domingo, 30 de outubro de 2011

Sobre Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomáz Gutierrez Alea, por Débora Bittencourt


Numa Cuba pós-revolução, num clima de esperança para uns e descontentamento pra outros, o personagem Sergio é, impressionantemente, a personificação do desconforto com este e aquele, da indiferença total. Nisso, e também esteticamente, o filme cheira à Terra em Transe, de Glauber Rocha. Sendo que em Glauber a insanidade é levada tão a fundo que a perturbação gerada é bem mais latente que a sensibilidade reflexiva de Alea.

Assim, quando todas as pessoas com quem Sergio convivia fogem do país, ele permanece, não por acreditar em idéias comunistas, mas simplesmente por não acreditar em nada.
“De fato, nada mais vem vindo que um movimento histórico em que pareciam reunidos o antiimperialismo e o antistalinismo. Entretanto, por mais fundados que esses sentimentos fossem, será que abriam uma saída nova para a humanidade?” (Existe uma estética de terceiro mundo?, Roberto Schwarz)

A sensação que Sergio nos dá é de uma pessoa perdida. Perdida e sem a menor pretensão de se encontrar. Mesclando tempo e espaço em flashbacks e tomadas documentais, além do movimento cinemanovista da câmera, Alea constrói essa Cuba e esse mundo de Sergio de uma forma que, embora indiferentes um ao outro, ambos conseguem nos tocar.
O uso da alegoria contribui fortemente para essa construção. Os elementos são fragmentados, retirados do seu contexto funcional para ganhar um novo e único sentido. Aí se vem os gestos, os objetos, a disposição dos lugares em Havana ganharem vida própria.

“Não nos importa em definitivo refletir uma realidade, mas enriquecê-la, excitar a sensibilidade, desenvolvê-la, detectar um problema. Não queremos suavizar o desenvolvimento dialético mediante fórmulas e representações ideais, mas vitalizá-lo agressivamente, constituir uma premissa do desenvolvimento mesmo, com tudo o que significa de perturbação da tranqüilidade” (Alea, Revista Cine Cubano n° 45, 46. 1968)

“CIDADE OCULTA”, por Matheus Cartaxo Domingues




Assim como em 1965, Godard, em Alphaville, tornara possível haver um filme de ficção-científica rodado na Paris contemporânea sua, da qual ele lançara mão da arquitetura dos prédios da cidade e da iluminação dela própria, articuladas a uma mise en scène narrativa, de montagem e de atuações que ecoavam o film noir, Chico Botelho, em Cidade Oculta, utiliza recorrências de gênero numa São Paulo que se pretende simultaneamente a mesma e “outra”.

No entanto, enquanto Godard, epítome de um cinema consciente de si mesmo, recorria às convenções do gênero para extrapolá-las e fazer algo ainda arejado, Botelho faz pastiche, e por isso uma certa repetição de tom entre as cenas adquire logo uma mão pesada de quem despeja com insistência “signos que significam uma atmosfera”.

É verdade que o começo do filme é animador: refiro-me aos planos de uma reportagem televisiva, que entre os clichês da fala do delegado e da enunciação da repórter conseguem filmar em zoom o rosto sem rasgos expressivos de um homem preso naquele instante, mas também aos primeiros momentos desde que esse mesmo sujeito é solto da prisão e, entre ruas e casas noturnas, volta a se relacionar com pessoas do seu passado de crimes e conhece um punhado de gente nova para ele.

O problema do filme está na verdade em sua progressão, no rimo que se desprende do interior das cenas vistas em sequência, ou seja, de uma mise en scène que não evolui ou revela, mas só acumula: cedo nos cansamos da palidez dos atores, dos números musicais em néon, da fumaça, das luzes da cidade, da noite onipresente.

Males do Tempo, que esteja datado ou não, o fato é que Cidade Oculta hoje parece pedir para ser visto em fragmentos: algumas linhas hilárias de diálogo, um show de strip-tease ao som de uma bela canção cantada por Ney Matogrosso e Arrigo Barnabé, às vezes isso basta.

Memórias do subdesenvolvimento, por Daíla Rodrigues



Memórias do Subdesenvolvimento foi produzido por Tomáz Gutiérrez Alea, no ano de 1968, em Cuba. E apresenta traços do movimento cinematográfico neo-realista italiano, assim como a nouvelle vague – movimento do cinema francês, pós-Segunda Guerra Mundial, que desobedece à linearidade da narrativa. É baseado no romance homônimo do escritor Edmundo Desnoes, que assina com Alea o roteiro do filme.

A história se passa na Cuba pós-revolução e mescla cenas de ficção e realidade, contando a história de um homem adulto, chamado Sérgio, burguês de classe média alta, que vê seus amigos e família fugirem da ilha, rumo aos Estados Unidos, devido à reforma socialista. Ele opta por permanecer no local, não por ser um revolucionário ou um anti-revolucionário, e sim para ver qual será o rumo de seu país.

O diretor alterna bastante entre passado e presente, fantasia e cenas factuais. Apresenta as transformações sociais de forma dinâmica e bastante realista, de modo a suscitar no espectador a reflexão, o espírito questionador sobre a revolução e suas consequências no cotidiano dos moradores da ilha. As mulheres são, no filme, tratadas de forma agressiva, como seres apolíticos, incivilizados, que devem ser “domesticadas”. Denotando uma narrativa machista, apesar de rica quanto a aspectos sociais que fervilhavam na Cuba do período.

Por estes aspectos inovadores e provocadores, Memórias do Subdesenvolvimento é consagrado como uma das melhores produções da filmografia latino-americana, sendo ainda motivo de amplos debates e discussões filosóficas, antropológicas, históricas etc.

"Soy Cuba", por Heitor Dutra


Uma voz feminina, no início do filme se apresenta: sou Cuba. Quem é Cuba? Essa resposta ninguém tem, talvez esse filme tente responder quem é Cuba nesse momento.No momento pré revolução. Uma só história não daria conta, não. Ou daria, perfeitamente.Mas a questão é a abrangência, talvez a megalômania soviética do momento, talvez a tentativa de mostrar, quem são os cubanos no momento, como sofrem e como riem. Há, de fato, a exaltação do povo cubano, e a destruição da imagem dos americanos, já que falamos de um filme rodado em mil novecentos e sessenta e quatro, quando Cuba já tinha passado pela revolução, por um cineasta russo no auge da guerra fria. De qualquer maneira, talvez nada disso importe nem um pouco. Talvez sirva como documento para algumas coisas, sim. Mas o que fica desse filme, deste novo filme redescoberto, não é tanto o milagre caribenho da mudança somente (como se fosse "somente"), mas uma experiência cinematográfica ímpar.

O filme é praticamente todo rodado em planos sequência. Mas há outros truques, há momentos em que a câmera é suspensa em fios e parece voar sobre as multidões, ou os coqueirais, a câmera pousa, e imediatamente alguém a apanha e continua a rodar.É incrível. Num momento do filme, um manifestante caí de um prédio, a câmera se coloca no lugar do indíduo e sentimos a vertigem de despencar. Essa alteridade da câmera faz o espectador realmente sentir na pele, os jatos de água, as explosões, a dança. É imersão.

O animado vendedor de frutas, (que vende outras coisas mais para quem se interessar) se engraça com uma mocinha. A mocinha descobre as "facilidades" com os repugnantes gringos, na boate ela dança freneticamente, inicia como se doesse nela estar ali. Uma espécie de fuga dentro do salão de dançase inicia, insinua um movimento de braço que lembra Pina Bausch, enlouquece, seu corpo (a câmera e nós) não segue nada além da loucura total daquele momento, daquela situação. O gringo conhece a casa dela, onde, tira dela certa inocência e seu crucifixo, sua fé por dólares. Mas que fé? Ao sair do barraco, o gringo vê Cuba, e não é tão bela como os grandes hotéis e os bórdeis com cortinas de bambu. Está na lama, com velhas fumando charutos enormes, crianças pedindo dinheiro. A voz feminina dispara: "Sou Cuba. Não vieste aqui para se divertir? Então divirta-se."

"ANJOS DA NOITE (Wilson Barros - 1987)", por Thierry Fernandes


A história da noite paulistana contada através daqueles que a fazem, revelando segredos que permanecem escondidos ao cair da noite, e que só os freqüentadores das ruas e vielas sombrias podem saber. Anjos da noite representa um recorte da vida paulista noturna que permanece agitada mesmo longe dos holofotes.

