segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Terra em transe", por Igor Calado



Realizado 3 anos após o golpe militar no Brasil, Terra em Transe sumariza os relatos da queda dos projetos políticos de esquerda na América Latina durante a década de 60, através da história do ficcional país Eldorado.

O filme conta a história do jornalista, poeta e ativista Paulo Martins e sua relação com a política do país latino, banhado pelo Atlântico. Nesse Estado alegórico, de grande pobreza, forças políticas se confrontam: o conservador e cristão Porfírio Diaz, ex-padrinho de Paulo Martins, e o demagogo populista Felipe Vieira, cuja campanha para governador é fortemente apoiada por Paulo. Nesse conflito, as contradições e reviravoltas políticas do país subdesenvolvido serão expostas e analisadas, em meio ao sofrimento do poeta desiludido.

Terra em Transe condensa os traços estilísticos que tornaram conhecida a obra de Glauber, como o uso de alegorias: Paulo Martins (Jardel Filho) é o protótipo do intelectual de esquerda na América Latina, dividido entre a arte e a política e sofrendo com profundas contradições internas.

Porfírio Diaz (Paulo Autran) encarna as forças politicamente conservadoras da região, seu nome sendo alusão ao ditador mexicano homônimo. Felipe Vieira (José Lewgoy) é o estereotipo do político populista, de esquerda, comum nas décadas de 50 e 60, que conta com o apoio das massas populares, estudantes, ativistas e da facção de esquerda do clero; quando ascende ao poder, fará concessões a seus opositores de direita e não cumprirá suas promessas.

Outro recurso tipicamente glauberiano aqui presente é a atuação exagerada, irreal e brechtiana, com atores falando diretamente para a câmera em diversas passagens. Desse modo, Glauber pretende que o espectador saia de sua posição passiva e se questione (em geral, politicamente).


Opressão no passado e no presente

É curioso notar, segundo análise de Ella Shohat e Robert Stam (2006, p.112), o tratamento da questão indígena no filme. Ao ser eleito senador, Porfírio Diaz realiza um ritual na praia, aonde chega acompanhado de um padre e um nobre europeu do século XV; o grupo vai em direção a um índio, próximo do qual está instalada uma cruz. Diaz finca sua bandeira negra ao lado da cruz, ajoelha-se e reza. A passagem metaforicamente repete a “posse” européia do continente e a primeira missa católica no Brasil, criando uma releitura da chegada de Cabral e dos europeus ao Brasil – hipótese reforçada pela câmera que começa por filmar as águas e move-se em direção à areia, sugerindo que o séquito veio do mar.

O mesmo acontece na cerimônia de posse de Diaz que, realizado num palácio e com pompa européia, remete claramente às cerimônias dos reis barrocos ibéricos. O ditador que dá nome ao personagem Porfírio Diaz foi governante do México por 31 anos e é considerado responsável por campanhas de massacre aos indígenas desse país.

Desse modo, Glauber enfatiza a perpetuação da opressão, comparando a elite conservadora local com os colonizadores europeus e a oprimida população brasileira com os nativos do território. A ascensão de Diaz ao poder promete a Eldorado e seu povo o mesmo que trouxeram os colonizadores aos ameríndios, enfatizando a continuidade política de séculos.

A visão da América Latina como um continente em estado perpétuo de exploração e colonização, dependente de diferentes grupos opressivos ao longo da história, era uma imagem comum entre os intelectuais de esquerda da região na década de 60 e 70. Tal imagem foi cristalizada através da historiografia revisionista dessa época, de inspiração esquerdista, como demonstra a seguinte passagem de As Veias Abertas da América Latina, texto icônico desse grupo: “América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos [...] do Renascimento” (Galeano, p.17).


