sexta-feira, 30 de outubro de 2009

"O Pico dos Delírios (“El Topo” de Alejandro Jodorowski)" por Douglas Deó Ribeiro






Existem duas formas de fruir uma obra como “El topo”: ou se tenta racionalizar neuroticamente todos os potenciais símbolos deixados pelo autor, ou mergulha-se sensorial e oniricamente nas composições visuais e nos delírios narrativos. Ambas as formas tem suas vantagens e ossos; é uma questão de escolha.

Parece não haver muito sentido quando se tenta encontrar uma lógica – no sentido aristotélico do termo - no filme. Ele se propõe onírico, psicodélico, ilógico, corrente. É um western, mas o excesso de sangue, os símbolos cristãos, os personagens estranhos podem adquirir inúmeras interpretações na leitura de quem assiste.

Apesar dessa desorganização estrutural da narrativa, há muitas imagens de impacto bastante relevante, quer seja por uma profundidade de campo expressiva, quer por uma encenação em que um rigor aparentemente incompatível com a desorganização da história fica evidente.

Há duas observações importantes surgidas dessa dissociação forma-conteúdo: primeiro, numa proporção bastante exagerada, essa composição de aparência casual constitui um universo fílmico mais humano do que aqueles em que há um rigor excessivo no diálogo entre o discurso e sua forma – não significando que esta ou aquela maneira de trabalhar seja esteticamente superior. Em segundo lugar, uma dissociação intencional, em que há uma aparente ausência de conteúdo coerente, desloca o foco da obra para essa desconexão, como se houvesse um discurso acima do discurso imediato, como camadas de interpretação,

“El Topo” é um filme incômodo. Pode nausear um espectador comum – e muitos outros espectadores. Sua constituição, seus delírios apresentaram uma aceitação maior, talvez, por ocasião do seu lançamento porque havia um público cuja constituição ideológica era compatível com a liberação das amarras da lógica mental através do uso das drogas e de tantos outros recursos subversivos. Por isso, como a maioria – ou todas – as obras, o filme é melhor apreendido quando se pensa nele inserido em seu contexto.

"Água Caliente para Chocolate" por Evandro Mesquita


É um delicioso filme de Alfonso Arau sobre amor, tradições, paixão, comunicação e comida. A presença marcante do misticismo ao longo do filme vem regada à alegoria da comida. A estória acontece no início do século 20 no México. A protagonista, Tita é a última das três filhas que nasce com o destino marcado. De acordo com a tradição Mexicana, a última filha a nascer ficava proibida de casar para que ela pudesse cuidar da mãe em seu envelhecimento. Tita estava sempre na companhia de Nacha, a empregada da casa, e se torna a cozinheira da família. Quando desperta para a sexualidade, apaixona-se por Pedro, um menino formoso de uma fazenda vizinha. Elena, mãe de Tita, recusa-se a aceitar o casamento dos dois, mas oferece a mão de Rosaura, a filha mais velha. Pedro aceita e Tita sentindo-se traída vê seu mundo desabar, até o momento em que descobre que a verdadeira intenção de Pedro era ficar por perto.

Para aumentar sua tristeza, Elena lhe incumbe dos preparativos do casamento da irmã. Neste ponto, assistimos ao primeiro encontro do filme com o místico. Tita chora dentro da panela de preparar bolo e quando todos na festa comem um pedaço começam a chorar por um amor perdido.

Tudo o que se deseja é que Tita encontre sua felicidade com Pedro, mas isso não é o que acontece no final. Quanto à mãe Elena, desejamos que morresse estrangulada ou envenenada por Tita.

A história apresenta alguns elementos de “Cinderela”. Elena é tão fria e má quanto a madrasta e Rosaura trata Tita como uma escrava.

“Como Água Para Chocolate” é rica em simbolismo e metáforas: a comida sensual e seus ingredientes, a filha de Rosaura que se chama Esperança e o próprio título do filme. A água para chocolate refere-se à alta temperatura que a água tem de atingir para liquidificar o chocolate.

O filme também nos mostra a condição de subserviência mulher mexicana (ou latino-americana).

Quanto à estética, achei o ritmo do filme um pouco lento - até parece que o tempo não passa. O filme é um pouco escuro (escuridão das vidas ou porque a maioria das cenas é interna?).

O cinema latino americano, a partir do final dos anos 80 tem apresentado uma safra de novos cineastas que buscam uma proposta mais independente em relação ao cinema comercial de Hollywood ou o cinema de arte europeu. Arau, Walter Salles, e outros têm se firmado como realizadores que conseguiram unir arte e lucro conquistando um público sensível e exigente e dizendo que o cinema neste lado do mundo pode, sim, ter uma identidade própria.

"Machuca" por Luiz Marcos de Carvalho



O filme “Machuca” é uma co-produção Chile/Espanha/Inglaterra, dirigido pelo chileno Andrés Wood e ambientado no Chile em 1973, pouco antes da derrubada do governo socialista de Salvador Allende.

O filme retrata os acontecimentos do período, através do olhar de crianças, uma de classe média alta, Gonzalo (Matias Quer) e outros pobres moradores de barracos, Pedro Machuca (Ariel Mateluna) e suas famílias e revela traços biográficos do diretor.

Assim, o filme faz um paralelo entre a luta de classes que se desenrolava no plano macro político do Chile, com a situação individual dessas crianças e adolescentes.

Enquanto no plano político, o filme mostra as diversas tentativas do governo de instaurar uma situação mais justa, com uma diminuição das desigualdades entre ricos e miseráveis e as reações das elites e também o boicote insuflado pelas corporações internacionais, que viram seus interesses contrariados pela estatização de bancos e de empresas diversas, e principalmente das minas de cobre, no plano individual o filme mostra a repercussão desse quadro nas vidas desses jovens.

Os filhos das classes abastadas estudavam no melhor colégio, o St. George, dirigido pelo padre Mc. Enroe, um corpulento e vigoroso clérigo católico, que comungava com o ideário socialista e, que resolveu pô-las em prática, abrindo vagas gratuitas a vários alunos da comunidade carente que vivia nas proximidades do colégio.

Com isso o padre estava procurando diminuir a desigualdade social, criando uma ponte entre as classes e, também esperava estar seguindo a doutrina cristã, para a qual todos os seres humanos devem ser tratados como irmãos e filhos de Deus. Assim, o filme relata o destino simultâneo de duas utopias: o socialismo político e a doutrina cristã da fraternidade universal.

Tanto uma, como a outra, irão encontrar obstáculos instransponíveis: o socialismo, através da insurreição da burguesia que não iria abrir mão de seus privilégios e no plano individual, o reflexo desse ponto de vista se traduzia nos preconceitos dos colegas para com os “seus novos amigos”.

É possível superar esses obstáculos, esses preconceitos, profundamente arraigados na sociedade? É uma pergunta que está subjacente à narrativa fílmica. E, em ambos os casos, o filme mostra o que aconteceu: O malogro de ambas.

Inicialmente, entre os colegas Gonzalo e Machuca se desenvolve uma amizade verdadeira, que conduz a uma esperança de que as desigualdades pudessem ser superadas a partir dos indivíduos, principalmente das crianças, as quais ainda não estão definitivamente impregnadas do ódio entre classes, que vigora entre os adultos. Mas, tanto o contexto familiar como o político social, vão acabar por destruir essa iniciativa de convivência harmônica ensaiada por esses amigos que viviam em ambientes sociais tão diversos.

A situação política faz precipitar essa separação, com o acirramento dos ânimos de parte a parte, com as manifestações de rua dos defensores e dos opositores do governo de Allende. O resto é história (oficial) e assim prevaleceu mais uma vez o direito da força em detrimento da força do direito, sepultando, uma vez mais, a utopia de que um mundo melhor, mais igualitário, é possível.

Ainda que todas as utopias tenham fracassado desde o princípio, até nossos dias, isso não deve servir de motivo para que nós desistamos de alcançá-las, pois tal quadro seria ainda mais terrível do que o malogro das diversas tentativas até hoje efetivadas. O Homem não pode abandonar nunca seus sonhos de mais justiça e de mais igualdade, por mais longo e incerto que seja o caminho a ser percorrido. O Homem não pode desistir de lutar, como parece estar acontecendo hoje. Isso, sim, MACHUCA

"Um Shakespeare Latino-Americano" por Tiago Bacelar


Uma colher de sopa de tragédia shakespeariana, uma pitada de dramalhão mexicano e muita comida. É dessa mistura de culinária, romance proibido, história de época e guerra entre México e Estados Unidos, que saiu do forno, Como Água para Chocolate. Produzido em 1992, o divertidíssimo filme do mexicano Alfonso Arau tornou-se um dos primeiros reais sucessos de bilheteria latino-americano.

Toda a história do filme é guiada pela comida. A cebola, representando a lágrima, tempera o chororô sem fim, à melancolia e a tristeza dos personagens. Interpretações exageradas marcam a atuação dos atores. As rosas expressam o sangue como símbolo do romance, da paixão e atração sexual. O fósforo desvenda à alma, a alquimia, a pedra filosofal, à vontade e razão para viver.

A sopa cura a loucura, a insanidade, a perda da razão. A cozinha é a vida. Tita e Pedro encarnam a tragédia shakespeariana de Romeu e Julieta. Amor proibido, indo contra os costumes, rumo à morte trágica. Gertrudes seria uma espécie de Hilda Furacão, de boa família, larga a riqueza para viver num bordel e retorna triunfalmente como generala dos revolucionários mexicanos.

Rosaura é frágil como uma pluma. Mesmo se casando com Pedro e tendo uma filha chamada Esperanza, ela não consegue superar o fantasma da sua irmã Tita, verdadeira dona do coração de seu marido. A mãe representa uma mistura da clássica bruxa má das histórias infantis com a típica assombração dos filmes de terror.

Como Água para Chocolate é bem marcado historicamente, indo de 1895 até 1934, no casamento de Esperanza. A reconstrução de época é interessante, passando pelos cenários, figurinos, costumes e caracterização de personagens. As diferenças entre a família mexicana de Tita, conservadora, e a família americana do dentista, aberta e receptiva, é um bom exemplo do ótimo trabalho de concepção do filme.

O livro de culinária narra a história e o último plano visto é um enquadramento do livro se fechando da mesma forma que os desenhos animados de Walt Disney. São as somas de uma trama bem realizada, atores dedicados a proposta do filme e a intertextualidade de cinema e literatura, que tornaram Como Água para Chocolate num grande sucesso de público e bilheteria. Vale a pena ver de novo.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"Cinema argentino no século XXI" por Paula Riff




“O Pântano” (La Ciénaga) e o “Filho da Noiva” (Hijo de la Novia) representam a diversividade do cinema argentino, pois, apesar de terem muito em comum, constituem gêneros completamente diferentes. Ambos foram produzidos em 2001, na Argentina e sua temática aborda, em suma, as relações familiares. Entretanto, a ótica e a narrativa empregada mudam completamente a experiência adquirida de tal maneira que ao assistir a tais filmes tem-se a impressão de nada terem em comum.