O filme de Wilson Barros pode ser considerado uma explosão de formas, utilizando os recursos do cinema dos mais variadas formatos, ele abusa da construção fílmica e realiza um longa repleto de técnicas e meios pertencentes as mais diversas escolas do cinema.

Com uma montagem fragmentada, o filme nos confunde e insiste em permanecer confuso todo o tempo, nunca sabemos se o que está na tela é realmente a verdade, mas do que importa saber a verdade. Wilson nos prende através de uma trama que não parece lógica, e que talvez não seja. Cada pedaço dessa alegoria nos remete a um novo conflito a cada instante, e essa brincadeira de adivinhe se puder é muito eficaz.
Enquanto assistimos ao filme vemos características do noir americano, seguido das formas expressionistas, há também uma descontinuidade própria do cinema underground e de vanguarda, números musicais, e o uso das técnicas teatrais de Brecht para quebrar a barreira entre real e imaginário.

Em vários momentos do filme vemos os atores olhando para câmera e nos desafiando a entrar na história, isso como se já não estivéssemos dentro dela. O bom disso é que ele se utiliza do cinema da maneira mais abusiva e nos diz na cara limpa que é isso mesmo. Ele nos diz claramente que aquilo é um filme quando a personagem de Marília Pêra (Marta Brum) fala para o personagem de Guilherme Leme (Teddy): “... a gente faz como no cinema, quando eu disser já você fecha os olhos...” e eles aparecem na porta do apartamento com Teddy admirando o feito cinematográfico.

Essa mistura toda faz um filme que prioriza o significado das imagens e uma narrativa descontinua que introduz o verdadeiro conteúdo nas suas entrelinhas. Anjos da noite só peca em alguns momentos pela sua trilha sonora abusiva e desnecessária, que atrapalha o êxtase dos momentos. Se isso também era proposital, não sei, mas deve-se tomar cuidado com o exagero. Se o filme inteiro se passa dentro de outro filme ou de uma peça teatral é difícil responder, mas a magia e as sombras da noite paulistana são mostradas com certeza no longa-metragem de Wilson. Um quebra-cabeça minucioso e audaz.

"Cidade Oculta", por João Paulo Maciel de Araujo


Além da estética anos oitenta, o filme cidade oculta revela-se como um filme extremamente simbólico no que concerne ao modo como a trama vai se desenrolando. Temos ai uma São Paulo embebida pela marca da imoralidade e do caos num tom pós-moderno e totalitário, uma vez que para sobreviver na paisagem de concreto metropolitana é preciso jogar as regras do jogo. O filme mostra-nos toda uma cultura do neon, com trilha sonora própria da época beirando o exótico em muitas passagens musicais que estranha o nosso ouvido devido ao tom dodecafônico que muitas vezes deixa transparecer. O dodecafônico pode ser tomado no filme como uma subversão de toda pretensão de linearidade e harmonia, se a proposta do filme é o de uma Sampa caótica, nada melhor do que a musica serial ou dodecafônica para expressar esse caos aparentemente sem nexo, mas que vai fazendo sentido onde a principio não teria sentido algum.

A vida e a morte são representações fortes no filme que no decorrer da trama vai ficando claro que diante das relações de poder e corrupção, estas duas estâncias vão sendo suprassumidas pela marca do dinheiro e da ganância. O destino um tanto representado pelo fatalismo teológico ganha acessibilidade através de um playtime que brinca com as vidas de Shirley e Anjo em tiragens virtuais dos arcanos de tarô. Neste sentido cidade oculta além de todo o fatalismo, corrupção e decadência, mostra-nos também num tom de numerologia e astrologia taróloga uma certa pretensão de buscar certezas num oceano de incertezas. O destino somente Deus tem acesso, mas para as personagens do filme, este parece ter morrido a séculos. Como numa película Deus é o único que consegue vislumbrar de uma vez só o começo meio e fim da trama, a tacada inicial já fora dada, o resto é só deixar a causalidade agir. A escolha? Esta a cada momento do filme revela uma ilusão criada pelo conceito de livre-arbítrio que ainda deixa transparecer um tom de esperança na personagem Shirley, mas a cada consulta com o oráculo virtual, ela percebe que ficará sem saída.

Quando apontamos para o simbolismo do filme através do tarô é para frisar que não fora jogado à toa no filme. Existem três momentos no filme em que a personagem Shirley consulta o tarô virtual que também pode ser tomado aqui como uma metáfora para a não existência de Deus e sim a existência de um gênio maligno aos moldes cartesianos que emprega toda a sua indústria a nos enganar sempre. O virtual, a ideia de matrix poderiam ser expressões da metáfora do gênio maligno, e o oráculo virtual do tarô seria somente para apontar o téllos determinado por um software enganador. A primeira carta consultada pela personagem fora a Estrela (arcano de nº XVII), isto é, a estrela dentre os seus significados também significa esperança, ajuda inesperada, clareza de visão e por fim a ideia de que um grande amor aparecerá em sua vida, trata-se de uma carta auspiciosa e espiritual. Na segunda carta que a personagem consulta temos o enforcado (nº XII); o Enforcado já revela uma outra tendência do filme voltado para a personagem Anjo. Tal carta é marcada pela rejeição de uma dominação, o anjo passara sete anos na prisão, e depois de solto, todos parecem persegui-lo, querendo sempre algo dele. A carta é marcada também pela desilusão e estancamento de objetivos, que no filme mesmo nos fornecendo uma sensação de que o Anjo ficaria bem no final, ao percebermos sua morte, nossa consciência retorna para o determinismo anunciado pelo arcano do enforcado. Por fim, temos o ultimo arcano consultado pela personagem Shirley; tal arcano fora a Torre (nº XVI) que de forma direta e definitiva revelaria o destino da personagem Anjo. A Torre em como simbolismo a transformação de que nenhum reduto é inteiramente seguro, a desgraça de qualquer pretensão de sucesso, interrupção externa e por fim, a desgraça que marca a trama do filme cidade oculta. O tempo todo, o filme quiz nos mostrar a sua teleologia, ou causa final, que iria marcar o destino das personagens, que numa espécie de jogo do destino com leis e regras bem determinadas, removessem nossas esperanças de que um filme de caráter sombrio e ofuscante pudesse-nos oferecer um final feliz.

Para concluir, o filme revela-nos uma tendência que de uma certa forma já vinha sido marcado pelo clássico Blade Runner de Ridley Scott, a própria capa do filme cidade oculta revela um traço direto dessa influência, uma vez que a capa mostra-nos aos moldes de Blade Runner as personagens em estilo caricaturais de uma espécie de quadrinhos. Claro que a ficção científica não é marca do filme como no caso do Blade Runner, mas temos presente no filme, o traço polical que é bem característico do filme do Ridley Scott. A estética do filme cidade oculta tem muito do Blade Runner, mas também teria muito mais de um outro filme do Ridley Scott chamado Chuva Negra se este não fosse de 1989 claro. A corrupção como fora aludida no texto, é marca do filme cidade oculta, todos estão envoltos por ela, sejam de forma inocente ou não. No Blade Runner o policial Harrison Ford é o tipo mocinho, no cidade oculta, todos são vilões a diferença é somente de grau. A figura que se revela mais antagônica no filme seria a do policial Ratão que tomado pela corrupção faz de tudo para realizar seus objetivos. Minha opinião pessoal é que o filme cidade oculta tem elementos muito originais uma vez que flerta com um lado de São Paulo que não havia sido ainda explorado pelos diretores brasileiros. A música, o gótico, o sombrio, a paisagem soturna e melancólica, o relacionamento interessado e largado das personagens são palavras chaves que marcaram a experiência que tive ao assistir cidade oculta. Um filme profundamente anos oitenta, isto é, com todos os elementos que estavam sendo explorados na época. Um filme que com certeza verei mais vezes e recomendarei para muito amigos uma vez que também sou fascinado por essa década, sobretudo pela música, filmes e demais formas de arte que expressassem esse tempo que não volta mais.

"A dama do lotação (Neville D'Almeida), por Diogo Condé


A dama do lotação representa um dos maiores sucessos de público da história do cinema brasileiro, o auge de Sônia Braga como símbolo sexual da geração pornochanchada. Com elenco recheado de nomes importantes para a época, a adaptação da obra de Nelson Rodrigues de mesmo nome trata de vários assuntos, tais como liberação e descoberta sexual, paradigmas criados pela sociedade e a decadência da classe média. Exaltada pelo público, mas massacrada por críticos mais canônicos, é uma das pérolas dessa controversa fase do cinema brasileiro.

