia comunista havia retornado com uma nova força), o filme consegue transcendê-lo, apresentando um “sertão universal” próximo ao idealizado por Guimarães Rosa. Em sua busca por redenção, o Manoel-vaqueiro cruza um sertão repleto de misticismo, violência e amor, elementos tão presentes no coração de todo homem que procura a sua própria salvação. Torna-se então Manoel-beato, e aceita a fé como doutrina. Glauber faz aqui uma imersão no mundo das religiões messiânicas que surgiram no Nordeste, e ao lado do Beato Sebastião, Manoel segue em uma jornada espiritual através do Monte Santo, guiado pelas profecias e enunciações do fim do mundo. Contudo, apesar de seduzir pela promessa de salvação, o culto mostra-se de uma fé cega e radicalista, realizando sacrifícios para “purificar os pecadores pelo sangue dos inocentes”. Com as crenças abaladas, Manoel não consegue enxergar nesse ato desumano nenhuma forma de redenção, o que o faz abandonar o caminho da fé.
Prosseguindo sua debanda pela terra do sol, o ex-vaqueiro e beato cruza o caminho de Corisco, cangaceiro que escapou ao massacre que dizimou o bando de Lampião. Surge o Manoel-cangaceiro. Mais uma vez levado pelo desejo de redenção do seu povo e de si próprio, Manoel junta-se a Corisco, e agora o mundo explorado é o do violento banditismo social. Mas, assim como na vez em que esteve junto a Sebastião, nosso herói (nos sentido arquetípico da palavra) começa a questionar a brutalidade bestial das ações do cangaceiro, o que o faz mais uma vez duvidar do caminho que esta tomando. É interessante observar que os personagens não possuem suas próprias individualidades, mas são emblemas das classes a que representam. O casal de protagonistas não é Manoel e Rosa, mas um retrato do sertanejo oprimido, espécie de versão nordestina do proletariado. Da mesma forma, Sebastião e Corisco representam, respectivamente, a religiosidade messiânica e o cangaço. Seus desejos e ações não lhes são próprios, mas sim da personificação destas entidades. Já Antonio das Mortes, matador que persegue os protagonistas durante o filme, personifica o veículos opressores utilizados pela Igreja e pelos latifundiários para acabar com as revoltas populares.
Com a morte de Corisco pelas mãos de Antonio das Mortes, Manoel e Rosa disparam em uma corrida para um futuro incerto. Todos os caminhos seguidos apresentavam um caminho para a transformação, mas nenhum parecia ser o correto. Assim, com este último ato, Glauber parece nos alertar (ou melhor, incitar) para uma mudança iminente na estrutura social do sertão (leia-se “mundo”), como um barril de pólvora prestes a explodir, e que apesar de ainda não ter encontrado um rumo, não pode continuar parado.
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