O Filho da Noiva segue o modelo do típico cinema de gênero influenciado pela narrativa leve e linear das comédias norte-americanas. Tem seu personagem principal bem definido, Rafael Belvedere (Ricardo Darín), e o filme se desenrola a partir dos acontecimentos que ocorrem em torno dele, ou seja, conta a história de um homem que ao sofrer um ataque cardíaco revê seus valores familiares e tenta dar outro rumo a sua vida.

Os momentos de clímax do filme são claros, assim como os relacionamentos entre os personagens e os conceitos de família e de amor presentes na história. Para cada problema exposto, há uma resolução. Há começo, meio e fim bem delineados. No começo, há a apresentação dos personagens e das relações. Através de uma cena da infância de Rafael conhecemos seu amigo Juan Carlos (Eduardo Blanco) personagem importante na narrativa.

No meio do filme são apresentados os conflitos que o personagem terá que superar: a sua relação com sua mãe, Norma Belvedere (Norma Aleandro, atriz principal do também argentino “A história oficial”), com sua filha e com sua namorada. E no final há a resolução de todos os conflitos de maneira positiva. É um filme comum, divertido e que, apesar de todas as influências externas, não deixa de representar muito bem o cinema do seu país.

O outro exemplo de cinema Argentino destoa completamente das narrativas comuns. “O Pântano” é um filme tenso e inquietante. Sua temática não é bem definida assim como não são os personagens ou as relações que se formam entre eles. Há sempre a sugestão de algo que nunca é confirmado o que abre a oportunidade de diversas interpretações. As insinuações das relações incestuosas e homo afetivas incrementam ainda mais a ambiguidade do filme.

Não há um personagem principal. Sendo assim, a única coisa que une todos os personagens é o lugar onde a maioria dos eventos ocorre o que faz com que próprio local se transforme em um dos personagens da narrativa, ao qual se refere o título do filme.

Não há a elaboração de qualquer curva dramática ou clímax quer seja no início ou no fim da narrativa, o que reforça a impressão de estagnação dos personagens que não conseguem sair da fazenda, exemplificado pela tentativa frustrada de uma das personagens de ir para a Bolívia. Tal estagnação é simbolicamente tratada pela imagem da vaca submersa na lama.

O excesso de personagens em quadro que faz parte da mise-en-scène criada pela diretora Lucrecia Martel impõe ao expectador a permanente sensação de sufocamento. Um dos temas muito interessante abordado no filme é o da condenação ao legado familiar o qual fica claro na oposição da primeira e a última cena que revelam a repetição das ações ou inações dos personagens velhos, pelas personagens jovens que terminam o filme sentadas na borda da piscina, como se estivessem condenadas a ter o mesmo destino de seus ascendentes. Tal tema ainda é explorado no medo que é demonstrado pela matriarca Mecha (Graciela Borges) que temia ficar presa em sua cama até o fim da vida como acontecera a sua mãe.

“O Pântano” é uma espécie de drama psicológico, subjetivo, cheio de ambigüidades, simbolismos, personagens complexos e relações instáveis, e um excelente exemplo de cinema argentino e de cinema autoral.

O filme “O Pântano” de fato propõe estilo diverso do cinema argentino que “O Filho da Noiva” representa, mas diferente do que muitos acreditam, eles não se opõem. Não há qualquer impossibilidade de apreciar os dois gêneros e se sentir satisfeito e orgulhoso com o crescimento e aprimoramento do que alguns chamam de Novo Cinema Argentino e consequentemente do Cinema Latino-Americano, cada qual com produções competentes para cada intenção proposta: divertir e surpreender.

"Gravando na memória" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Que tipo de necessidades levam um homem a preocupar-se com o registro de suas memórias? Há quem imagine que o pouco tempo de uma vida seja motivo suficiente para que uma pessoa deixe para a posteridade suas impressões, talvez pelo medo de um fim repentino. As lembranças parecem compor uma espécie de nuvem de coisas importantes e sem importância em constante fuga e que se encaminham para este destino tão certo quanto aparentemente próximo. Como somos sábios... para que deixar na memória o que pode estar fisicamente gravado? A máquina de escrever é o ponto de partida do personagem Sergio para registrar suas Memórias do Subdesenvolvimento [CUB, 1968]. Dirigido por Tomás Gutiérrez Alea, a produção cinematográfica cubana, baseada no livro homônimo de Edmundo Desnoes, coloca questionamentos relacionados à situação do país após a revolução de 1959.

Era uma vez Sergio Corrieri, um homem de 38 anos, burguês ex-dono de um negócio de móveis, que vivia com a falta de grandes preocupações de seu mundinho isolado e com uma esposa que, por sua vez, se empenhava em torrar parte da renda do marido em sua paradisíaca ilha tropical européia. Após a revolução, quando todos os seus companheiros de classe, inclusive mulher e família, decidem ir embora da ilha, Sergio fica, para ver como serão as coisas. E assim resolve registrar o que lhe parece algo digno de importância. Porém, diferente do que falei anteriormente, é o excesso de tempo que o impele a refletir sobre sua situação e ocupar seu vazio existencial.

Como em um diário pessoal, o protagonista tece impressões sobre o contexto da Cuba pós-revolucionária. No primeiro momento Sergio em sua situação de abandono parece não se incomodar. Recorre a aparelhos tecnológicos, gravador, telescópio, para refletir e observar a realidade. Logo se sente entediado. Com isso passa a um olhar mais direto e crítico, saindo e vendo com os próprios olhos o momento em que vive. E sua análise da realidade parece cada vez mais confusa. Então passa aos diversos questionamentos que são colocados pelo filme. A própria decadência de sua individualidade é cercada pelo que chama indiferentemente de subdesenvolvimento. Na provinciana capital Havana ou nas pessoas com quem passa a conviver, distantes do seu ideal de modernidade européia; ou na sociedade em que vive, no cinema [com a autorreferência ao ICAIC, produtor do filme], na arte clássica [seu ideal de beleza, que o diga a Vênus de Milo]. Cada vez mais o personagem sente-se incomodado com tudo aquilo que o cerca, principalmente quando se dá conta da própria mediocridade de indivíduo deslocado em uma ilha pessoal constantemente invadida pela conscientização do ser subdesenvolvimento que também é, e que toma conta de seus pensamentos até sufocá-lo por completo.

É dessa maneira que o diretor nos leva ao contexto cubano. A partir do personagem Sergio, Alea se mostra como um cronista de seu tempo, sua necessidade consiste em criticar as contradições e a arrogância do homem burguês, mas também refletir sobre os rumos que o país seguia com a burocratização do Estado cubano. Sua lucidez difere da maneira confusa com que o protagonista enxerga a realidade, embora ainda pareça que a posição do diretor ficou dispersa naquela nuvem de coisas importantes e sem importância... Misturando referências do neo-realismo italiano com aspectos formais da nouvelle vague, realiza um filme autoral, uma registro da sociedade cubana sob uma ótica de imparcialidade que se apresenta como verossímil.

Vale a ousadia de seu cinema, não tão simples de ser digerido, até mesmo pela duplicidade que coloca neste filme, entre o documental e o ficcional. No entanto, Alea parece não temer um fim repentino para seus questionamentos e fica a impressão de que Memórias do Subdesenvolvimento não tem tanto um desfecho sólido enquanto registro histórico como o tem enquanto registro cinematográfico. Talvez por isso haja novas necessidades de novos filmes para novas memórias, inclusive de outros contextos. E por que o cinema como ponto de partida? Seria uma suposta falta de tempo ou o excesso do mesmo? Como somos práticos...

"Em busca de memórias 2" por Nilson Braga de Almeida



Os bons professores que ministravam a disciplina de história, ainda na minha época de escola, já alertavam os alunos sobre o certo distanciamento com que deveriam observar as informações registradas nos livros. Esse olhar crítico, na opinião deles, seria fundamental na construção de um cidadão pensante e transformador, que não crê em tudo que ouve e vê, mas que averigua com esmero cada situação a seu redor.

E, em se tratando de nossa pátria-mãe, lembro-me bem que essa atenção deveria ser redobrada. Como fazemos parte de um povo dominado desde a suposta descoberta de nossas terras por Pedro Álvares Cabral, no ano de 1500, as chances de haver divergências entre o que é ensinado em larga escala à população e o que de fato ocorreu e está ocorrendo é bem maior do que nos países desenvolvidos, pois inúmeros são os interesses sociais, políticos e econômicos ambicionados por estes sobre nossas nações e que estão escondidos atrás de coisas aparentemente comuns.

Adentrando agora apenas no aspecto nacional, local, chegamos à conclusão de que pouca coisa é diferente dessa situação. Os governos que passaram por aqui, sejam democráticos ou ditatoriais, liberais ou autoritários, sempre tentaram guardar e revelar apenas o que querem, apenas o que vai ser vantajoso e que lhes trarão benesses. O importante é noticiar aquilo que vai gerar ganhos. Tudo é visto com interesse.

Parando um pouco para pensar melhor na história contada nos países que fazem fronteira com o Brasil e, comparando-as com a daqui, observamos que não há nada de tão diferente. A América Latina sofre desse mesmo mal. Se olharmos, por exemplo, para nossos vizinhos argentinos, constataremos que a história dos livros também é essa: obscura, tendenciosa e parcial. E é exatamente esse complexo tema que o diretor portenho Luis Puenzo explora no filme A História Oficial (1985). Afinal, o que é verdade e o que é mentira nos livros didáticos? E na imprensa? Quanto de hipocrisia e falsidade chega até nós?

Não precisa demorar muito para ver que o longa poderia promover calorosos debates, com diálogos ácidos no decorrer da película. Mas, ao invés de penetrar a fundo nos questionamentos que surgem em determinados momentos – como nas cenas gravadas na sala de aula, assim como naquelas protagonizadas por uma personagem recém-chegada do exílio e, que passou, inclusive, por sessões de tortura, fazendo a partir daí florescer sérias discussões político-sociais – o cineasta preferiu dar ênfase a uma trama paralela onde predomina o lado pessoal dos personagens, seus dramas familiares.

A História Oficial ficou muito distante do rol das grandes obras cinematográficas, fazendo com que o espectador fique sempre esperando algo mais que o filme poderia proporcionar. Não deixa de ser relevante como resgate de um momento histórico nacional e, por que não, latino-americano. Porém, não empolga como deveria, chegando a ser apenas razoável em se tratando de cinema. O que valeu mesmo? A intenção de pôr o dedo na ferida.