O filme conta a jornada de Solange (Sônia Braga) para provar para si mesma que não é frígida depois de seu recém marido Carlos (Nuno Leal Maia) ter um acesso de fúria com a falta de sexo e a estuprar, tirando-lhe a virgindade. A protagonista então passa a ter uma rotina de relações sexuais com estranhos encontrados nas lotações da cidade e algumas pessoas ligadas a Carlos sem sofrer nenhum remorso por isso, mesmo amando seu cônjuge.

O filme mostra uma classe média brasileira abobalhada e vazia, na figura de Carlos, seu pai (Jorge Dória) e Assunção (Paulo César peréio), esses três personagens em especial são os típicos burgueses machistas que parecem sempre ser superiores e cheios de razão, mas ao passar do tempo, cada um recebe a sua lição e cai numa crise de identidade provocada pela protagonista, uma bonita metáfora feita pelo autor, complementada pelo fato de Solange preferir se envolver com homens de outras camadas sociais, dando a entender que aquela classe média retratada é insuficiente.

Um ponto interessante defendido pela obra é a liberdade feminina, tema que estava em voga na época, não só na história principal, mas também no pequeno arco que expõe a história dos pais de Carlos, tendo uma relação interessante com o relacionamento do filho, pois os dois casos são bem semelhantes, mas no caso deles a mulher ficou presa às limitações de seu casamento, alimentando uma relação indesejada, já a protagonista correu atrás de seus desejos, isso pode ser entendida também como uma crítica às gerações passadas, com muito mais rigidez em relação a sexo.

Adaptação bastante fiel ao original, mostra Sônia Braga em sua melhor forma artística e física, um bonito Rio de Janeiro que complementa a beleza da história e trilha sonora composta com maestria por Caetano Veloso. Um filme para ficar na história, pois representa um cinema acessível, mas profundo e cheio de significados.

SANGUE DE CONDOR (Jorge Sanjinés, 1969), por Matheus Cartaxo Domingues



O filme possui uma montagem intercalada de duas linhas temporais. Uma delas se passa com a progressiva tomada de consciência dos índios de uma vila acerca de um grave programa de esterilização das nativas, promovido com apoio do governo boliviano. Na outra parte, após um líder da posterior revolta ser ferido, acompanhamos a busca do irmão dele por formas de lhe conseguir remédios e uma transfusão de sangue.

A divisão estabelecida desse modo, apesar de parecer sofisticada, se mostra com finalidades elucidativas: balancear as duas frentes do filme (primeiro, a ação violenta legitimada pelo governo contra as pessoas daquela vila, e depois a segregação do acesso à saúde no país) ao mesmo tempo em que elas são dramatizadas e têm seus significados relacionados. Seria equivocado pensar que ambas estão inclusive unidas pelo “sangue”, aqui símbolo de continuidade, seja da existência daquele povo ou desse sentimento revolucionário que os fez insurgir?

O filme é bastante didático. A decupagem das cenas é simplificada ao máximo: num diálogo, é comum que as pessoas estejam sentadas e cada uma fale no momento em que é filmada em close (algumas vezes até olhando para a câmera). Essas decisões provavelmente estão ligadas ao fato de Sanjinés usar atores indígenas não profissionais e também endereçar o filme a essa gente, tendo portanto de ser claro no discurso.

Por ter esse tom informativo, Sangue de Condor difere de outros filmes de cunho político. Não há histeria, nem verborragia, nem excessos estilísticos. A vontade de comunicar algo implica aqui a necessidade de se ajustar a uma forma conveniente.

"Soy Cuba", por Jonathan Wolpert


O filme do diretor Mikhail Kalatozov nos mostra uma visão estrangeira do ser latino-americano, deixando claro toda a situação estética “da fome” (anteriormente citada por Glauber Rocha em “Eztetyka da Fome”) e pobreza, mostrando a prostituição e violência de um momento específico em Cuba. Parcialmente escrito pelo renomado poeta soviético Yevgeny Yevtushenko antes do país se tornar uma sociedade pós-revolucionária, o filme não foi um sucesso de bilheterias, mas sem dúvidas é um exemplo em termos de fotografia, pois foi filmado quase todo em grande-angular e sendo usado um filtro infravermelho. As cenas em grande-angular trazem certa dramaticidade para a história, mostrando a decadência do povo latino-americano.

A câmera nos dá a sensação de deslocamento na primeira parte do filme, que fala sobre a prostituição das mulheres cubanas. Depois nos deparamos com um cenário familiar, canas de açúcar, nos trazendo à tona diversos problemas familiares e de sobrevivência, em que claramente a conhecida “estética da fome” é usada. O aparente prazer de mostrar a pobreza (mesmo que nesse caso seja mostrada por estrangeiros) valida completamente as afirmações de Glauber Rocha quanto à constante afirmação do ser latino-americano ser, gostar de ser e se mostrar pobre e miserável.

No terceiro momento, vemos estudantes lutando contra a opressão policial e um governo corrupto. O filme tem um toque soviético, mas não acho que isso deixa de mostrar o lado latino-americano que deveria ser mostrado (levando em conta que a estética da fome seja algo positivo para o ser latino-americano). Os planos-sequencia causam exatamente o impacto planejado, com a sua cena de abertura maravilhosa, em que uma câmera transita pela decadência “escondida” da elite, nos levando até um submundo da prostituição.

Fazendo uma relação direta com o texto de Glauber Rocha, podemos analisar que todas as suas afirmações as validam após o filme Soy Cuba ser assistido. Desde a prostituição, a miséria recorrente e a falta de força do povo latino-americano (que gosta de mostrar esses fatores negativos) podemos notar que falta uma inovação, o que não tira o mérito de Soy Cuba como um grande filme da história latino-americana e também da história das melhores fotografias do cinema mundial.

"A dama do cine Shangai", por Gabriela Miranda


O cinema brasileiro dos anos 80 é marcado por uma séria crise. Os exibidores começam a se revoltar contra a lei que os obriga a exibir filmes nacionais e, assim, a Embrafilme, sem verbas, para de financiar a produção, que sofre uma intensa redução. E, para sanar o que é inicialmente uma crise de público, as produções deveriam ser vendáveis, o que implica em mais pragmatismo e menos autorismo, subjetividade.

Logo, Guilherme de Almeida Prado não foi uma solução para a crise enfrentada pela cinematografia nacional nessa década. Ele parece fazer os filmes que gosta de ver, que tenham um comprometimento com sua cinefilia, cheios de referências a filmes clássicos. Em A Dama do Cine Shangai, especificamente, há referências a A Dama de Shangai, de Orson Welles, que é bem óbvia inclusive pelo nome do filme, e também a Psicose, de Hitchcock, na cena em que Maitê Proença aparece no chuveiro.
Narrativa e esteticamente o filme funciona como um pastiche do filme de gênero urbano, em especial os noir da década de 40 (a narração em off do personagem masculino, que conversa com o público, e a presença da femme fatale); embora o som dos sintetizadores na trilha sonora e os letreiros em neon entreguem a sua verdadeira década.

“(...) num filme B de Guilherme de Almeida Prado”. Essa frase, presente nos créditos finais, reflete a paixão do diretor pelo cinema B e, assim, traz a consciência da artificialidade. É como se a ausência de realismo/naturalismo no filme potencializasse a incerteza, a crueldade e a sensualidade que pairam nas suas situações.

Em A Dama do Cine Shangai há ainda uma certa homenagem ao cinema, o qual permeia grande parte da trama. “(...) e você, pensando em escapar da realidade, resolve ir ao cinema”: diz Lucas, personagem de Antônio Fagundes, logo no início; pouco depois vê-se o público numa sala de cinema antiga e ouve-se apenas o som que vem do filme que está sendo projetado. A história do filme projetado nesse cinema antecipa a própria trama do filme. São diversos os elementos que intensificam a relação entre a realidade e o imaginário, talvez até o trunfo desse imaginário sobre o real, como quando as situações se desenvolvem na mente do protagonista Lucas a partir do que é visto na tela do cinema.

"Três vezes Jabor', por Túlio Ricardo de Lima Rodrigues




A classe média em diferentes momentos, discutindo seus problemas individuais que ganham uma atmosfera universal em um único espaço: o apartamento. É assim que o cineasta Arnaldo Jabor monta a base para a sua chamada Trilogia do Apartamento composta pelos filmes Tudo bem, Eu te amo e Eu sei que vou te amar, obras em que a classe média será representada, cutucada, desmascarada e refletida.

