segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"E vou tomar aquele velho navio...", por João Roberto Cintra



Walter Salles e Daniela Thomas, diretores de “Terra Estrangeira”, dizem que a idéia para o filme nasceu da imagem de um navio encalhado numa praia. Metáfora curiosa: algo que serve para levar pessoas a diferentes lugares impedido de mover-se. No filme em questão, a mobilidade geográfica é evidenciada e discutida por personagens que tem que lidar com exílios, externos e internos, além da procura pelo real significado de casa, lar.

No filme, histórias a princípio distintas se cruzam. Miguel (Alexandre Borges) e Alex (Fernanda Torres) são brasileiros que foram tentar a vida em Portugal. Ele músico, mas arranja “bicos”, com passagem de produtos ilegais; ela trabalha como garçonete. Passam pelas mazelas e incômodos de estar na “casa dos outros”. Paco (Fernando Alves Pinto) vive no Brasil com a mãe (Laura Cardoso); ele faz faculdade de física, apesar de querer ser ator; ela, espanhola de nascimento, deseja voltar a ver sua terra natal ao menos uma vez. Sua morte, entretanto, interrompe esse sonho, deixando Paco sozinho e com a culpa de não ter realizado o que queria a mãe. É nessa hora que entra Igor (Luis Melo) na história: português residente no Brasil, seu negócio é tráfico de pedras preciosas e objetos de valor histórico. Aproveitando-se da situação de Paco, ele oferece a este a chance de conhecer a terra da mãe, trabalhando como intermediário da mercadoria. Já em Portugal, as vidas de Alex e Paco se cruzam e traçam um destino comum.

O filme funciona como uma bem elaborada metáfora da história brasileira antiga e recente. Há mais de 500 anos do seu descobrimento, há ainda nos brasileiros uma relação, muitas vezes inconsciente, com seu passado de colônia. Os colonos saíram de Portugal para explorar a nova terra; isso significou tanto desvendá-la como saqueá-la. A “terrinha”, a metrópole, funcionaria como o pai, a quem se deve obrigação e respeito; o que seria o Brasil para esses colonos? Ao mesmo tempo vieram também os colonizadores, pessoas que queriam fazer sua história na terra recém descoberta; queriam que a nova pátria lhes desse nome, lhes acolhesse. Mas isso nunca aconteceu. Jogados a própria sorte, os colonizadores tiveram que trilhar sua história sem o apoio do pai, e sem o respeito por ele – o que implica na falta também de valores como honra e amor.

Igor é a perfeita imagem do colono acima descrito. Vindo de Portugal, no Brasil encontra a terra do “tudo pode”. Não há em seu comportamento, assim como não havia em seus antepassados, a vontade de fazer a terra progredir – mas apenas extrair o seu melhor. Alex e Miguel são colonizadores, cansados de lutar em vão, e que tomaram a medida extrema de quem é maltratado em casa: abandonaram o lar (o país) à procura de serem tratados com dignidade e respeito, puderem se formar como donos de sua história – à procura do pai postiço que representa ainda Portugal. Personagens de ex-colônias, como Cabo Verde, aparecem no filme para mostrar que não só no Brasil Portugal deixou órfãos. “Aqui é o cabaré das colônias...”, diz um expatriado do continente africano.

Falando da história mais recente do país, dois temas são evidentes: as políticas econômicas do período em que se passa o filme e o exílio, que remete ao, então, muito recente fim da Ditadura Militar. Collor, primeiro presidente eleito com voto do povo após a Ditadura, instituía em março de 1990 o confisco do dinheiro de todos os brasileiros que estivesse na caderneta de poupança – desespero para a população que via, em meio à instável economia, a poupança como uma espécie de segurança. Eleito pelo pleno exercício da democracia, Collor faz dessa uma medida radicalmente ditatorial; mais uma vez o Brasil se vê longe de encontrar o “pai” que lhe apóie e dê amparo. Para muitos ficou impossível viver em um país desse modo. O exílio agora se fazia necessário não mais à força, mas como busca de uma vida melhor.

Na Ditadura Militar, ser exilado significava ser calado, impedido de exercer a função de cidadão. Quem teve que deixar a pátria nesse período carrega consigo o sentimento de impotência e abandono que lhe foi imposto, mesmo depois de ter voltado. A condição de exilado parece uma constante na memória do país – ou melhor, dos países, uma vez que ocorreu em quase toda a América Latina. Quando se deixa o lar de forma involuntária, tudo o que faz parte do exílio, do convívio na nova terra não parece seu, nada imposto o é. No filme, a personagem de Fernanda Torres fala do seu sotaque brasileiro que sempre a faz lembrar que não é dali, ou faz os portugueses olharem-na como eterna intrusa. Entretanto, não há como isolar-se do meio em que está, e acaba-se recebendo influências que nunca serão apagadas. Não se reconhece mais em sua casa de origem; mas também não se está em um lugar que se possa chamar de lar. Mesmo a personagem de Laura Cardoso sofria com seu não-lugar: vinda da Europa para o Brasil, não tinha sotaque, só a memória da sua cidade natal e as lembranças que mantinham viva a vontade de voltar lá e, como ela diz no filme, apenas olhar, reconhecer-se.

Diásporas involuntárias ativaram a memória como constante lugar de procura por fixar-se, mesmo que sempre se trate de um porto de passagem. Essa memória é evidenciada, e associada à história do filme, pela triste canção “Vapor barato”, cantada por Gal Costa durante a Ditadura Militar brasileira, como uma voz para os que tinham partido, mas que ainda resistiam, ainda que já um tanto cansados. Os exílios forçados desta época transformam-se numa espécie de saída, medida desesperada para pessoas que não encontram como sobreviver na democracia maquiada do período em que o filme se passa. Apesar disso, nenhum dos personagens está onde realmente queria: não se sentem acolhidos em seus próprios países e não estão seguros na condição de estrangeiros. O navio encalhado, na verdade resulta numa epifania para uma questão que procuram o tempo todo fugir: falta de mobilidade e de esperança das suas próprias vidas. Em tempos atuais, 64 ou 92 não parecem tão distantes como se poderia desejar.

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