"O filho da noiva" por Yanna Luz


O Cinema argentino tem passado por uma revigoração desde a década de noventa, apesar da forte crise econômica atravessada pelo país. Os Filmes, por terem recentemente atestado um salto de qualidade técnica e de linguagem na produção nacional, proporciaram o lançamento internacional de nomes como Lucrecia Martel, Daniel Burman, Marcelo Piñero e Pablo Trapero. Nessa fase da produção da Argentina tem sido notável a predileção pela exposição intensa da crise da classe média do país, transpondo à tela com freqüência as dificuldades e frustrações de tal estrato social, funcionando, portanto, como uma espécie de antropofagia dos tempos recentes.

É também nesse contexto, e explicitamente, que encontramos ‘O filho da Noiva’, de Juan José Campanella. Com ritmo narrativo envolvente e roteiro bem estruturado, o filme conta a história, pincelada em tons atuais, de Rafael, ocupadíssimo dono de restaurante, que vive engolido pelo seu cotidiano estressante. Argentino de meia-idade, sem tempo para a filha, em conflito com a ex-esposa, com pouco tempo pros amigos, namorada, pai, e mãe, que não visitava no asilo há quase um ano. Como seria de suspeitar, toda essa correria deságua em um problema cardíaco que fará Rafael repensar o modo como leva sua vida, e reestruturar, especialmente, seus laços afetivos, o modo como lidava com as outras pessoas e consigo mesmo. Ao longo da exposição de tal tentativa de recomeço, o filme se encarrega de nos apresentar situações antes não imaginadas, que deslizam facilmente do emocionante para o engraçado.

É fato que o espectador não deve esperar do filme inovações estéticas ou estilísticas relevantes na condução da narrativa. Talvez aguardar apenas boas atuações, um roteiro bem amarrado e alguns diálogos bem feitos seja o ideal para não se desapontar. No filme não existe a vontade de revolucionar o cinema atual, nem de definir um formato sobre o qual o cinema latino americano deva se moldar, um padrão que deva seguir. Por outro lado, se prevenindo de tais aspirações, inicialmente bastante pretensiosas, o filme evitou um possível afundamento diante do público, apresentando tema de interesse geral, com firme identidade: o suficiente para arrebatar grandes platéias e faturar, inclusive, indicação ao Oscar, se definindo, por fim, como um bom alicerce, se não narrativo, no mínimo, financeiro e técnico para a cinematografia argentina. Interessante, sim. Mas é incerto se imperdível...

"De ditaduras a outras" por Annyela Rocha


Em seu documentário de 2007, SiCKO, Michael Moore entrevista alguns franceses sobre o sistema de saúde no país. Enquanto nos Estados Unidos pagam-se altos preços para as seguradoras de saúde e se tem um mau atendimento hospitalar, na França os serviços médicos são universais, gratuitos e de boa qualidade. Uma francesa fala, então, para Michael: “Lá, o povo tem medo do governo. Aqui, o governo tem medo do povo”.

Por diferentes motivos e em proporções distintas, isso também se aplica á situação política do Brasil e de outros países próximos. Os jovens de hoje em dia (e eu tenho que me incluir nesse quadro) não viveram a ditadura, não foram perseguidos por militares nem sofreram com isso. Mas o trauma causado ao país entre as décadas de 1960 e 1980 ainda persiste. A exemplo disso, temos o projeto recente Memórias Reveladas, coordenado pelo Arquivo Nacional, da Casa Civil da Presidência da República, e destinado a apurar informações sobre o período da ditadura brasileira. Os comerciais veiculados referentes ao Memórias Reveladas trazem a constatação de que ainda há vários desaparecidos políticos no país. O projeto pede por arquivos, informações, documentos que os ajudem a encontrar essas pessoas e deixam claro que a identidade do informante não será revelada.

Ou seja, de uma forma ou de outra, é verdade que por aqui ainda persiste esse medo do governo, medo de ir à luta pelos direitos. Como alternativa para superar os receios, a história é divulgada a fim de ser debatida, compreendida e servir de exemplo para novos ânimos, novas formas de ver o mundo e se pensar política. E é dessa forma que surgem, na literatura, livros como Clamor - a vitória de uma conspiração brasileira (Ed. Objetiva, 2003), do jornalista pernambucano Samarone Lima, e, no cinema, filmes como O ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburguer, 2006) e o filme chileno Machuca (Andrés Wood, 2004).

Os dois filmes citados tratam da conflituosa época de ditadura em seus respectivos países através do olhar infantil. Infantil por assim dizer, porque os dois têm como protagonistas os infantes, mas nenhum deles possui um conteúdo leve foi ou feito para crianças. Torna-se interessante então, falar aqui de Machuca, não porque ele é melhor, mas porque mostra uma situação histórica menos conhecida pelos brasileiros (se hoje poucos sabem as diferenças entre Geisel e Médici imagine quantos são os que entendem de fato quem foi Pinochet).

Andrés Wood escolheu como linha narrativa a amizade entre dois garotos, Gonzalo Infante (Matias Quer) e Pedro Machuca (Ariel Mateluna). Gonzalo é branco, bem alimentado, tem uma boa casa num bairro de classe média e veste roupas boas. Machuca é moreno, magro, de ascendência indígena e mora num povoado ilegal, o que para nós é a favela. A amizade só se torna possível devido ao projeto de integração numa escola católica britânica, a Saint George’s College, encabeçado pelo diretor Padre McEnroe.

Ambientado em Santiago, no ano de 1973, o filme mostra personagens bem acentuados, quase estereotipados: o rico, o pobre, o bom samaritano, os burgueses de caráter fraco. Até certa altura da narrativa, Salvador Allende ainda está no poder. Apesar da premissa socialista, os grupos vivem do contraste e persistem separatistas. A amizade entre os meninos causa incômodo nos que veem.

Infante e Machuca mostram a verdade de que é possível conviver com as diferenças. É inevitável, no entanto, não perceber o olhar de Wood. Enquanto Infante só pode mostrar frivolidades do mundo dele, Machuca tem virtudes e aprendizados concretos a serem mostrados para o amigo. Aparece ainda mais uma personagem, Silvana, bem interpretada por Manuela Martelli. Além de descobrir as diferenças de classes, Gonzalo também começa a sentir as evidências de ser adolescente, ficando atraído pela menina, muito mais esperta que ele e visivelmente esquerdista.

No entanto, a relação criada entre as identidades culturais divergentes entra em crise quando Augusto Pinochet dá o golpe militar e instaura o seu governo conservador. O Padre McEnroe é reprimido, a menina Silvana, assassinada, e a favela onde Machuca mora, atacada, durante uma visita de Infante ao lugar. Numa atitude egoísta, talvez para representar que afinal de contas Gonzalo é mesmo só um burguês, o menino consegue se livrar do soldado que o ameaça e vai embora, deixando tudo para trás. De qualquer forma, não havia nada que pudesse fazer naquela situação além de cuidar de si mesmo.

Assim, o falso abraço entre as posições sociais assimétricas é desfeito. No fim, Gonzalo se muda. Mostra assim, como a família do menino fica alheia à violência praticada pelo governo. Pior, com o totalitarismo, eles parecem obter melhores condições de vida.

Mesmo que tenha um desenho estereotipado, a câmera discreta de Andrés Wood e a estória comovente atraem o espectador. Machuca atende às expectativas da narrativa clássica, tendo fácil entendimento apesar de possuir uma temática pesada. Pode levar o público a refletir, incitar debates, ou não. Porém vale a intenção de trazer a temida realidade às telas sem medo de destrinchar, sentir ou combatê-la. Instigante iniciativa e recomendável para entender um pouco da realidade de um país que, mesmo não encostando as fronteiras com as nossas, tem um histórico tão pesado como o daqui.

"Iracema, meu amor" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Não bastasse o título, no mínimo provocativo, o filme ainda tem como protagonista uma indiazinha menor de idade que se torna prostituta em Belém, após uma festa religiosa. Assim, direto. Isso no Brasil de 1974, em plena ditadura militar, rendeu à produção Brasil / Alemanha / França uma proibição oficial por alguns anos... Liberado em 1981, Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodansky e Orlando Senna é um valioso retrato das contradições que o grandioso projeto desenvolvimentista militar da época apresentava, porém condenadas ao silêncio e à “colaboração” popular. Diante de numerosas interrogações até mesmo sobre sua nacionalidade, Iracema foi chamada de estrangeira, e por isso extraditada para seu lugar de origem, a Europa, onde foi premiada em diversos festivais.

Diferentemente da heroína de mesmo nome no romance do século XIX, esta Iracema [Edna de Cássia] é representada de uma maneira totalmente oposta. A jovem inocente que viaja de barco com a família para a festa do Círio de Nazaré, rapidamente se converte em prostituta e fica em Belém, mostrando desenvoltura ao caminhar pela cidade grande. Encontra o caminhoneiro Tião Brasil Grande [Paulo César Pereio] em um cabaré e com ele pega carona Brasil adentro, observando as diversas realidades das variadas pessoas com quem se esbarra pelo caminho. Iracema se perde no Brasil Grande. O personagem de Pereio é um homem comum, desacreditado do presente e esperançoso do futuro. Contraditório? Tião é uma alegoria do brasileiro, tem fé no país e sua força, se mostra iludido com o ideal de progresso propagado com a construção da Estrada Transamazônica. No entanto, Pereio / Tião é como um agente provocador nas diversas conversas / entrevistas com os habitantes da região.

Essa interpelação de pessoas comuns caracteriza a forma mista documental / ficção de Iracema, que começa pelo rio como um boat-movie documentário para depois chegar a Belém e se definir como ficção-documental. A dupla de diretores, um bom roteirista [Senna] e um bom fotógrafo [Bodansky], aliada à competente equipe técnica [o som em especial], conseguiu fazer desta película um importante documento sobre a época, além do mérito de uma obra de grande qualidade artística. O olhar e a interrogação direta com os habitantes gerou uma experiência de contato com uma região pouco representada, onde não há lei ou ordem, onde a maioria está igualmente perdida à própria sorte em um espaço – natureza mãe – hostil e hostilizado. A presença estrangeira está começando a ocupar a terra que “ninguém” ocupa.

Iracema e Tião percorrem o Brasil Grande e rico, pelos tortuosos caminhos de exploração, queimadas, prostituição e miséria dos habitantes da região. No pára-choque do caminhão: “Do Destino Ninguém Foge”; No pára-brisa: “Brasil Ame-o Ou Deixe-o”. Assim, essa viagem Transa Amazônica propõs um nome mais adequado àquela situação, onde um projeto tão mirabolante quanto predatório buscava “unificar” o país. E, como sabemos, a estrada Transamazônica continua na mesma.