Em 1978, Arnaldo Jabor lança o filme Tudo bem. Encabeçado por Paulo Gracindo e Fernanda Montenegro no elenco, o filme abre a discussão para a estrutura das classes sociais no Brasil. No apartamento de Juarez (Gracindo) e Elvira (Montenegro) operários estão fazendo uma reforma esperada por 26 anos. Nesse cenário de desorganização, confinamento e bagunça a trama se desenvolve relacionando os moradores da casa, as domésticas que lá trabalham e os trabalhadores da reforma num tom de uma metáfora política melodramática.

Jabor abusa das possibilidades em trazer para o ambiente do apartamento situações e tipos populares variados. Desde a família pobre de um dos trabalhadores que se instala no apartamento incomodando a família de classe média, a situação da empregada novata que se prostitui, ou ainda às frustrações amorosas da dona de casa, faz com que o diretor acabe se excedendo no uso tanto da alegoria quanto da música, característica que está bastante presente durante todo o filme. Se o diretor queria dá a impressão que o Brasil está todo dentro daquele apartamento, conseguiu ao mostrar que as classes estão segregadas quando assistimos patrões e operários almoçarem cardápios diferentes, mas que no final das contas serão todos juntos que fecharemos os buracos nos canos, como em um dos melhores momentos do filme em que todos (de todas as classes) tentam acabar com um vazamento no banheiro.

De um Brasil sintetizado num apartamento para um casal de quase desconhecidos em um ambiente similar, se passaram quatro anos. Em 1982, Jabor lança o filme Eu te amo protagonizado por Sonia Braga e Paulo César Pereio. Logo na primeira cena fica claro que o filme fará críticas à situação política do país. O filme se passa na década de 70 e retrata o fracasso do milagre econômico brasileiro, que acabou falindo alguns empresários como Paulo (Pereio) que durante todo o filme reforça a sua má situação financeira. Paulo e Maria (Braga), que acabaram de passar por desilusões amorosas, traçam uma fantasia romântica no apartamento do empresário falido.

Em um ambiente restrito e exótico repleto de luzes e espelhos, aos poucos os protagonistas vão se sentindo à vontade para revelar suas verdadeiras identidades, seus desejos, suas angústias e suas frustrações. Jabor tenta criar uma narrativa psicanalítica, mostrando a fragilidade e os impulsos dos seus personagens. Em especial aos impulsos de Maria que por ser rejeitada por outro homem, resolve se vingar criando uma personagem materialista e carnal. Além disso, o filme está encharcado de cenas de sexo. O próprio diretor alega que o filme é sobre sexo. E é de fato. Assim, Sonia Braga e Pereio nos apresentam um drama psicológico regado com muito erotismo.

No filme, Jabor começa a trabalhar com um estilo de flashback e com uma narração da cena ou dos pensamentos dos personagens que ajudam nesse tom de psicanálise que o filme pretende mostrar. Outros pontos que ajudam nessa composição são a cenografia e a fotografia do filme. Muitas das cenas realizadas sobre os reflexos de um grande espelho dão um toque especial à trama, colaborando com certa profundidade que o filme vai tomando, mas que acaba sendo limitada pelo próprio espaço do apartamento.

Encerrando a trilogia, Jabor lança em 1986 o filme Eu sei que vou te amar com Fernanda Torres e Thales Pan Chacon como os únicos atores do elenco. Seguindo o modelo de Eu te amo, o diretor resolve aprofundar um pouco mais na psicanálise de um casal. Os personagens de Torres e Pan Chacon acabaram um casamento há pouco tempo e resolvem se encontrar no apartamento do ex-marido para conversarem. O apartamento é mais uma vez o ambiente ideal para os personagens se despirem de qualquer imagem. O ex-casal aos poucos vai contando suas angústias, suas inquietações e principalmente suas verdades para o ex-companheiro (a). Em pequenos monólogos cada um vai expondo o que sente ou o que queria sentir e que o outro nunca foi capaz de lhe propiciar.
Jabor intercala as cenas do apartamento com vídeotapes, em que os personagens narram seus sentimentos, além de flashbacks de momentos que os personagens viveram que se tornam os pontos altos do filme. Assistir o personagem narrando seus sentimentos ou expondo seus verdadeiros pontos de vista, quebra um pouco com a monotonia que o filme apresenta. Além disso, com esses recursos o diretor consegue fazer uma narrativa descomprometida com aspectos temporais e espaciais, dando um tom até de experimentalismo para seu filme.

Eu sei que vou te amar
também apresenta um tom teatral na sua trama (característica presente nos outros dois filmes), não só pelo cenário, mais uma vez exuberante, exótico e alegórico, mas também pelo excesso de diálogos em suas cenas por hora bem realizados pelos protagonistas, em especial Fernanda Torres que ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes pelo seu trabalho no filme. É interessante notar também que o ambiente do apartamento no filme que aos poucos vai ficando saturado é refletido na relação esgotada do casal. No final do filme constatamos a importância do apartamento para os sentimentos dos personagens. Só mudando os móveis de lugar é que eles vão mudar seus comportamentos perante o outro.

Na sua trilogia do apartamento, Arnaldo Jabor consegue executar reflexões sociais, culturais e políticas a partir de pequenos núcleos como a família ou um casal. Tudo isso dentro de um pequeno espaço que parece ser o grande combustível para que a verdadeira imagem do indivíduo salte para fora. É interessante perceber que nos três filmes, Jabor consegue fazer com que discussões entre poucas pessoas se ampliem em diversos níveis, chegando a um tom universal sobre a temática em questão.

Os mexicanos pelos seus próprios olhos, por Vitória Victor




No México, os anos 1908 e 1909 foram marcados como anos de escassez de alimentos e pobreza, provocados por uma seca que prejudicou a produção agrícola de todo o país e desencadeou grandes cortes financeiros. É nesta situação, numa cidade rodeada de chinampas (tipo de canteiro flutuante construído para o cultivo de algumas plantas) chamada Xochimilco que vive María Candelária. Uma índia jovem, simples e inocente que vive no meio de um jardim suspenso.

Sua história é iniciada com um esclarecimento sobre suas origens. A mãe de María Candelária havia se prostituído e foi assassinada pelo povo da cidade por ser uma desonra para todos. Como filha da vergonha da cidade, María é tratada como uma praga e elemento de má sorte. A única pessoa próxima é Lorenzo Rafael, o homem com quem almeja se casar. Muitos eventos que atrapalham os planos do casamento acontecem, e neste meio tempo o pintor surge como uma figura caridosa nos momentos mais difíceis, e que carrega uma vontade pintar María Candelária. Após certa insistência o pintor começa a retrata-la, porém sua intensão era pinta-la nua, o fato não acontece e o corpo de María Candelária é substituído pelo de outra índia. Uma moradora da cidade vê a pintura e espalha seus “atos errados”, o povo une-se a sua caça. Perseguida e apedrejada, Maria Candelária morre repetindo não ter feito nada errado.

Entre os 100 melhores filmes mexicanos, a obra María Candelária (1943) de Emilio “Indio” Fernández é o filme de maior consagração do diretor. Com uma maneira diferenciada de falar sobre mexicanos, justamente por ser obra de um mexicano. Nesta narrativa o índio torna-se o ponto máximo de orgulho por ser digno e puro, contestando as muitas vezes em que foram vistos como selvagens, preguiçosos, bandidos e sem caráter. O filme trás uma imagem romantizada excessivamente e não retrata com fidelidade a situação pré-revolucionária que o México estava passando. Em certos momentos o diretor parece por suas palavras para serem ditas pelo pintor, como quando fala da idealização da imagem pintada de María Candelária, diz: "esencia de la raza mexicana, delicada, emotiva y maravillosa".

O longa-metragem aplica bem as trilhas sonoras, que se desenvolvem no ritmo da trama, passam de som de fundo leve, para suspense e até a uma concretização do medo.
Com uma fotografia destacada de composições firmes de quadro, determinante para o resultado final. A cenografia é trabalhada diretamente no local real retratado, em Xochimilco, juntamente com a fotografia temos um conjunto admirável na tela. Os trabalhos de figurinos dos personagens devem ser ressaltados principalmente o de María Candelária, a índia transmite uma imagem ainda mais pura pelo modo que coloca o xale sobre a cabeça e sua postura, esse é um movimento proposital já que se busca uma proximidade com a Virgem de Guadalupe.