Crítica da esquerda populista

No plano político, Glauber prefere centrar-se na trajetória de Felipe Vieira, o líder populista, em detrimento da movimentação da direita, operando uma análise ácida das falhas da esquerda, que não conseguiu evitar o golpe. Apesar do caráter “palaciano” que toma o golpe de Estado no filme, este serve obviamente como paradigma para os golpes militares na América Latina do período, especialmente o de 64, no Brasil.

Felipe Vieira condensa a imagem do político populista e demagógico que se tornou comum no Brasil do entre-ditaduras, como Jânio Quadros, Miguel Arraes, João Goulart, entre outros. Contando com o apoio de militantes pela melhora das condições da população carente, o inexperiente Vieira ascende ao governo do estado de Alecrim, mas não encontra forças para pôr em prática seus projetos diante da oposição de diversos setores. Prefere trair suas bases e seus partidários e ceder às pressões para perpetuar-se no poder, o que eventualmente não consegue.

Entretanto, sua crítica mais ferrenha à demagogia de esquerda se dá no real papel do povo em tais governos. Glauber ressalta como a população, politicamente inapta e despreparada, não compreende criticamente e não faz parte do governo dos demagogos. Ao contrário: quando clama por voz e espaço, evidenciando sua degradação, o “dissidente” é calado, situação alegorizada no assassinato do pobre em meio à festa do comício de Vieira, aos gritos de “extremista”.


A terra em transe e o poeta em crise

Operístico, Terra em Transe é também histérico e catártico em sua visão da política às vésperas do golpe, encenando todo o processo de ascensão e queda da esquerda, golpe da direita e desencanto final e apoteótico numa estética acelerada e catártica.

O transe é evidenciado logo no começo do filme: as imagens iniciais começam no mar para depois chegar a uma terra de florestas densas, filmadas em vistas aéreas e tendo ao fundo cantos iorubás. Esse início anuncia o mote do filme: a análise desesperada da terra num momento político-social convulso. Em análise da obra de Glauber, Ismail Xavier indica que neste filme, como em outros do diretor, a história centra-se em épocas de ruptura social, que ele chama de “momentos de verdade”, depois dos quais a sociedade estaria irremediavelmente transformada e nos quais o estopim da transformação é a violência (2001, p.120).

O transe (mas não o filme) atinge seu apogeu nos comícios carnavalescos de Vieira, onde ele, seus apoiadores políticos e “o povo” que o segue entram em profundo estado de catarse. Essa união, no entanto, surge menos como uma forma de radical harmonia política do que como um modo de seduzir as massas, suprimir o debate e mascarar as dissonâncias, forjando uma coesão que existe nas festas, mas não na política.

O transe do título é experimentado também nas orgias das festas promovidas por Júlio Fuentes, o grande empresário e, principalmente, nas agonias do protagonista Paulo Martins, cuja desilusão com a situação política e seu papel como artista-intelectual de esquerda o levam a uma espiral de decadência e perturbação.

Ao final, seu desespero com a queda de Vieira e o fracasso final da esquerda o leva a uma resistência armada suicida. Sintetizando o desencanto geral da esquerda com o golpe, Paulo, depois de suas filiações partidárias diversas, procura na morte um ato último de coerência política. Agonizante, imagina a exterminação de Diaz e seus partidários e afirma, em resposta ao questionamento de sua companheira sentimental e de militância, que sua morte era “prova do triunfo da beleza e da justiça” – um recurso final de utopia num mundo onde esta acabava de morrer. A agonia de Paulo é intercalada com a coroação ibérica de Diaz e o filme termina com a visão do ditador coroado e seu rosto tomado por uma convulsão ensandecida, a face da direita no poder dali em diante.


Fontes:

SHOHAT, Ella & STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. Cosac Naify – São Paulo, 2006.

GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. Paz e Terra, 45ª edição – Rio de Janeiro, 2005.

XAVIER, Ismail. Cinema Moderno Brasileiro. Paz e Terra, 3ª edição – São Paulo, 2001.

Nenhum comentário:

Postar um comentário