Ser assim tão direto, na provocação do texto e na fotografia de um plano de queimada semelhante à bandeira do país, custou ao filme brasileiro Iracema um período clandestino só finalizado com o processo de reabertura política. Neste período a brasileira Iracema / Edna de Cássia deixava de lado o sonho de ser atriz. Também em 1981, foi encontrada por um programa de auditório. Edna Cereja, seu verdadeiro nome, então com 21 anos, contou sua vida como lavadeira em um cortiço de madeira em Belém, com seu filho de 3 anos. Para o filme e para a protagonista foi um grande risco fazer Iracema – Uma Transa Amazônica. E o sonho de ser atriz da brasileira Edna esbarrou na realidade que ela própria representou.

"Em busca de memórias" por Nilson Braga de Almeida


Sergio (Sergio Corrieri) é um homem que ficou no meio do caminho, entre ser a favor ou contra uma revolução. Ele apenas a assiste, como um mero observador privilegiado. Desiludido com os rumos que seu país tomou. Melancólico com as atitudes superficiais tomadas por sua sociedade. Sozinho. Refletindo e indagando sobre o porquê de tudo aquilo.

Ele é quem protagoniza Memórias do Subdesenvolvimento (1968). E é sob o seu ponto de vista que o diretor Tomás Gutiérrez Alea faz surgir no espectador, independente de sua nacionalidade, uma urgente necessidade de se alcançar uma autonomia, uma identificação na América Latina daquela época, a partir de uma Cuba envolvida em profundas mudanças.

O filme reflete essa tentativa de se conquistar de fato uma independência que, não por acaso, é uma aspiração constante das nações que foram colonizadas e submetidas à onda imperialista mundial. A viagem psicológica que vemos no personagem principal indica exatamente isso: ele está perdido, sem rumo, à procura de algo, querendo conhecer a si e aos seus conterrâneos, indagando sobre o futuro que o aguarda. Ele é o espelho de um povo isolado numa ilha, que questiona e tenta entender aquilo que se passa em seu território e no mundo.

O que vemos na tela é uma mistura de ficção e documentário que não confunde nem desestimula o espectador a acompanhar a narrativa. Ao contrário. O conquista e o envolve pela sutileza e habilidade com que as imagens são exibidas, mesmo sem conseguirmos identificar, por algumas vezes, se determinada cena gravada foi encenada ou fielmente captada do cotidiano de Cuba.

Essa aproximação com o real é fundamental para criar no espectador uma sensação de fidelidade ao contexto e aos fatos da época. As imagens de uma Havana se reerguendo e de pessoas que realmente participaram da revolução cumprem um papel de dar ainda mais veracidade à trama, interagindo com a narração em off de Jorge e servindo de cenário para seus relacionamentos amorosos.

A obra consegue adentrar na Revolução Cubana de um modo crítico – diferentemente de Eisenstein e outros diretores russos em relação à Revolução Socialista da antiga URSS –, mostrando um país transformado e, ao mesmo tempo, estático, no sentido de sua incapacidade de evoluir. Sua qualidade enquanto clássico do cinema mundial também está na construção eficiente de um limiar entre o verdadeiro e o imaginário que direciona o espectador a pensar no seu papel de cidadão ativo, seja numa comunidade, na sociedade à qual esteja inserido, ou na construção de seu país.

O resultado da película seria bem inferior se simplesmente houvesse a apresentação de fatos históricos decisivos para a revolta, como a ofensiva contra Sierra Maestra, a vida de Fidel, de Che Guevara, dentre outros. Ao invés disso, o foco está no povo. Isto sim é relevante: demonstrar as fortes transformações sociais às quais qualquer país está sujeito e como isso repercute sobre sua população.

Memórias do Subdesenvolvimento é daqueles filmes que marcam principalmente pelo fato de o cineasta conseguir tomar um acontecimento ocorrido em Cuba, sem ficar apenas restrito a ele, captando uma situação de medo e euforia, angústia e luta, dor e saudade, que não se perdem no vazio do tempo nem se delimitam no espaço, que servem para todo os povos que constituem uma nação no mundo.

domingo, 25 de outubro de 2009

"O pântano" por Rayssa Costa


Filme de estréia da diretora Lucrecia Martel, o longa-metragem O Pântano conta uma historia irritantemente linear. O enredo se passa na cidade de La Cienaga, conhecida pelas extensões de terra alagadas com as chuvas repentinas e fortes, formando pântanos que são armadilhas para os animais da região. Perto dessa cidade fica o povoado de Rey Muerto, no qual está localizado o sítio La Mandrágora. Para ele vão duas famílias, lideradas por Mecha e Tali. Mecha é uma mulher em torno de 50 anos, que tem 4 filhos e um marido que procura ignorar bebendo cada vez mais. Já Tali é prima de Mecha e também tem 4 filhos, mas ao contrário da outra, ama seu marido e sua família. Em meio a um verão infernal, as duas famílias entram em conflitos constantes e tratam seus dilemas de uma forma um tanto igual.

De maneira deveras entediante, o filme se desenvolve lentamente e trata dos aspectos da descoberta e da tentativa de resolução de problemas. Entretanto, penso que nenhum problema foi resolvido para aquelas duas famílias e nenhuma descoberta foi suficientemente boa o bastante para alguém sair daquele caos. Por lidarem com todas as situações de forma igual, aquelas pessoas acabam se afundando mais ainda em seus dramas pessoais, o que transforma aquilo que está sendo assistido em algo parado, complexo e verdadeiramente assustador do ponto de vista interno. Não se trata uma morte do mesmo jeito que se lida com alcoolismo. Situações diferentes, sentimentos diferentes. Isso era o que deverei ocorrer.

Embora a forma como se desenrola o enredo tenha deixado a desejar, não nego a importância de algumas coisas observadas por mim no filme. A até então estreante diretora Lucrecia Martel conseguiu fazer um trabalho incrível no que diz respeito à captação de detalhes. As ações parecem estar decompostas em suas vertentes espaços-temporais de forma intensa, extrema e peculiarmente pensada. Planos coloridos, câmera na mão, profundidade de plano, efeitos de luz, cortes não usuais misturados com clássicos planos fixos: esse é o verdadeiro tom que dá beleza ao filme.

Embora os problemas não sejam tratados e resolvidos de forma concreta pelos personagens do longa-metragem, os pormenores fazem desempenham brilhantemente esse papel. É a particularidade cênica que responde as minhas perguntas, elas mostram o verdadeiro sentimento do personagem. Então, por esse fato, o filme torna-se algo bom para se ver.

"Um filme na iminência" por Annyela Rocha



Sobre o que fala o filme O Pântano, de Lucrécia Martel? Relações familiares, conflitos sociais, preconceito? Sobre tudo isso, quem sabe. Ou até sobre nada. Nas linhas gerais, é o retrato de uma família argentina pouco estruturada.

Duas famílias vão passar uma temporada num sítio onde se plantam pimentões. A família que possui a casa é liderada por Mecha. Logo de início, ela sofre um acidente banal, consequência de um alto nível de embriaguez. O marido, além de não se importar muito, está também bêbado demais para socorrê-la. As filhas a levam para o hospital.

A confusão familiar é um tema recorrente. O marido de Mecha teve um caso com uma amiga dela, Mercedes. Agora quem tem um affair com a mesma Mercedes é o filho do casal, José. A filha mais nova, Momi, tem uma amizade peculiar com a empregada da família, Isabel, uma indígena. A prima de Mecha, Tali, é divorciada e cuida euforicamente dos seus quatro filhos.

Os personagens estão sempre desestabilizados, em crise. Quando não são estressados, são alheios ao que acontece ao redor: ou alienados por escolha própria ou inocentes no meio de tudo (este último é o caso das crianças). E é impossível não perceber o descontrole de todos eles: diálogos banais em cenários apertados e a câmera quase tocando nos atores. Aliás, tudo quase se toca em O Pântano, das temáticas abordadas aos elementos da mise-en-scène.

Além do incômodo causado pelas recorrentes discussões, outro fator pode perturbar um pouco o espectador – há uma completa falta de higiene no filme. Momi usa o mesmo maiô durante toda a narrativa. Um dos filhos de Tali corta a perna e vai lavá-la na pia da cozinha. O filtro e a bomba da piscina estão com defeito, deixando a água completamente suja. Percebe-se, assim, a não-aleatoriedade da escolha de tempo e espaço feita por Martel. A diretora toma parte de um ambiente causador de preguiça, numa época do ano na qual tudo que aflora é o marasmo.

Além da tal sujeira, há no longa uma presença do sangue. Esse elemento dá conta de intensificar, ao mesmo tempo, a presença da vida e a iminência de morte. Permanece sempre no ar uma sensação de tragédia. Os personagens têm uma tendência pessimista de sugerir o trágico em vários momentos, ao exemplo de uma viagem à Bolívia que Tali faria com a prima, mas deixa de lado por medo de dirigir pelo percurso.

Lucrécia trabalha ainda com o anticlímax. Durante a projeção nada especial ou muito marcante acontece. As cenas sempre determinam uma tensão de que algo grande vai ocorrer: parentes se olham com um desejo aparentemente sexual, crianças brincam com armas. No entanto, quando algo com forte potencial narrativo surge, não há alarde nem intensificação da linha dramática. Resta apenas a fuga: o filme acaba.
Dessa forma, é tudo sobre o cotidiano. Uma família problemática como qualquer outra pode ser. O nada vivido por personagens bizarros, mas ao mesmo tempo reais. O carinho fraternal pouco aparece. Ficam mais evidentes os conflitos, as brigas, que fazem o espectador se sentir dentro da discussão, mas sem o direito de voz. Com uma excelente construção de personagens, a diretora consegue abordar todos os problemas familiares e sociais possíveis. No fim das contas, O Pântano é uma construção propositalmente instável de Martel. Um castelo de cartas – prestes a ser soprado.

"Machuca" por Rayssa Costa


Utilizando como base os acontecimentos antecedentes ao golpe militar chileno, o diretor Andrés Wood mistura ficção e realidade para contar a comovente história de amizade entre dois meninos separados pelas diferenças sociais no Chile dos anos 70.
Entre os anos 1970 e 1973, o Chile viveu um dos períodos mais conturbados de sua atual história. Salvador Allende, o primeiro governante de ideais marxistas a conduzir o país, tentou colocar em prática um regime socialista. No entanto, foi pressionado pela extrema direita, que, com o apoio dos Estados Unidos, desejava sua renúncia. No governo, Allende praticou medidas que deixaram a parcela dominante daquele país em profundo estado de desagrado.