A indústria de cinema mexicano no final da década de 30 começou o período conhecido como "época de ouro" do cinema mexicano. Sempre pelos parâmetros de plástica perfeita ditados por Hollywood, Dolores del Rio como María Candelária é uma reafirmação disso. Com uma linha narrativa facilmente identificada e sem muitas reviravoltas, o drama tem uma relevância enorme não só para mexicanos, mas para todos que estão interessados em observar leituras diferenciadas da cinematografia de um México que quase sempre sofreu estereotipações.

GAROTA DOURADA, por Nathalie Alves



“Garota Dourada” de 1984, dirigido por Antônio Calmon é a continuação de “Menino do Rio”, um filme de grande sucesso de 1981. O filme narra a história de Ricardo Valente, um surfista, que após cinco anos de casamento, foi abandonado por Patrícia, sua esposa, resolve ir para o litoral de Santa Catarina na companhia de sua filha e do astro de rock Zeca. Lá, Ricardo acaba se apaixonando pela sensual Diana, despertando a raiva de Betinho, que também era apaixonado pela moça. Os dois travam uma disputa emocionante pelo coração de Diana, a famosa "garota dourada".

Com a escassez de filmes para o público mais jovem, as produtoras de filmes hollywoodianas passaram a navegar nesse mercado promissor, trazendo para as telonas elementos do universo desses jovens, como os romances juvenis, esportes radicais, o rock, entre outros. Como esses filmes tiveram grande sucesso de bilheteria, os cineastas brasileiros não ficaram para trás e junto com a Embrafilme investiram nesse “novo mercado”.

“Garota Dourada” é um ótimo filme. Com bonitas locações, trilha sonora memorável, elenco prestigiado e equipe bem preparada. Porém comete o pecado de praticamente repetir a fórmula e a história de “Menino do Rio”. O longa soa muitas vezes como uma verdadeira copia de seu antecessor, não trazendo nada que não se tenha visto anteriormente em outros filmes de mesma temática. A cena, que talvez seja a mais inovadora é sem dúvida a da abdução. Onde um dos personagens está voando de ultraleve quando se depara com uma forte luz dourada, que libera um facho luminoso fazendo-o desaparecer para sempre, haja vista que a terceira parte dessa trilogia, que se chamaria “Menina Veneno”, jamais foi rodada.

O filme é bastante inferior ao primeiro longa da “trilogia”, varias vezes crucificado por parecer uma releitura de outros filmes. Mas ele possui também seus méritos ao revelar a brilhante atriz Andrea Beltrão e nos saudar com a trilha sonora inesquecível dirigida por Nelson Motta. “Garota Dourada” se comporta visivelmente como uma espécie prévia do que seria “Armação Ilimitada” anos depois, coincidentemente ou não, dirigida por Antônio Calmon.

"Menino do Rio", por Jéssica Fantini


Quem diria que Antonio Calmón, diretor de novelas como Vamp e o beijo do vampiro foi sucesso em 1982 com um trabalho como Menino do Rio. O filme que não contém uma grande qualidade técnica, uma fotografia inesquecível e nem atuações brilhantes, se valida por retratar um modo de vida nada semelhante ao da geração tecnológica de hoje. Todo o cenário carioca e o estilo de ser sossegado mostrado em “Menino do Rio” fez tanto sucesso de bilheteria que o longa-metragem teve uma continuação em 1984, o filme “Garota dourada”.

O estilo de vida desejado pelos jovens dos anos 80 é completamente oposto ao universo de agitação que busca a juventude atual. Como diz na música de Lulu Santos “De repente, Califórnia”, cantada diversas vezes durante o filme, o sonho é ter tranquilidade, viver uma vida sossegada e ter paz de espírito. Seguindo um trecho da música de Lulu Santos, que serve como hino para o filme, os jovens buscam “viver a vida sobre as ondas”, sem estresse, e a conclusão é que a vida é simples e não precisa de muito para ser feliz.

O filme é tão voltado para a questão de viver cada momento que os problemas pessoais ficam em segundo plano. Por exemplo, o casal do grupo que é jovem e já tem um filho, o menino que é órfão e não tem onde ficar, e até valente, o protagonista, passa por uma situação difícil ao se apaixonar por Patrícia, uma mulher que já se envolveu com seu pai. Apesar de tudo, o clima do filme é sempre positivo e tudo se resolve surfando e estando com os amigos. Até a morte prematura de um deles no fim parece algo mágico e não tem um tom de tragédia muito acentuado.

As inspirações de Calmón estão no nome do filme, que veio da música de Caetano, e dos filmes americanos que foram exemplos para a temática. Outro ponto que vale salientar é a belíssima filmagem do cenário do Rio de Janeiro, somada a toda beleza que já é natural da trama. Por todo o destaque que teve na época, o longa vai ser refilmado em 2012, por Cláudio Botelho e Charles Möeller, com um estilo mais musical.

La Muerte de um Burocrata (1966), por Angélica Santana


Sob o disfarce do humor com refinada ironia, emerge uma narrativa com o compromisso de denunciar o absurdo que é teia burocrática. Isso não é feito com falsa modéstia, desde os créditos Tomás Gutiérrez Alea, o diretor, oferece o filme a todos os grandes nomes do cinema desde os Lumiére. Assim, deixa claro que não tinha nenhuma pretensão de entregar um filme medíocre, mas uma obra que além de manifestar qualidade técnica, retrata fielmente o que incomodava a Cuba da década de 60.
Um homem é morto pelo seu próprio trabalho, assim começa a história de “La Muerte de um Burocrata”, um proletário acaba sendo engolido – literalmente – pelo modo de produção industrial. Tamanha era a sua dedicação ao ofício que é decido que será enterrado com a sua carteira de trabalho. E assim se desenrola uma sucessão de eventos que levam o seu sobrinho a se envolver num espiral de requisições, assinaturas e carimbos para reaver a carteira.
Talvez uma sequência resuma todo o espírito do filme. Na entrada do Departamento de Aceleração de Processos – onde o protagonista é enviado de mesa em mesa sem que ninguém pareça estar de fato interessado na resolução do seu problema – está pendurado o seguinte cartaz “Departamento de Aceleração de Processos: 1° Lugar no Campeonato de Pingue-Pongue”. Nada poderia ilustrar melhor o conceito de burocracia do que isso.

Uma campanha é lançada perto do fim do filme: “Muerte a burocracia”, já fica expressa a intenção do autor. A morte agora não é direcionada ao burocrata, como no título do filme, mas à burocracia. E é por essa causa que a narrativa milita em meio a um humor comparável a Monty Python. Nenhuma sequência é sem propósito, nenhum diálogo se perde diante da vontade urgente de evidenciar o absurdo que é a burocracia.

Maria Candelária, por Pedro Queiroz



A obra mais conhecida de Emilio Fernandez é um melodrama sobre o equivocado moralismo pós-revolucionário mexicano e a ignorância e primitivismo em que se escondem o preconceito, o ato de julgar. Um enaltecimento do povo indígena, como sendo o autêntico representante do povo mexicano, vítima da colonização branca. Maria Candelária é desde as primeiras cenas do filme, uma sofredora, isolada do resto da população graças ao azar de ter uma prostituta como mãe. O conservadorismo dos moradores da vila em que se passa o filme é deturpado, e ignora as boas intenções da índia em se integrar na população. Apesar de sem fundamento lógico, a opressão leva-a a viver à beira do rio, afastada dos acontecimentos e das pessoas daquele lugar pacato.

A imagem da Virgem Guadalupe é utilizada como uma metáfora para o sofrimento e ao mesmo tempo a divindade resguardada em Maria. Uma das primeiras cenas apresenta uma das índias do vilarejo arremessando pedras na casa da protagonista, e apedrejando a estátua da Virgem, fato que irá se repetir ao fim do filme, quando uma turba ensandecida apedreja a índia, numa cena que a coloca no posto de mártir da estória: a mais pura e doce representação do povo mexicano, morta cruelmente e sem motivos palpáveis (culpa de um mal entendido) pela parcela da população que cumpre o papel de vilã irracional durante todo o filme. Estão todos ali: as vizinhas fofoqueiras, o homem poderoso que arranca os últimos centavos de pobres endividados, além dos pacatos cidadãos contaminados pelo ódio.

