domingo, 30 de outubro de 2011

Maria Candelária, por Pedro Queiroz



A obra mais conhecida de Emilio Fernandez é um melodrama sobre o equivocado moralismo pós-revolucionário mexicano e a ignorância e primitivismo em que se escondem o preconceito, o ato de julgar. Um enaltecimento do povo indígena, como sendo o autêntico representante do povo mexicano, vítima da colonização branca. Maria Candelária é desde as primeiras cenas do filme, uma sofredora, isolada do resto da população graças ao azar de ter uma prostituta como mãe. O conservadorismo dos moradores da vila em que se passa o filme é deturpado, e ignora as boas intenções da índia em se integrar na população. Apesar de sem fundamento lógico, a opressão leva-a a viver à beira do rio, afastada dos acontecimentos e das pessoas daquele lugar pacato.

A imagem da Virgem Guadalupe é utilizada como uma metáfora para o sofrimento e ao mesmo tempo a divindade resguardada em Maria. Uma das primeiras cenas apresenta uma das índias do vilarejo arremessando pedras na casa da protagonista, e apedrejando a estátua da Virgem, fato que irá se repetir ao fim do filme, quando uma turba ensandecida apedreja a índia, numa cena que a coloca no posto de mártir da estória: a mais pura e doce representação do povo mexicano, morta cruelmente e sem motivos palpáveis (culpa de um mal entendido) pela parcela da população que cumpre o papel de vilã irracional durante todo o filme. Estão todos ali: as vizinhas fofoqueiras, o homem poderoso que arranca os últimos centavos de pobres endividados, além dos pacatos cidadãos contaminados pelo ódio.

Apenas dois ‘setores’ deste microuniverso estão do lado de Candelária: o homem que ama, e a igreja. O primeiro acaba preso por roubar remédios e um vestido para se casar com Maria. Já a Igreja ocupa um papel interessante no filme. Sintetizada na figura do padre, a instituição é uma espécie de conciliadora (se por um lado a moça é originária de um pecado, a culpa não reside nela, que não pediu para vir ao mundo desta maneira). Assim, a igreja se coloca em alguns momentos contra todos os outros habitantes, atenuando um pouco o ódio por estes sentido.

O que leva a protagonista à morte, de fato, é um acontecimento bastante confuso, que envolve a pessoa que narra os acontecimentos do filme, um pintor espanhol. Após muitas investidas sem resultados, o pintor consegue finalmente convencer Maria a ser pintada – tamanha necessidade de pintá-la explica-se justamente por ser ela a mais fiel representação do povo mexicano, algo que o pintor estava em constante procura. Ao terminar de pintar o rosto, o pintor não se contenta e pede para que a moça tire a roupa, para continuar a pintura. Ela naturalmente nega, achando isso uma afronta ao seu recato e virgindade, fugindo. No entanto, outra modelo se oferece por ter um corpo bastante parecido com o da original, e assim se espalha pela cidade a notícia infame de que Maria Candelária posou nua.

Analisando arquetipicamente o personagem da índia nativa e do pintor estrangeiro, notamos que o desespero da população em ter a moradora pintada surge, além de motivado pelo fato de isso ser uma afronta ao pudor e aos valores cristãos, por ser uma referencia à indignação de um povo que se vê entregue ao colonizador.
Como é notável no decorrer do texto, há sempre uma preocupação em se estruturar esse duplo significado nas coisas, e tudo atua desempenhado seu devido papel dentro da esquematização de conceitos que constituem os debates temáticos do filme (a questão da colonização, de uma moral deturpada por primitivismos e equívocos ideológicos, e de quem seria de fato o povo mexicano).

Simbologias e metáforas à parte, o filme utiliza-se de todas as ferramentas estruturados pelo melodrama de Hollywood, para tratar da cultura do México, país não muito tempo antes cenário de uma revolução político-cultural. Enquanto filme, se utiliza de formas feitas, de padrões narrativos americanos e terceiro mundistas que, se fizermos uma ligação com o texto Estética da Fome, de Glauber Rocha, são representantes do cinema exotista, que pretende esquematizar (e acaba por ridicularizar, simplificar toscamente) o que seria a contemporaneidade e o jeito de pensar e agir de um país inteiro. Se Maria Candelária é vangloriado e aclamado no mundo todo, é porque estereotipa uma cultura, mastigando-a para o público já familiarizado com esse tipo de sintetização do Terceiro Mundo. Além disso, na minha opinião, o filme peca em termos de complexidade enquanto obra fílmica, quando põe cada agente da narrativa em seu devido lugar, sem que haja uma exploração mais trabalhada da evolução narrativa da individualidade de cada personagem. Justiça seja feita, marca recorrente em termos de melodrama. Peca também como peça realista, quando se permite a cenas parecidas com a do clímax, em que o rapaz encarcerado (há dias) consegue arrombar as grades da prisão com a força do amor. Isso não me parece pitoresco, nem romântico.

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