A partir dos fatos citados, Andrés Wood mostra ao mundo a narrativa dos meninos Machuca e Gonzalo. Gonzalo Infante e Pedro Machuca são dois garotos de 11 anos que vivem em Santiago. O primeiro, numa bela casa situada num bairro de classe média. O segundo, num humilde povoado ilegal instalado a poucos metros de distância da escola. Dois mundos separados por uma muralha invisível que alguns sonham em derrubar na intenção de construir uma sociedade mais justa.

Um exemplo de cidadão que luta pela igualdade entre as pessoas, é o padre McEnroe, o diretor do até então tradicional colégio Saint Patrick, instituição na qual Gonzalo estuda. Em meio à política comunista instalada por Salvador Allende no país, o diretor decide fazer uma integração entre tais universos, decide então abrir as portas do colégio para os filhos das famílias do povoado. É assim que Pedro Machuca vai parar na mesma sala de Gonzalo, ponto de partida para uma amizade cheia de descobertas e surpresas, a qual acontece paralelamente ao clima de enfrentamento que vive a sociedade chilena na violenta transição de Allende para Pinochet.

As aproximações e distanciamentos que advêm a partir da diferença de classe dos meninos compõem a chave da bela e incrível trama. Rejeitado pela maioria dos meninos, Machuca vê em Gonzalo um companheiro pouco preocupado com a diferença social que os separa. Do mesmo modo, Gonzalo, um menino solitário e que testemunha as traições da própria mãe, encontra no carinho de Machuca o alento para sua desventura.

Ao som de uma suave trilha sonora, Machuca e seu mais novo amigo descobrem juntos o sentimento de liberdade em um país sitiado. Gonzalo Infante carrega Machuca para todo lugar e lhe apresenta tudo aquilo que o dinheiro pode comprar e que o companheiro pobre certamente não teria acesso. Por sua vez, Machuca mostra ao colega todo o companheirismo e a dedicação que, diferentemente dos bens materiais, o dinheiro não é capaz de dar. Na favela, além da fidelidade de Machuca, o menino rico encontra o “primeiro amor”. Silvana é uma garota politizada que no primeiro momento debocha Gonzalo, mas aos poucos vai cedendo e acaba apresentando ao garoto a mais um mundo de sentimentos que ele não conhecia.

A inocência dos garotos frente às disparidades sociais do país toca o espectador. Os meninos estão alheios às disputas políticas, eles só sabem o que sentem. E é por isso que esse longa-metragem não caiu no clichê em hora nenhuma, o sentimento é traduzido de forma brilhante e simples. Juntamente ao que se sente, há a legitimação do momento político vivido. O cineasta consegue passar toda angustia dos chilenos que viveram os conflitos sociais na década de 70 através do olhar inocente de Pedro Machuca. É um belo filme.

"As histórias oficiais" por Douglas Deó



O filme de Luiz Puenzo não é exatamente um filme da dúvida. Apesar de vermos claramente a protagonista, Alícia, imersa em seus questionamentos sobre a origem de sua filha adotada, os recursos utilizados no desenvolvimento da história traçam um paralelo com os acontecimentos políticos do país e induzem o espectador a crer na hipótese da personagem.

Por isso o filme pode ser definido como um claro paralelo entre a história da Argentina e a de uma professora que não conhece a origem de sua filha. Ambas as histórias tem sua versão oficial, mas existe algo por trás dessas versões aparentes. O microcosmo familiar funciona, então, como representação do macrocosmo do país, além de estar profundamente ligado aos acontecimentos políticos retratados.

A evolução da heroína se dá, portanto, através da descoberta – mais dedutiva que factual – de que a criança que seu esposo trouxe parta criar foi vítima dos absurdos praticados pelo governo – este desaparecia com seus presos políticos e dava destinos incertos aos filhos nascidos durante a prisão.

A narrativa desenvolve a personagem de Alícia num diálogo entre os dois universos – que não são isolados um do outro – citados acima: inicialmente a postura dela em relação à história recente da Argentina parece distante e fria; ela questiona as afirmações de seus alunos sobre histórias da ditadura exigindo uma fundamentação literal para que se possa crer no que se diz - o universo da sala de aula é um espaço ficcional emblemático, pois desafia a personagem a rever sua postura impassível diante de fatos cruéis próximos a ponto de atingir uma de suas grandes amigas.

Paulatinamente, Puenzo oferece diversas pistas daquilo que quer dizer, levando seus espectadores a sentirem-se tão incomodados quanto a protagonista em relação à história. O marido esquiva-se incomodamente da simples pergunta sobre a família de sangue da criança; o padre nega-se a revelar o que parece saber sobre a história, mantendo-se tão distante de Alícia quanto a encenação da sua sequencia mostra – interpondo a grade do confessionário entre os dois personagens. O próprio sogro de Alícia serve como arauto de seus questionamentos quando, na sequencia do café da manha declara suas suspeitas em relação ao filho – de que este está rico enquanto o país todo está na lama - essa sequencia termina com um plano de forte impacto plástico em que os cinco personagens do diálogo são enquadrados olhando para diferentes lugares, como se estivesse alheios e isolados uns dos outros.

O filme ainda instila no espectador, de maneira menos direta, a certeza de que a origem de Gaby está nos funestos atos do governo argentino através da própria personagem da criança quando esta canta, repetitivamente, que “no país do não me lembro/ dou três passos e me esqueço”, numa alusão à ‘curta memória’ de quem diz esquecer os fatos de uma história tão próxima ao tempo narrativo. Não seria uma referência ainda mais velada à origem da criança a boneca dada pelo pai a Gaby, que a chama de filha, sendo o brinquedo uma representação da própria menina que foi dada sem escolha e sem história a uma mãe ‘inocente’?

Puenzo constrói uma narrativa sólida em que mesmo o panfletarismo ocasional – só ilustrando: quando o avô diz que ser pobre não é vergonha e ser rico não é honra – condiz com suas pretensões ideológicas. Seu desfecho é justificado pelas intenções de quem faz o filme, mesmo que pareça irreal uma mãe deixar para trás uma criança que tratou por filha nos últimos seis anos

"O filho da noiva" por Lucas Andrade


O que faz de ‘O filho da noiva’ um bom filme? O fato de contar uma história envolvente? A fácil identificação do espectador com algum dos personagens? O tratamento melodramático do filme que, possivelmente, aumenta a interação do público com a obra? Os motivos para gostar do filme são muitos, porém, uma quantidade elevada desses argumentos se aterá ao conteúdo e não à forma. Isso não é, a principio, um ponto negativo, mas, de certo modo, limita a obra.

Se comparado à produção atual argentina, que apresentou ao mundo nomes como Lucrecia Martel e Pablo Trapero, O filho da noiva, filme de Juan José Campanella, talvez não seja uma obra inovadora. Martel por exemplo, em seu ‘O pântano’, subverteu o modelo clássico e repensou o modo argentino de fazer cinema. Isso é visto claramente em muitos momentos do filme, mas em especial no tratamento som. Tudo parece está super sensível, com uma intensidade que, em alguns momentos, faz o espectador ficar arrepiado.

O filme de Campanella, por sua vez, desde o roteiro (com uma curva dramática bem delimitada que segue os modelos Syd Fieldianos) até a montagem (usada de forma bastante transparente para que o espectador não a perceba) é bastante norteado pelo cinema clássico.

É certo que os apreciadores de um cinema mais inquieto sentirão falta de ruptura formais ao assistirem ao ‘O filho da noiva’, porém, não seria correto afirmarem que se trata de uma obra convencional por completa. Há uma complexidade nas relações dos personagens (tanto nas do filho com seu pai e com sua mãe como na do rapaz com sua namorada). Há seres humanos reais (com defeitos e qualidades e que faz o espectador ficar em dúvida quanto a gostar de certos personagens, como o principal, um homem atarefado que não tem tempo para ninguém, apenas para seus negócios). E há também uma profundidade na trama.

O filme conta a história de Rafael, o dono de um restaurante. Ele tem muito com o que se preocupar na sua vida: a velhice do seu pai, o alzheimer da sua mãe, a educação da sua filha. Porém, o rapaz não costuma prestar atenção nisso e parece tentar ajeitar apenas o seu restaurante. Após um infarto, Rafael repensa sua vida e estabelece novas prioridades. O filme tem certo tom melodramático, porém, a história é retratada de forma sutil, o que dá a ela um tom singular.

Outro ponto a chamar a atenção é o humor do filme. Talvez por estarem rodeado de circunstâncias tensas, há uma ironia incrível nos personagens, o que gera situações bastante engraçadas, como a da filha de Rafael que não agüenta mais ouvir seu pai repetindo que sua avó repete tudo por conta das perdas de memória que ela tem.

Seria uma injustiça, portanto, achar que ‘O filho da noiva’ não é um bom filme. É uma obra com momentos realmente interessantes (capazes de emocionar ou fazer rir) e ao que se propõe, é um filme de alta qualidade. Afinal, não se pode cobrar que todo cineasta pense como Godard.

"A mulher de todos" por Yanna Luz



Em cada plano desperta a mesma sensação de quando se está cara a cara com uma barata, e, depois de longos minutos tomando coragem para dar-lhe uma chinelada, descobre-se que ela não é uma barata comum (!), trata-se de um tipo voador. A sensação de que ela olha pra você e ri muito da sua impotência é quase insuportável.

Nunca se pôde ter certeza de que as baratas não têm esse tipo de senso de humor. Tal situação-limite exala o mesmo cheiro de conspiração que está impregnado no filme “A mulher de todos”, de Rogério Sganzerla. Não é você que propriamente ri do filme, é como se, na verdade, ele zombasse de você, por lhe fazer rir de um mundo que é seu.

Tudo é transposto em um sistema de imagens na dança do ‘quanto mais parecer nonsense melhor’, tendo início com uma bola gigante na beira do mar, a qual o personagem de Jô Soares lambe com uma voracidade constrangedora. Parecer nonsense, sim, mas não é prudente a ilusão de que, de fato, em nada haja sentido, porque no final das contas tudo é crítica. Embalado por trechinhos de rock dançante, admitindo sua grande influência pop, com frases de efeito ótimas (hilariamente mal sincronizadas), de ritmo rápido, muito subtexto e mensagem subliminar, o filme é, por fim, um prato cheio pra quem gosta de bizarrice. E pra quem gosta de notá-la ao seu redor, e até se ver, desiludidamente, como parte dela.