Apenas dois ‘setores’ deste microuniverso estão do lado de Candelária: o homem que ama, e a igreja. O primeiro acaba preso por roubar remédios e um vestido para se casar com Maria. Já a Igreja ocupa um papel interessante no filme. Sintetizada na figura do padre, a instituição é uma espécie de conciliadora (se por um lado a moça é originária de um pecado, a culpa não reside nela, que não pediu para vir ao mundo desta maneira). Assim, a igreja se coloca em alguns momentos contra todos os outros habitantes, atenuando um pouco o ódio por estes sentido.

O que leva a protagonista à morte, de fato, é um acontecimento bastante confuso, que envolve a pessoa que narra os acontecimentos do filme, um pintor espanhol. Após muitas investidas sem resultados, o pintor consegue finalmente convencer Maria a ser pintada – tamanha necessidade de pintá-la explica-se justamente por ser ela a mais fiel representação do povo mexicano, algo que o pintor estava em constante procura. Ao terminar de pintar o rosto, o pintor não se contenta e pede para que a moça tire a roupa, para continuar a pintura. Ela naturalmente nega, achando isso uma afronta ao seu recato e virgindade, fugindo. No entanto, outra modelo se oferece por ter um corpo bastante parecido com o da original, e assim se espalha pela cidade a notícia infame de que Maria Candelária posou nua.

Analisando arquetipicamente o personagem da índia nativa e do pintor estrangeiro, notamos que o desespero da população em ter a moradora pintada surge, além de motivado pelo fato de isso ser uma afronta ao pudor e aos valores cristãos, por ser uma referencia à indignação de um povo que se vê entregue ao colonizador.
Como é notável no decorrer do texto, há sempre uma preocupação em se estruturar esse duplo significado nas coisas, e tudo atua desempenhado seu devido papel dentro da esquematização de conceitos que constituem os debates temáticos do filme (a questão da colonização, de uma moral deturpada por primitivismos e equívocos ideológicos, e de quem seria de fato o povo mexicano).

Simbologias e metáforas à parte, o filme utiliza-se de todas as ferramentas estruturados pelo melodrama de Hollywood, para tratar da cultura do México, país não muito tempo antes cenário de uma revolução político-cultural. Enquanto filme, se utiliza de formas feitas, de padrões narrativos americanos e terceiro mundistas que, se fizermos uma ligação com o texto Estética da Fome, de Glauber Rocha, são representantes do cinema exotista, que pretende esquematizar (e acaba por ridicularizar, simplificar toscamente) o que seria a contemporaneidade e o jeito de pensar e agir de um país inteiro. Se Maria Candelária é vangloriado e aclamado no mundo todo, é porque estereotipa uma cultura, mastigando-a para o público já familiarizado com esse tipo de sintetização do Terceiro Mundo. Além disso, na minha opinião, o filme peca em termos de complexidade enquanto obra fílmica, quando põe cada agente da narrativa em seu devido lugar, sem que haja uma exploração mais trabalhada da evolução narrativa da individualidade de cada personagem. Justiça seja feita, marca recorrente em termos de melodrama. Peca também como peça realista, quando se permite a cenas parecidas com a do clímax, em que o rapaz encarcerado (há dias) consegue arrombar as grades da prisão com a força do amor. Isso não me parece pitoresco, nem romântico.

Memórias do subdesenvolvimento, por Bárbara Kathleen N. Canto



O filme se baseia no romance de Edmundo Desnoes e se reporta ao conturbado período político cubano, em que mesmo já consolidada a revolução, ainda havia dentro da ilha muitos descontentes com os rumos socialistas que o novo governo estava então adotando como nova prática social, econômica e política de Cuba.

Nesse contexto, ainda no início do filme, em meio a uma festa, onde havia muita gente presente, uma pessoa é assassinada, e mesmo assim, a festa continua, demonstrando como o clima ainda estava tenso em Cuba, além de uma inquietante indiferença, como se tal fato fosse quase corriqueiro no país, isso, dez anos depois da revolução ter saído vitoriosa, ainda encontra-se várias pessoas – na maioria burgueses – se auto-exilando, deixando Cuba por não compactuar com o novo regime, é claro que em grande parte se dirigiram à Miami, que sempre foi o destino mais procurado pela burguesia desta região do Caribe.

A partir de então o filme passa a contar a estória de Sérgio Carmona, personagem principal do filme: um burguês que após embarcar sua família e esposa para Miami, decide ficar para poder fazer uma crítica ao novo regime, de dentro do país. Decide escrever um livro ou diário e vai narrando e mostrando com exemplos de coisas cotidianas como, por exemplo, a falta de brilhantina Yardley e de creme dental Colgate, considerados como “produtos imperialistas” – clara ironia do personagem em relação à postura do novo governo no que diz respeito a tudo e qualquer coisa oriunda dos Estados Unidos - mudando totalmente os rumos do país, que até pouco tempo, não passava de parque de diversões e explorações - quer seja sexual quer seja econômica – pela alta burguesia estadunidense.

No filme todo fica latente o descaso com que o personagem trata seu país: para ele, Cuba não passa de uma ilhazinha subdesenvolvida e atrasada, e seus habitantes, pessoas de pouca educação e deficiente traquejo social, especialmente as mulheres. Enquanto que, por outro lado, o ideal de civilidade e progresso são justamente, os Estados Unidos e a Europa, o que nos remonta ao sentimento do eterno colonizado, tão presente na cultura da América Latina em geral, e que fica claro quando ele cita que durante algum tempo, Havana fora considerada a “Paris do Caribe”, e agora não passa da “Tegucigalpa do Caribe”. Será que ele está se referindo ao tempo em que Havana, não passava de um grande prostíbulo para a alta burguesia destes lugares, verdadeiros reinos da civilização ocidental? Provavelmente.

O sentimento de colonizado se manifesta até em suas relações amorosas. O personagem se decepciona com a moça com que está se envolvendo, Elena, porque esta não compartilha seu ideal de sofisticação (europeu, logicamente), ela o lembra do subdesenvolvimento de Havana, “a cada passo”, como ele mesmo diz.

Em suma, o filme é um excelente exemplo de uma atitude de submissão que foi tão praticada por nós latino americanos em relação a Europa e Estados Unidos. Mais uma das características que antes podia-se dizer que nos marcava. Porém hoje, é mais difícil de se encontrar esse tipo de postura, não que não mais exista, mas sim, que está em processo de extinção, e a partir desses novos rumos que vem se desenvolvendo em meio a conjuntura político-econômica que se desenha, podemos vislumbrar um futuro, em que todos nós latino americanos, não almejaremos ser nada mais nada menos que nós mesmos.

Maria Candelaria, por João Paulo Maciel de Araújo



No filme Maria Candelária de Emilio Fernandez datado de 1944, temos uma imagem de um novo México até então não retratado no cinema, aonde uma nova face ethos do povo mexicano vem à tona, a saber, a da figura do bom selvagem. Sabe-se que pelo histórico dos filmes retratados em Hollywood a imagem do mexicano era composta por características bem esteriotipadas tais como a imagem do homem bêbado, indolente e bandido como muitas vezes é visto nos clássicos de faroeste. Nesta película o diretor consegue mostrar uma nova perspectiva da vida do povo mexicano, sobretudo, do modelo indígena de vida transladando os modelos até então retratados. A figura de Maria Candelária (Dolores del Río) consegue representar bem esse modo de vida, fundamentado em um moral católica num híbrido de costumes indígenas que revelam uma pura inocência frente as dificuldade e crueldades que a vida colonizada trouxe.

O filme começa com o pintor sendo entrevistado, contando um pouco da sua carreira onde num determinado momento de sua vida fez algo do qual até hoje se arrependera, somente no decorrer da trama é que vai ficando claro o porquê de todo aquele arrependimento por parte do pintor. Maria Candelária trazia uma péssima reputação por ser filha de uma indígena que havia sido prostituta e isso, por sua vez, terminou por gerar um efeito negativo na visão que as pessoas tinham de Maria Candelária. Um outro ponto problemático na vida dela era o fato dela ser namorada de Lorenzo Rafael (Pedro Armendáriz) do qual tinha uma ex-namorada que morria de ciúmes aos moldes do melodrama mexicano, e que fazia de tudo para infernizar o relacionamento do casal.

Sob um olhar da psicologia analítica de Jung podemos perceber uma encarnação de um arquétipo na figura de Maria Candelária. Tal arquétipo seria o da Virgem de Guadalupe, uma santa padroeira que tem um importante papel no imaginário do povo mexicano. Maria candelária não tinha grandes ambições, era de natureza simples, seu único objetivo era casar com Lorenzo Rafael e ter uma vida melhor juntos, mas a trama se desenvolve numa direção em que o trágico vai tomando conta da película concomitantemente ao traços dramáticos que o filme vai apresentando.

Em muitos momentos vemos um apelo a uma espécie de moral particular dos personagens em contraste com todo o resto, que poderíamos dizer, estariam corrompidos pelos tabus de uma sociedade moralista. Tal moral como foi dito está fundamentada nos costumes católicos. Maria candelária tem muito definido na sua cabeça o ideal de uma boa conduta, é justamente isso que a faz recuar diante da proposta do pintor quando o mesmo queria pintá-la nua. A noção de pecado original pode ser trazido para uma discussão quando a mesma sente vergonha ao ver que não é certo o que ela iria fazer.

Outro exemplo de moral particular foi a atitude de Lorenzo Rafael que transgrediu as leis locais para conseguir remédios para Maria Candelária e pagou o preço sendo preso. Num momento do filme, ele faz uma espécie de juramento religioso, dando sua vida pela de Maria candelária. Ao final tudo parece não funcionar, pois o trágico toma conta das ultimas cenas do filme, onde Lorenzo Rafael continuava preso e por outro lado, Maria Candelária sendo julgada de forma errônea pelas pessoas da cidade termina morrendo tragicamente como uma mártir.

Concluindo, o filme traz um grande a apelo a imagem do indígena, marcado pela identidade desta com o povo mexicano, tal imagem seria um novo referencial do México para o mundo que estava embebido pela concepção norte-americana de um México decadente. Além de tudo o que foi dito, Maria Candelária é um filme que comove pela sua simplicidade, e pelo seu naturalismo no que concerne ao modo de vida dos personagens que fora mostrado pelo diretor Emilio Fernandez.

A VANGUARDA CONTRARIADA, por Hermano Callou


LA HORA DE LOS HORNOS (Fernando Solanas e Octavio Getino, 1968, Argentina)

La hora de los Hornos é um filme sobre um encontro e também sobre um desentendimento: o encontro e o desentendimento entre o que chamamos de vanguarda política e de vanguarda estética. A vanguarda política em questão são, evidentemente, aqueles que militavam pela “revolução tricontinental”, no caso específico da Argentina, o peronismo revolucionário; a vanguarda estética, o Cinema Novo argentino, que naquele momento conquistava com La Hora seu filme mais emblemático. Se existe desentendimento é porque o encontro das revoluções estética e política não pode partilhar uma idéia unívoca de vanguarda. A equivocidade da própria noção de vanguarda, que o filme de Solanas e Gentino atualiza, talvez seja capaz de revelar a força de sua própria obra.

Um primeiro conceito de vanguarda é o conceito militar e topográfico da força que marcha a frente e determina o sentido do desenvolvimento histórico. Tal idéia de vanguarda encontra no partido, a cabeça dirigente do movimento das massas, seu princípio de formalização. Tal idéia de vanguarda política é evocada no dispositivo didático de La Hora. A capacidade dirigente do partido é análoga ao papel que a voiceover ocupa no filme. A incapacidade de localizar tal voz no quadro, a subtração de tal fala à diegese, sua origem indeterminada e a ausência das marcas que situariam seu lugar de enunciação, oferecem as condições privilegiadas para que tal voz se transforme na voz do Mestre. O Mestre é aquele cujo papel é ler nas imagens os signos da História. A voz que revela aos dominados a verdade de sua dominação apenas o faz reproduzindo a própria forma da dominação: a existência da voz do Mestre pressupõem continuamente o déficit de saber dos dominados de sua condição e de seu destino e, portanto, precisa reinserir de modo contínuo a distância que os separa da emancipação.

O que é importante apontar é que a voz do Mestre é continuamente contrariada pelas imagens que pretende sustentar seu discurso. Uma imagem nunca é redutível a um enunciado. Existe uma incomensurabilidade entre ver e falar, entre o objeto visível e o objeto discursivo, que mina o dispostivo didático de seu interior. Onde ouvimos que “o proletariado é a base do peronismo”, vemos a distância de Perón, discursando do alto da Casa Rosada, da multidão que o aclama. Perón é sempre filmado de perto e sempre surge iluminado e enquadrado como se exige os códigos da democracia espetacular, freqüentemente em contra-plongée, como em geral se deve figurar líderes carismáticos e populistas como Perón. A multidão sempre aparece indistinta em suas formas, esmaecida entre a luz e a sombra, filmada do alto e de longe, como que para “contá-la e, imaginariamente, metralhá-la”, diria Daney. A disjunção entre o visível e o enunciável suturada pelo dispositivo didático de Solanas e Getino ressurge como um retorno do recalcado que fratura a própria idéia de vanguarda política.

O segundo conceito de vanguarda talvez permita reconhecer a força da La Hora de los Hornos. Vanguarda é nome – dentro do modelo schilleriano - de uma antecipação estética do futuro. Vanguarda, em sentido propriamente estético, é a invenção de formas sensíveis que anunciam uma comunidade por vir. La hora de los Hornos é um grande filme na medida em que, nas fissuras de seu dispositivo, novos visíveis e dizíveis são postos em jogo. O lugar decisivo para tal redistribuição do sensível são as imagens do povo. Não se trata, evidentemente, do povo como substância da Nação, como evocado pelo discurso peronista, mas do povo como devir, o povo como comunidade genérica que se constitui no processo revolucionário e não existe anteriormente a ele. As imagens do povo que assaltam às ruas e tomam a palavra, os depoimentos e testemunhos decisivos que atestam a capacidade de qualquer um tomar as rédeas de seu destino, os encontros dos anônimos com o poder que as imagens registram, mapeiam uma nova comunidade sensível que se constituía no processo político. Tal estética é irredutível o dispositivo didático e atualiza uma outra promessa própria a uma arte de vanguarda..

"Copacabana de Jabor", por Heitor Dutra


Caberia um país em um bairro? Mesmo em Copacabana? Caberia talvez no hall do Copacabana Palace? Não falo da praia, nem da vista pras ilhas Cagarras, nem da antítese: O pavão e a princesinha. Também não é o apartamento de Nara Leão. Mas sim, caberia num apartamento, de classe média no Rio de Janeiro, um país? Jabor tenta enfiar lá dentro, o povo e a crise. Cabe no cinema um país?

A montagem da ópera tupiniquim começa cedo pra Juarez, mas ele não sabe. Por ser tão novo, e escrever com esperanças, trabalhar por hoje e amanhã. Mas o tempo veio, sem alarde e lentamente se aquietou. Juarez, já velho, com corpo de Paulo Gracindo lamenta o presente, um país falido, um povo ignorante, um desapego pelo nativo.

Elvira duvida da fidelidade de Juarez, que duvida da capacidade de seus filhos fazerem algo útil pelo Brasil, seus dois filhos, Regina Casé, da Central da Periferia, do Esquenta, da Tv Pirata e da Globo e Luis Fernando Guimarães, o "Normal", junto da filha de Elvira na vida real, a filha de Fernanda Montenegro. Aí está a juventude brasileira da classe média: Vera Lúcia "Casé" e José Roberto "Guimarães". Jovens fascinados pelo estrangeiro, pela língua inglesa e pelo gringo Peréio.

Elvira duvida da honestidade de suas duas empregadas, Aparecida de Fátima, a beata e Zezé, a Motta, cantora de Belchior e João Bosco. A montagem da ópera se adianta, a grande reforma finalmente desce das nuvens de sonhos de dona Elvira. Ai, finalmente, uma sala ampla, bem dividida e decorada de acordo com a moda do fim do governo Geisel, um milagre, no fim do milagre. A reforma galopa solta, como a inflação, com os pedreiros passando o dia naquele apartamento, a marmita é pobre, mas boa, para Elvira o povo é bom, o povo brasileiro é bom. O povo da marmita. O povo que reza, não estuda, trabalha, canta repente e desce dos morros toda manhã. E o povo que habita essas cavernas empilhadas, com vista para o mar, que estudaram, trabalham e se alienaram. O povo é bom, o povo é filmado, desde cinquenta e pouco, e antes. Humberto Mauro não o fez? Mário Peixoto filmou pessoas? Já dizia o intelectual: "Desde sessenta e quatro não se vê outra coisa, desde o golpe e um pouco antes se vê o povo verdadeiro na tela, o povo que luta, o povo do nordeste, do sertão pernambucano, do brejo da Paraíba, do centro da Bahia.O povo brasileiro mesmo. E não esse embuste, essa burguesia lascada, hipócrita, consumista". A burguesia parece só existir quando o maniqueísmo existe, e ela não é a mocinha.