Bizarro a começar pela protagonista que conduz a trama e tem o nome pouco absurdo de Ângela Carne e Osso, que de anjo não tinha nada e era até mais osso, diga-se de passagem, mas era especialista mesmo nos prazeres da carne. Diz-se mulher nascida para os boçais, casada e apaixonada pelo maior deles, mas nem por isso dispensa os outros. Ângela é a mistura explosiva de uma Afrodite subversiva com a Caipora, versão loira, e tudo isso dentro de vestes moda praia no mínimo curiosos.

Retratando (e principalmente criticando) a sociedade, moralmente desfigurada e bêbada, o filme traz personagens muito peculiares, semi-aberrações hilárias, que vão desde um empresário gordo que lê histórias em quadrinhos a um detetive incompetente ou um toureiro gay. Todos eles, de um jeito ou de outro, passam por Ângela, a única mulher realmente relevante da trama, e expõem seus universos insanos, egoístas e mesquinhos tendo como cenário a Ilha dos Prazeres, uma espécie de locação ideal para o deleite da burguesia. (Você já visitou a Ilha dos Prazeres?)

O filme não é dosado; não é somente ácido, é quase letal (numa embalagem falsamente idiota). Satiriza tudo, de forma improvável, e tudo significa dizer que nem o mais puro dos espectadores será poupado. Não há como reclamar. Eles avisaram: “Nós não gostamos de gente!”. Contraditório e tão infame que chega a ser fantástico.

" O Filho da Noiva – uma comédia dramática argentina" por Annyela Rocha



Fãs de cinema comercial do mundo todo provavelmente já assistiram ao trabalho do diretor argentino Juan José Campanella. Isso pode ser afirmado porque atualmente ele é o responsável por conduzir uma das séries americanas de televisão mais conhecidas, “Law and Order: Special Victms Unit”, além de já ter dirigido alguns episódios de “House” e “30 Rock”.

Fora as séries famosas, constam ainda interessantes filmes no currículo de Campanella. É o caso de “O Filho da Noiva” (2001), vencedor do prêmio de Melhor Filme no Festival de Gramado e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Sob um olhar superficial, o trabalho em questão pode parecer apenas mais um filminho de amor, uma comédia banal. Mas não é.

Rafael Belvedere (Ricardo Darín) é dono de um restaurante fundado pelo pai. O trabalho o consome o tempo todo, ele atende telefonemas a qualquer horário, briga com o chef porque precisa substituir ingredientes das receitas por outros mais baratos. Na vida pessoal, tem uma ex-mulher com quem se relaciona de forma complicada, uma filha que parece não lhe dar muita atenção, uma namorada, Naty, necessitada de mais carinho e o elemento de peso maior: uma mãe com Alzheimer. A única relação ainda normal é com o pai, Nino (Hector Altério). Para completar, ainda reaparece um amigo de infância, Juan Carlos (Eduardo Blanco), que se apaixona por Naty.

Rafael não visita muito a mãe, Norma, interpretada muito bem por Norma Aleandro. Ele sempre se sentiu cobrado por ela e acredita que, quando finalmente deu certo na vida (comandando o restaurante), ela não pôde enxergar o feito. Já o pai, Nino, ainda é completamente apaixonado pela esposa e a visita todo dia no asilo em que Norma ingressou por precisar de cuidados constantes. Surge então a ideia, prontamente rejeitada por Rafael: Nino quer se casar com Norma, porque a única coisa que ele ainda não a tinha dado foi um casamento na igreja.

Depois dessa exposição dos personagens, dos conflitos deles e da proposta inusitada, Rafael sofre um ataque cardíaco e muda seu ponto de vista em relação à vida e aos próprios sentimentos, deixando se envolver mais com quem o cerca. Desenvolvem-se, assim, momentos tocantes, de emocionar o público, e instantes de comédia. A alternância entre riso e drama é muito bem conduzida por Campanella. Acaba sendo uma boa representação da vida como um todo – apesar das horas felizes, há sempre a crise, e vice-versa.

O jogo “drama X comédia” também é acentuado pelo Alzheimer de Norma. Apesar dos momentos intensos, capazes de entristecer quem já teve algum parente com a doença, a mesma personagem é capaz de provocar risadas no espectador. Mas o humor no filme não se resume aos comentários de Norma. Há provocações, piadas sobre a situação argentina e referências a elementos populares da América Latina, como o Professor Girafáles. Outro fator cômico é uma pergunta que surge no filme e permanece entre os personagens e os espectadores, “quem é Dick Watson?”.

Um ponto diferencial desse longa para os outros mais comerciais está no elenco. Nem todos eles fazem parte do padrão universal de beleza, mas unanimemente têm o que importa: trabalham muito bem, acentuando a o trabalho de Campanella. Intimista e despretensioso, o diretor imprime seu estilo no trabalho. Apesar de assumir alguns recursos mais hollywoodianos, impõe sua própria forma de contar a estória, construindo sem esforço um filme representante da identidade argentina. Juan José Campanella constrói, assim, um bom exemplo de produção a ser seguido.

"A mulher de todos" por Mateus Rafael



“A mulher de todos” apresenta-se como um filme tão anárquico quanto fragmentado- a narrativa não linear, o experimentalismo e o discurso libertário permeiam essa obra de 1969, percebendo-se uma forte influência da nouvelle vague, do neorrealismo italiano e de outras vanguardas já existentes na época.

A personagem principal, Ângela carne e osso, é interpretada por Helena Ignez e contradiz completamente a visão de uma mulher submissa. Ângela é autônoma sobre o seu sexo, mesmo sendo casada, e isso parece gerar uma atração irresistível e natural sobre os homens ao seu redor. O marido de Ângela, Plirtz (Jô soares), é um milionário boçal e arrogante; e é isso- ao que tudo indica- que faz com que ela se sinta atraída por ele, já que ela se define como a mulher dos homens boçais e o define como sendo o mais boçal de todos os boçais. Ângela encarna com suas atitudes libertárias todos os medos da família burguesa, que cerceia a liberdade feminina ao concentrar em si e na sua “honra” as bases dessa família tradicional. Contudo, a trama não se limita a isso e tem um ganho substancial ao ultrapassar a simplicidade de uma narrativa contínua e tradicional.

Ao contradizer a narratividade tradicional Sganzerla flerta com o experimentalismo característico de Godard e possui um discurso extremamente libertário, utilizando - se da liberdade da arte cinematográfica com maestria.

Às luzes da visão contemporânea essa obra não perde sua atualidade ao perceber-se o caráter imediatista das personagens e a efemeridade das relações amorosas típica dos dias atuais.

"El día que me quieras" por Rafaella Costa


Dirigido por John Reinhardt, Carlos Gardel atua em seu último filme antes do desastre aéreo que sofreria no mesmo ano, no auge de sua carreira. “El Día Que Me Quieras” (1935), é um dos grandes sucessos musicais da América latina. Embalado por canções do próprio Gardel e com letras de Alfredo Le Pera, seu parceiro musical, o filme também conta com a atriz Rosita Moreno no elenco principal, interpretando tanto mãe como filha.

A história se passa nos anos 1910, 1920 e 1930 e é basicamente sobre o filho de um empresário rico, Julio Argüelles (Gardel), que se apaixona pela dançarina Margarita (Moreno). Porém o pai é contra a união dos dois, porque quer que seu filho se case por conveniência. Julio, ignorando as vontades do pai, casa-se com Margarita e tem uma filha, Marga (Moreno). Além da situação financeira difícil que se encontram, Margarita está também bastante doente. Após a sua morte, a carreira de Julio como cantor de tango desponta e junto com sua filha, ele viaja apresentando-se em teatros e ganhando reconhecimento.

Carlos Gardel (Charles Romuald Gardés) nasceu em 1890, em Toulouse, na França. Ainda pequeno, foi trazido por sua mãe para Buenos Aires e viveu uma infância pobre. Aos 17, já começava a cantar e em 1925 já era conhecido por toda América espanhola. Logo depois da Europa, viria a ser conhecido nos Estados Unidos e no cinema. Outros dos grandes sucessos musicais que atuou foram “Mi Buenos Aires Querido” e “Volver”. O compositor, intérprete e ator, foi o mais famoso cantor de tango argentino, ainda que este nem tenha sido seu país de origem. “Nasci em Buenos Aires aos dois anos e meio de idade” dizia.

O melhor de ter assistido “El Día Que Me Quieras”, acabou nem sendo o filme em si. Enquanto assistia, me dei conta de que a quem passava por ali já ia sentando para ver do que se tratava. Ver Gardel interpretando os grandes sucessos da época, trás a sensação de estar revivendo um tempo que nem foi seu. Um clássico que deve ser assistido e lembrado ainda por muitas gerações.

"Muita Água e Pouco Chocolate" por Alan Tonello



Tendo sido a produção estrangeira de maior bilheteria nos Estados Unidos em 1993 e uma das maiores do cinema latino-americano, “Como Água Para Chocolate” trata de um amor proibido, utilizando-se de recursos culinários para ganhar o público, já que não oferece nenhum tipo de ousadia na linguagem cinematográfica ao adaptar o romance para as telas.

Logo no início do filme, vemos que a personagem principal não terá uma vida fácil, partindo do seu bizarro nascimento em que litros de água são jorrados de sua mãe numa analogia com as lágrimas que permearão sua existência. Nascida em família conservadora Tita, como caçula, está fadada a tornar-se ajudante de sua genitora em sua velhice, sendo proibida de aceitar qualquer proposta de casamento, um costume que havia sido obedecido por gerações em sua família. Mas tão logo sabemos de seu fardo, conhecemos a causa de seu sofrimento: o amor proibido.

Desde criança, Tita era galanteada pelo jovem Pedro, e isso continuou até que sua mãe percebesse e tratasse de juntar o rapaz com sua outra irmã, Rosaura. Surpreendentemente o rapaz aceita, apesar de sua intenção ser a de ficar mais próximo ao seu verdadeiro amor. Por ter ótimos dotes culinários, Tita fica responsável pela cozinha na casa, preparando tudo para o casamento da irmã. É aí que entra o papel da comida na história. Entristecida pela perda de Pedro, a moça derrama suas lágrimas ao cozinhar, causando uma epidemia de choro no momento em que os convidados da festa comem o bolo seguido de uma seção de vômito coletivo. Por ser sempre reprimida por sua mãe e estar passando por uma situação complicada, a única forma pela qual Tita poderia se comunicar verdadeiramente com os outros protagonistas era através da comida, e a tristeza que passou pelo bolo não foi a única demonstração de seus sentimentos.

Em uma cena de bastante voluptuosa, Tita oferece um jantar preparado com codornas assadas às pétalas de rosas, estas presenteadas por Pedro. Ao comer, todos presentes à mesa começam a sentir sensações que vão de calor a prazer, sendo óbvia a interpretação sexual como verdadeira intenção, atingindo potencialmente Pedro.
Além de ter que conviver com seu amado ao seu lado sem poder se expressar, Tita sofria com a repressão da mãe, que sempre a tratava mal. Ainda assim ela não negava bondade a ninguém, sempre ajudando a família. Certo dia, devido à ausência de todos na casa, Tita é obrigada a fazer o parto do filho da irmã. Seu afeto pelo sobrinho é muito grande e ao saber que, em uma mudança que fizeram a San Antonio, no Texas, a criança morre, a moça fica mentalmente afetada, sendo enviada a uma clinica em Eagle Pass. Lá ela se vê livre de sua mãe, contra a qual já havia se rebelado. Mas devido a um ataque na fazenda onde morava, é obrigada a voltar ao local, onde descobre que sua mãe havia sido assassinada. Desenvolvendo um grande afeto por Tita, seu médico, o Dr. Brown, a pede em casamento, mas a moça insiste no fato de realmente amar a outro, ainda que ela demonstrasse grande apreço ao doutor.

Voltando à fazenda e mais uma vez tendo que conviver com Pedro, Tita se vê assombrada pelo fantasma de sua mãe, que a praguejava e atormentava por todo tempo. Isto seria uma clara metáfora ao pensamento da protagonista, que ficava dividida entre o amor de sua vida, que ao mesmo tempo era proibido, e o bom doutor.

A história, que possui uma trama bastante simples, é acompanhada por uma trilha sonora cansativa e bem antiquada, que chegam a dar sono devido a lentidão dos acontecimentos e a linearidade quase novelística da narrativa. Além de uma tentativa falha em mostrar a Revolução Mexicana, na qual se aprofunda pouquíssimo, o filme tem grandes contrastes de acontecimentos banais e bizarros, como o parto de Tita; a irmã, Gertrudis, correndo nua pela fazenda como resultado de uma refeição; metáforas com fósforos e etc. Mas o que mais se destaca foi a falta de preocupação, ou de capacidade, ao retratar uma passagem de 22 anos na história, em que somente um bigode é adicionado aos rapazes e um penteado de cabelo é mudado nas mulheres para retratar o envelhecimento. Ao final do filme, não nos interessamos mais na história de Tita, que já sabíamos onde terminaria, mas contamos diversos motivos para não assisti-lo novamente, e esperamos que o livro original, de onde saiu a história original, seja uma experiência melhor do que a cinematográfica.

"O pântano" por Luiz Marcos de Carvalho


Filme argentino dirigido por Lucrecia Martel é um retrato angustiante e denso de uma sociedade que perdeu seu rumo. Tudo no filme reforça a desordem mental e a falta de direção na vida dos personagens. Em meio a um ambiente externo exuberante, cercado de belas paisagens, montes e vales, florestas, tudo isso contrasta com a sujeira física e o descontrole mental dos personagens.

Há no meio ambiente um pântano no qual uma rês desgarrada imerge e fica presa, impossibilitada de escapar da areia movediça. Da mesma forma, os personagens encontram-se igualmente atolados em um pantanal ainda mais perigoso e da mesma forma se encontram incapazes de encontrar uma saída. Assim como aconteceu com o boi, que foi sacrificado, a única saída para os personagens seria também a morte? É uma pergunta que não é formulada explicitamente, mas que poderia ser aventada, uma vez que nenhuma outra saída é também indicada.

Mesmo as crianças e os adolescentes também são vítimas desse ambiente nefasto formado pelas relações existentes entre os membros da “família”, se é que se pode chamar assim a esse aglomerado de almas perdidas. Há uma adolescente, Momi, que costuma ficar vários dias sem tomar um banho e é chamada pelos outros de Momi a suja., embora eles também não estão isentos de defeitos similares e da degradação que é a regra geral.

A piscina que existe na casa tampouco, merece esse nome, uma vez que sua água é imunda; a “piscina” jamais foi limpa alguma vez e as pessoas dela se utilizam, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

A sujeira e a desordem são visíveis por toda parte e se encontram em todos os diversos ambientes, com as roupas e lençóis jogados de qualquer forma, numa bagunça total que reflete também o estado interior dos personagens.

A protagonista e seu “marido” são alcoólatras e ela vive constantemente ébria o que termina por provocar um acidente em que ela se fere com os cacos de vidro das taças que deixa cair, aumentando ainda mais o grau de desorientação e confusão de todos.

Em todos os personagens há sempre uma falta de determinação, não há valores definidos nesse ambiente cercado de belas paisagens mas imerso numa apatia e numa indefinição psíquica, num atoleiro de paixões e vícios e na falta de um sentido para a vida. As crianças saem a caçar e seguidas vezes são mostradas cenas em que elas apontam as espingardas demoradamente, porém ficam indecisas e não chegam a efetuar os disparos.

Essa indefinição e o caráter vacilante dos personagens é também mostrado na idéia de uma projetada viagem à Bolívia, para a compra do material escolar dos filhos, porque seria mais econômico, e, também porque os personagens manifestam, embora timidamente o desejo de escapar ao ambiente pesado e sufocante que lhes incomodava, o que acaba por não se concretizar, deixando com que todos continuem no mesmo ambiente em que estavam imersos e a que de certa forma se acostumaram.

O filme não aponta saídas para o drama dos personagens. Fica para o espectador a análise do como e do porque uma situação como a mostrada é possível na realidade e quais as possíveis soluções.

É, em suma, um belo filme, que perturba e procura nos despertar da nossa apatia; que consegue com sua proposta estética, fazer-nos refletir sobre os rumos e descaminhos que podem surgir em uma sociedade que, por falta de espírito crítico, reflexão e iniciativa, extraviou-se em algum ponto de sua trajetória e viu-se perdida em meio a um “pântano” do qual não consegue escapar.

"A mulher de todos" por Amanda Hureau



Quem sou eu?
Ângela Carne e Osso, a ultra poderosa maior inimiga numero um dos homens.

Mulher, perigosa, sensual, determinada, incontrolável, atrevida, intensa, histérica, firme, insaciável.

Rebelde?



Serei eu A mulher de todos? Será que a mulher de todos, é também a de todas?
Quem sou eu?

Ângela precisa de todos os homens. Humilha, bate, utiliza, domina. Ícone da subversão, ela inverte os papeis num intento de rebeldia. Feminista, pode ser. Limitado, sim. Sexista, talvez. Doido? Definitivamente!!

O filme usa e abusa dos estereótipos contemporâneos (a personagem central é um cânone de beleza, loira, magra, branquinha, estereotípica e estereotipada). Joga com o absurdo, com a caricatura, não tem estrutura nem coerência clara, e os personagens são os mais absurdos: um pseudo-torero que na realidade é cabeleireiro, um gordo empresário nazi, o único negro milionário do país (que também é o único negro do filme), Vamp... E ela fica com todos, com a exceção do seu marido.
Ela dança, bate, morde, fica, seduz. Ela fuma charutos. Ela é a mais desejada, e também a mais politicamente incorreta. Ela é como a ilha: extrema.

A mulher de todos não é só representativo daquela loucura dos anos 60 pré e pós-Woodstock. Ele resume a cultura Pop e Rock & Roll, ele joga com a transformação da identidade da sociedade brasileira nesses anos: aquela juventude americanizada e decadente, o protótipo de mulher bonita, a patética classe media, de certa forma a segregação racial e sexual. Uma mensagem de inconformismo. Um passeio da crítica à caricatura social; um filme cru, grosseiro, engraçado para alguns, horrível para outr@s.

Entretanto, para Ângela Carne e Osso, não tem importância. Ela não gosta de gente.

Apresentando-se como um filme apolítico para combater a censura, confirma-se finalmente aquela idéia (pouco) conhecida: que o político está em tudo, mas nem tudo pode ser político. O diretor se utiliza da cultura de massas para criticá-la, e levá-la ao seu extremo. Procura refletir o “mood” da época, com tudo o que é bom, e tudo o que não é. Diz não ao conservadorismo, à falta de liberdade –de expressão, e sexual- mas também grita: “Cuidado! Isso não é necessariamente amor livre. Isso não é necessariamente feminismo. Aquela ilha não é necessariamente o paraíso”.

Ângela é típica, mas ela é também rebelde. Assim como o filme.


Ambos questionam a identidade brasileira num momento delicado da história do país, e no contexto de mudanças no nível mundial. Critica as influências externas, e o fato de elas serem deformadas no contexto nacional. Interroga a identidade de mulher, e ainda mais a da mulher livre. Faz tributo à rebeldia, ainda traçando seus limites.

Finalmente, a fita traz mais uma vez a pergunta: Quem sou eu? Sou Ângela Carne e Osso, a ultra poderosa maior inimiga numero um dos homens.

"O filho da noiva" por Evandro Mesquita


O Filho da Noiva foi lançado na Argentina no auge da crise econômica por lá, em 2001, e reflete muito bem as características dessa crise em sua história. Confundindo-se entre comédia dramática ou drama cômico, possui as doses certas de cada gênero. O clima de pessimismo inundou os personagens que se vêem sem dinheiro e sem um rumo certo em suas vidas.

O filho do título é Rafael Belvedere (Ricardo Darin), o dono de um restaurante, pai divorciado, que sofre um ataque cardíaco prematuro. Quando acorda no hospital ele revela a sua namorada Naty (Verbeke) que tudo que ele quer é fugir de tudo e de todos, o que ele chama de e “ir à merda”. Naty fica um pouco decepcionada já que tinham um compromisso há algum tempo.

A noiva do título, que forma a outra história paralela, é a mãe de Rafael (Norma Aleandro), uma senhora já de idade que sofre do Mal de Alzheimer. O pai de Rafael, Nino (Hector Alterio), sonha em se casar na igreja com sua esposa enferma, pois seu casamento há 44 anos atrás havia sido apenas no civil. Rafael, a princípio, é contra, porém muda de idéia, indicando, dessa forma, uma mudança de seu comportamento e filosofia de vida a partir daquele evento.

Seus diretores, Juan Jose Campanella e Fernando Castets contam-nos uma história suave evitando o sentimentalismo barato, que é marca dos filmes americanos de mesmo gênero.

O título do filme talvez não faça jus à história, pois a narrativa atém-se mais aos conflitos de Rafael que ao recasamento dos pais. Rafael encontra-se perdido e amargurado, pois aquela altura, homem maduro que era, esperava-se estar estabilizado na vida, porém o que se vê é um homem inseguro nos negócios e, também na vida emocional, reflexo, como já apontamos, da própria Argentina, que na época (e até hoje) estava mergulhada numa crise econômica e social, deixando os hermanos deprimidos e perdidos. Em contrapartida está um velho amigo de infância, Juan Carlos (Blanco), que havia perdido a mulher e filha, mas que, no entanto, desenvolveu a habilidade de sorrir e de saber viver a vida.