Jabor ouviu essa história, achou estranha, e jogou tudo que tinha num apartamento em Copacabana, sentou todos num divã e disse: vamos ver como é que funciona, sem ser absoluto (será?). Vamos tentar falar uma verdade. Vamos chamar Glauber pro apartamento, Cacá Diegues já estava sabendo, mandou buscar até Jeanne Moreau de Paris, e levou ela pra Alagoas, com seu marido Pierre Cardin. Vamos trazer o cinema brasileiro para o apartamento da familía Barata. Eu quero me ver na tela, e não quero ser o vilão, gritaram da janela.

A montagem da ópera prossegue, e ainda virão mais filmes, Sônia Braga, mais Peréio, a filha de Fernanda Elvira Montenegro. Tudo acaba, as coisas voltam, tudo está bem. O apartamento como paisagem é diverso, cada cômodo é um região, não geográfica, mas de condensação de certos sentimentos, dos personagens, ou seja do povo. Quem é assim? Que tipo de prédio é este? Que país é este Juarez? Nem seus amigos que vem do passado o ajudam na questão, nem Fernando Torres, real marido de sua mulher Fernanda. Nada está bem, mas tudo caminha e a ópera tem estréia com casa cheia, depois vai esvaziando, acaba e volta. Sempre volta.

"Soy Cuba", por Diana Maria de Santana


Soy Cuba, filme dirigido pelo soviético Mikail Kalatozov e objeto dessa análise, foi produzido com a intenção de estreitar os laços entre a União Soviética e Cuba além de exaltar o Socialismo.

O filme começou a ser produzido no início dos anos 60, pouco tempo depois de a Revolução Cubana conseguir implantar o regime socialista no país e narra, através de quatro histórias, o fim do governo ditatorial de Fulgêncio Batista até a vitória da citada Revolução.

A narração é feita pela personificação de Cuba, lamentando o sofrimento de seu povo, que sofria com graves problemas sociais contrastantes com o luxo e a riqueza existente nos night clubs e cassinos destinados a uma minoria privilegiada.

Logo no início da narração é possível notar um discurso bastante previsível sobre a questão do colonizado, visto como ingênuo, que acreditava ser o colonizador uma espécie de salvador e o recebia com alegria na esperança de que este trouxesse benesses para o país. Segue-se com um interessante paradoxo sobre o açúcar, na tentativa de explicar a relação de dominação e exploração que os EUA mantinham sobre Cuba, através da importação de tal mantimento. “Estranha coisa há no açúcar. Tanto pranto há nele e, no entanto é doce.” É interessante colocar que, uma das formas de tentar deter o avanço do projeto socialista cubano, por parte dos EUA, foi justamente a suspensão das importações do açúcar.

Cuba, após sua Independência, passou a ser uma espécie de “quintal” dos EUA que, além de abrigar grandes empresas estadunidenses, também servia como local de diversão, onde tudo era permitido e a exploração sexual ocorria livremente. Era o paraíso tropical da burguesia.

A primeira história do filme trata dessa realidade: uma moça que trabalha num cabaré e esconde sua condição do namorado, um vendedor de frutas, acaba dormindo com um americano. A figura do americano também é extremamente caricatural, beirando o cômico. “has to build its polemic around a view of Americans that’s every bit as caricatured as our view of Russians during the same period.” ( Visionary Agitprop. Disponível em: Acesso: 18/09/2011)
No final do episódio, após ser flagrada pelo namorado, com outro homem em sua casa, a moça fica envergonhada e o americano sai andando pela favela e se surpreende e se comove com a verdadeira e, até então, desconhecida situação do país. “A ‘mensagem’ é evidente – a exploração dos seres humanos só é possível nesse ambiente de miséria, fruto das ‘contradições do capitalismo’, como se dizia então. O tom do filme é todo assim, grandiloqüente, épico, demonstrativo.” ( Soy Cuba, um filme esquecido da Guerra Fria. Disponível em: Acesso: 21/09/2011)

A segunda história retrata o trabalhador rural que, enganado pelo fazendeiro vê todo seu trabalho se resumir em dívidas e nunca pode usufruir da riqueza que produz. Quando o agricultor percebe que vai ter sua casa tomada e que nada pode fazer, pois firmou contrato com o explorador, toma consciência dessa realidade e questiona os filhos: “será que eles não vêem a riqueza que há aqui?” No entanto, a riqueza injustamente não lhe pertence e, por isso, num surto de fúria queima toda a plantação e a própria casa.

Na terceira historia, a Revolução começa a tomar corpo, o movimento estudantil é retratado e ressalta-se uma divergência entre os estudantes. De um lado, os mais radicais, buscando vingança pelas mortes dos camaradas. Do outro, os apassivadores, que insistem em deixar claro que a luta é contra o sistema e não contra os homens. O personagem Henrique, deixa de matar um policial que, mais tarde, acaba assassinando um dos líderes do movimento e seu amigo. O episódio se encerra com duas cenas grandiloqüentes: a marcha dos estudantes, de braços dados, cantando o hino nacional cubano e o velório de Henrique, morto pelo mesmo policial que havia deixado de matar. Fica claro que se busca despertar a emoção no espectador e o orgulho de defender a pátria com a própria vida.

Na quarta e última história, vemos o apogeu da Revolução e o pacato camponês que se separa de sua família para lutar na guerra. Mas uma vez, a tentativa de exaltação do nacionalismo e do orgulho de participar da construção de uma sociedade mais justa.
É marcante a preocupação estética que permeia o filme. Inúmeras cenas são de tirar o fôlego de tão belas. O responsável por isso foi o renomado Serguei Urushevski. ” …the film belongs mainly to its cinematographer, the extraordinary Sergei Urusevsky (1908-1974), but I have no way of confirming this impression. ( Visionary Agitprop. Disponível em: Acesso: 18/09/2011)

O filme não foi bem quisto pelos cubanos, que não se identificaram com o que foi retratado, só depois de muitos anos, a produção pode ser redescoberta e admirada, infelizmente, fora de seu contexto. A verdade é que aquilo que deveria ser um espelho para a sociedade cubana, foi feito por olhos estrangeiros, o que acabou por tornar a obra um tanto ingênua e supérflua, no que tange a imagem do povo. No entanto, não se pode negar a importância desse clássico para o Cinema cubano e mundial que, com seu tom épico e a grandiloqüência de suas imagens ainda encanta a muitos.

"Silvia Prieto", por Olga Ferraz


O filme exibido numa sessão do cineclube Dissenso trás uma espécie de filme do meio de uma suposta trilogia de filmes do diretor argentino Martín Rejtman. Dentre seus principais filme podemos falar de também de Rapado e Los guantes Mágicos. Silvia Prieto é um filme importante para o cinema argentino, pois marca o início de uma nova era desse cinema, nos anos noventa. Trazendo um recorte da vida da protagonista, com várias cenas de humor meio bobo, e cotidiano banal o filme se constrói sobre alguns pilares.

Primeiro conhecemos a personagem e somos informados que ela está decidida a mudar seu estilo de vida. Vira garçonete, compra um canário e decide parar de fumar maconha. Um dia num café conhece um sujeito, que a paquera e lhe empresta um casaco para que não sinta frio, mas ela termina indo embora com ele. Muito fechada para ter um relacionamento, ela reluta em não deixar que um novo homem entre em sua vida, mas aos poucos ele ganha espaço e termina ficando com o tal casaco. Acontece que o ex-marido de Silvia conhece Brite, que é a ex-mulher do rapaz que ganhou o tal casaco.

Outro ponto chave na trama é quando Silvia descobre que existe outra mulher com o mesmo nome que o dela. Depois de alguns telefonemas truncados, elas marcam e se encontram numa espécie de café. Parece-me um pouco do conceito de Acaso utilizado neste momento (bem como no cruzamento dos antigos e novos casais formados), gerando uma história cômica e com rumos inesperados.

Com uma trama toda entrelaçada o direto conduz este recorte de uma vida corriqueira de maneira leve e engraçada. Mostrando um pouco da relação entre as pessoas e a cidade.