Confesso que me emocionei com o filme. Achei de uma sensibilidade excepcional. Muito se fala do cinema como identificação. Pois bem, é possível que eu tenha me colocado como o personagem Rafael, que em algum ponto de minha vida me senti tão ou mais perdido que ele, mas que, a exemplo do protagonista, nunca desisti conseguindo, na medida do possível, superar as crises e seguir meu caminho sem precisar ir à merda.

"Como água para chocolate" por Henrique Vieira


A produção audiovisual mexicana tem o estigma de algo meloso, melodramático e de atuações forçadas. Assim como se tem, no Brasil, a presença marcada de filmes longos e silenciosos sobre o sertão e o rude homem nordestino. Esses estilos não representam a totalidade da produção desses países, mas se fazem de forma tão forte que acabam impregnando uma espécie de identidade ao cinema de seu país. É claro que em ambos os casos temos exemplos completamente opostos como El crimen del padre Amaro e Amores Perros no México ou Cheiro do Ralo e Cão sem Dono no Brasil, para citar somente alguns. Mas estes não são suficientemente fortes para conseguir tirar a imagem geral que se tem do cinema mexicano (ou brasileiro).

Como água para chocolate, infelizmente, se apresenta para reafirmar um pouco este senso comum criado em torno do cinema mexicano. Certo, ele não é, de longe, um emblema do gênero. Mas não deixa de reproduzir diversos elementos que criaram a força do termo “melodrama mexicano”, cujo pronunciamento serve diretamente de referência à exploração kitsch do amor romântico aliada a um tipo de interpretação caracteristicamente forçada. Embora não se deixe de conferir diversos elementos poéticos no filme, que não conseguem, no entanto, solevar o filme como um todo.

A história se passa no final do século XIX/ começo do século XX, no interior mexicano. Uma família tradicional de três filhas perde o pai e passa a viver entre mulheres em sua grande fazenda. Um dia, Pedro, um morador da vizinhança se enamora de Tita, a irmã mais nova, e vai pedir sua mão à mãe da menina. No entanto, esta recusa pois, pela tradição, a filha mais nova da casa deve permanecer solteira para cuidar da mãe até sua morte. Em contrapartida, a mãe propõe a mão de sua filha do meio, apenas dois anos mais velha que Tita, Rosaura. Para poder ficar perto de sua amada, Pedro aceita a oferta e casa-se, a contragosto com Rosaura.

O estilo do filme até então é meio piegas. Pedro, “o valentão”, nos causa desgosto com sua atuação à la época de Molière, e alguns recursos narrativos são explorados das formas mais óbvias possíveis. Como, por exemplo, quando ocorre um diálogo entre Pedro e seu pai, que pergunta ao filho por que aceitou a mão de Rosaura se, na realidade, gostava de Tita.

-“Não, papai… É porque assim, estarei mais próximo da menina que amo.”
-“haaaa…” (pai boquiaberto, impressionado pela grande perspicácia do filho)
É nesta hora que vemos que a criada velha estava escondida e havia escutado tudo. Tudo parece ter sido tirado dos manuscritos de algum dramaturgo francês do século XVII.

Quando chega a festa de bodas de Pedro e Rosaura, é à Tita, que cuida sempre da cozinha, que cabe preparar o bolo. Ela o faz, não sem estar aos prantos com o evento, e acaba deixando cair lágrimas na massa do bolo. Bolo pronto, todos que o comeram na festa terminam sendo pegos por uma grande onda de tristeza. Todos choram na festa, como se o pranto de Tita tivesse passado pela comida. Esta aí um recurso interessante da história, que se diferencia substancialmente do resto do filme. Em alguns momentos há toques de poesia no filme, e este é um deles. Tita expressa seus sentimentos e se comunica com o mundo via sua cozinha.

Pedro passará a viver na fazenda com Rosaura e sua família. Os olhares de Pedro para Tita são persistentes, e tudo isso provoca grande ciúme na irmã, além de raiva na mãe, verdadeira madrasta de Cinderela para com Tita. Um dia, Pedro dá um buquê de rosas para Tita. A mãe manda jogá-lo fora imediatamente. Ao invés disso, Tita usa as flores para fazer o molho da comida. Durante o jantar um grande sentimento de volúpia se apodera da mesa. A irmã mais velha, Gertudis, descobre o apelo de sua sexualidade e se vai de casa, junto a uma quadrilha de revolucionários. Quanto a Pedro e Tita, descobriram uma forma a mais de se comunicarem, de se tocarem… Outro toque poético interessante…

Chega um filho para Pedro e Rosaura. Eles terminam saindo da fazenda para a cidade. Não sem antes Pedro passar uma noite com Tita. Pedro fora de casa, Tita começa a enlouquecer com sua mãe, verdadeira megera, e acaba sendo levada a uma clínica psiquiátrica nos EUA. Já se havia mostrado no filme que Tita, em momentos de profunda tristeza, costumava coser uma manta. Quando ela está indo embora de casa numa charrete, tem-se um plano fixo mostrando a charrete se distanciando e a manta atrás dela se arrastando, interminável, assim como o é seu sofrimento. Talvez a cena mais bonita do filme.

Na clínica, o doutor se apaixona por Tita e a pede em casamento. Sentindo-se muito longe da possibilidade de estar junto ao seu grande amor, ela aceita. Entre tempo, chega a notícia que sua mãe fora assassinada em sua fazenda por um grupo de bandidos. Todos voltam para a fazenda. É o reencontro de Tita com Pedro. Mais não tem como o amor deles prevalecer naquele momento. Rosaura está grávida e dá luz a uma menina. Tita não se casa com seu médico. E é somente anos depois, no casamento de sua sobrinha com, justamente, o filho do médico, que Tita e Pedro vêem-se finalmente sozinhos e disponíveis (Rosaura falecera há pouco).

Todos haviam ido embora da festa. Os dois estão finalmente sozinhos. E se entregam então um ao outro, numa derradeira relação de amor, visto que a ela não sobrevive Pedro, acometido por emoção e êxtase em excesso. Tita, então, provoca uma autocombustão (que havia sido mencionada durante o filme como resultado de uma paixão por demais ardente que finalmente se consome). Seu corpo pega fogo. A casa inteira pega fogo. E é como se todo o universo que acolheu a trama de Tita e Pedro sucumbisse ao seu amor, rasgando pelo fogo.

Se a idéia pode parecer bonita, na tela, infelizmente, ela é brega. Uma exacerbação do amor romântico caindo no clichê da expressão “fogo da paixão” (que, se eu não me engano, dá nome a uma banda de brega dos dias de hoje, mostrando que realmente uma coisa não está muito longe da outra). Uma pena, pois o filme, como já foi precisado, consegue em alguns momentos criar imagens significativamente bonitas, mas sua estrutura de um modo geral o condena ao velho estigma da produção audiovisual mexicana. Que dispensa mais comentários.

"Memórias do subdesenvolvimento" por Clara Pérez


“1961: La Habana. Numerosas personas abandonan el país”. Assim começa Memórias do subdesenvolvimento, um dos filmes dirigidos por Tomás Gutierrez Alea no ano de 1968 e considerado como um ícone do cinema cubano e do Cinema Novo Latino Americano em geral. Na sua adaptação do romance homônimo de Edmundo Desnoes, o direitor cubano consegue se esquivar da censura e se propõe a retratar a situação do seu país após a revolução castrista, ao mesmo tempo em que realiza uma crítica do caos e da incerteza que reinam na Cuba e do subdesenvolvimento em que se encontra a população cubana, à sombra do gigante estadounidense.

No entanto, Memorias do subdesenvolvimento vai além da conjuntura histórica do país e é mais que um simples documentário. O filme submerge o espectador nas “memórias inconsoláveis” (do título do romance de Edmundo Desnoes traduzido ao inglés, “Inconsolable Memories”) de Sérgio, o protagonista, e é através dos seus olhos e da sua história contada na primeira pessoa que percebemos o contexto de Cuba e que nos chega a uma visão ambivalente, que não acaba de tomar posição com respeito à revolução, nos permitindo assim uma grande parte de interpretação e de reflexão pessoal.

O personagem de Sérgio, um escritor de classe média de 38 anos, é alguém dificil de analisar. Ademais de se encontrar numa situação pessoal complicada (depois da sua família e da sua mulher terem fugido para Miami), ele também deverá tentar entender e assimilar a situação em que está atravessando o país, enfrentando a numerosos questionamentos existenciais. Sendo assim, ele tenta se refugiar e permanecer isolado do caos e do subdesenvolvimento exterior, mas não deixa de criticar fortemente os culpados desse subdesenvolvimento bem como de desprezar as vítimas dele, como Elena, enquanto fica entre as paredes do seu apartamento. Ele pretende se limitar a observar a realidade cubana, a pobreza e a miséria não só econômica mas também inteletual, desde o telescópio da sua varanda, sem chegar a perceber que a sua vida já faz parte da incerteza e da instabilidade local.

Apesar de não estar nem contra nem a favor da revolução segundo o personagem de Elena, e apesar de ver como pouco a pouco mais conhecidos dele fogem para os Estados Unidos, Sérgio decide ficar na ilha, atitude igual a que tomou o próprio direitor do filme, vivendo assim o dia-a-dia desse momento chave da história e averiguando desde Cuba sobre o que vai acontecer. Através do personagem de Sérgio, em total defasagem do ambiente político e social da Cuba pós-revolucionária, o espectador poderá conhecer a vários aspectos da revolução cubana (a fuga para Miami de uma grande parte da população, a batalha de Playa Girón, a Crise dos Mísseis, as críticas e a falta de interesse em proveniência da burguesía cubana como mostra o personagem de Pablo, a confusão no país expressada por Sérgio...). Sobre isso Tomás Gutierrez Alea escreveu: “através desse personagem [...] podemos descobrir novos aspectos da realidade que nos rodeia. Às vezes através dele. Outros em contraste com ele” (em "Memorias del subdesarrollo. Notas de trabajo", Cine Cubano # 45-46, 1968.)

Além disso, o filme, em preto e branco, está marcado pela mistura de cenas fictícias e sonhos produtos da imaginação de Sérgio com imagens reais, provocando assim um vai e vêm constante entre a fição histórica e a realidade que lembra-nos o cinema característico do neo-realismo.

Como último aspecto essencial do filme, poderiamos mencionar a capacidade que ele tem para abordar debates e polêmicas que continuam sendo discutidas na atualidade, 50 anos após ele ter sido produzido, como por exemplo, o desenvolvimento das regiões periféricas das potências ocidentais ou a questão da hegemonia e do imperialismo americano sobre a América Latina.