terça-feira, 29 de setembro de 2009

"A mulher de todos" por Germana Glasner


“A Mulher de Todos” de Rogério Sganzerla é protagonizado pela atriz Helena Ignez, que tinha papel secundário em “O Bandido da Luz Vermelha” – realizado anteriormente pelo mesmo diretor. Agora encenando a fatal Ângela Carne e Osso, que logo no começo do filme já é apresentada pelos locutores como “uma das dez mais megalomaníacas”.
A questão da identidade e da identificação dos personagens é uma das temáticas mais recorrentes. Ângela se autodefine, durante todo o filme, com afirmações do tipo: “Me chamam de louca, histérica, sei lá o quê, mas sou uma mulher normal”, “Sou Ângela Carne e Osso, a ultra-poderosa inimiga número um dos homens”, “Sou livre”, “Sou uma heroína sem mensagem como qualquer outra mulher do meu tempo”, etc. Os demais personagens também utilizam desse artifício para se afirmarem.

O filme apresenta uma temporalidade não definida, através de uma elasticidade encontrada nos diálogos que esticam o tempo para o passado e o futuro. Outra forma em que se manifesta essa elasticidade é a repetição de planos e situações. A exemplo o casal que faz piquenique na praia, e aparece sempre sob a mesma iluminação, com as mesmas roupas em vários momentos do filme como se estivessem em um tempo a parte da história principal.

Apesar do amor de Ângela ter como alicerce seu marido, por outro lado ela coleciona amantes, de “bacanas” a “boçais”, sempre tomando a iniciativa nos seus relacionamentos. De todos os homens em que investe o único que ela não consegue se tornar amante é o, suposto, toureiro, que curiosamente é encenado por Paulo Vilaça, protagonista de “O Bandido da Luz Vermelha”.

Através de imagens inesperadas, que despertam surpresa e curiosidade, Ângela demonstra que possui um sentimento oceânico em um mundo sem limites “hoje eu sei, eu preciso de todos os homens, sem deixar de amar nenhum”. Mas coloca em contradição esse amor quando esnoba e maltrata os seus amantes. Ser amado por ela implica ser, também, rejeitado e desprezado.

A protagonista acaba sendo eliminada pelo seu marido, que diz: “Eu não calculo nunca, mas quando faço uma besteira, eu vou até o fim”. Essa frase afirma que, no fundo, único valor real, trazido pelo filme, é o radicalismo, qualquer coisa pode ser feita... desde que se vá até o fim.

"O Brasil Grande de Iracema" por Annyela Rocha



Algumas cenas que flutuam sobre o limite do real e do ficcional podem trazer reações interessantes. Pobreza, miséria, falta de esperança, destruição de florestas. Por vezes encenados, por outras, impossível não serem reais. Isso acontece em Iracema – uma transa amazônica, filme de 1974 dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna.

O ano de lançamento no Brasil é 1981. A ditadura conseguiu segurar a divulgação do longa o quanto pôde, enquanto Iracema percorria mundo e ganhava títulos como o de melhor filme em exibição na Europa (1975) e no 12º Reencontre Film et Jeunesse, o prêmio especial de Cannes de Melhor Filme (1978). A polêmica já é um indicativo da importância do filme.

Iracema – uma transa amazônica conta a estória de Iracema, menina que vai à Belém para uma festa religiosa e se torna prostituta. Influenciada por uma colega, acaba viajando no caminhão de Tião Brasil Grande, com o intuito de conhecer cidades grandes, como São Paulo. O caminhoneiro trabalha transportando madeira pelo país, iniciando a história da Transamazônica.

Há no discurso de Tião um amor incondicional pela pátria, um olhar positivo de que o Brasil só pode melhorar, só pode avançar. De forma contraditória, durante as viagens, os dois se deparam apenas com personagens pobres e sem esperança de melhorias nas condições de vida. A oposição presente demonstra provavelmente o choque entre a alienação imposta pelos militares, com as tentativas de manter a ordem calando os “revolucionários” que não “amavam” o país, e a realidade dura vivida nas cidades brasileiras de difícil acesso.

Exemplo disso é um dos adesivos presentes no caminhão de Tião: “Brasil: ame-o ou deixe-o”, slogan criado durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969/1974). Assim como Médici, Tião era gaúcho, confirmando sua importância dramática como representação desse Brasil ideal proposto pela ditadura militar. Ainda assim, Brasil Grande possui plena consciência de como as coisas andam na verdade.

Iracema conversa com as pessoas que vivem nos lugares onde o caminhoneiro para. Como esse filme reside na fronteira realidade-ficção, tem-se a impressão, mas não afirmo com toda certeza, de que esses personagens são reais. Isso é sentido pelas próprias falas, com um tom de improvisadas e espontâneas, pelo enquadramento da câmera, por toda a mise-em-scène em si.

Num bordel qualquer, em algum lugar no meio do nada, Iracema é abandonada por Tião. Ela passa a trabalhar no local. Um dia está com uma outra prostituta e as duas são enganadas por um conhecido. Ele diz que as levará para uma fazenda, de avião, e no outro dia elas estarão de volta. Mas elas acabam num caminhão de um gato (traficante de pessoas). Iracema é deixada no meio do mato. Dá um jeito de se encontrar, no entanto.

A vida dela é a transitoriedade. Ela sabe que não pode parar em lugar algum. Assim como o homem com quem ela teve mais contato, Tião, sua vida é explorar e ser explorada pelos poucos lugares que pode alcançar. No final, os dois se reencontram, mas Iracema já não é mais a mesma. Mais vivida, mais decadente e menos bonita, ela desagrada Brasil Grande, que logo vai embora.

Há cenas de impacto, como uma que mostra uma queimada. A realidade presente em alguns momentos traz determinada angústia. Entretanto, os problemas da região norte do país nunca mais foram trazidos para os filmes. O ânimo que existia em nossos cineastas deveria ser algo juvenil. Talvez eles só fizessem essas fortes críticas sociais porque eram proibidos de fazê-las. Os tais problemas talvez não existam hoje com a mesma intensidade, mas com certeza permanecem o desmatamento inconsciente, a escravidão fora-da-lei e a prostituição infantil.

Dessa forma, Iracema – uma transa amazônica assume grande importância entre os filmes brasileiros. Primeiro por ser um documentário-ficção que traz bons resultados por sua ambiguidade bem elaborada. Segundo porque tem uma boa narrativa, um bom trabalho de direção e excelentes atuações de Edna de Cássia (Iracema) e de Paulo César Pereio (Tião). E por último, porque serve de exemplo de filme a ser seguido.

"Família Rodante: rodado a sol e sinceridade" por Lucas Andrade


Pablo Trapero, em seu terceiro longa metragem, nos faz ter a sensação de ver uma película construída de modo bastante sincero, filmada secamente e sem tantas extravagâncias estilísticas. Esse parece ser o tipo de produção mais interessante feito pelos latinos atualmente. ‘Família Rodante’, que se encontra nessa safra de filmes, conta a história (de quadro gerações) de uma família que viaja para o casamento de um parente e que a avó, uma senhora de 84 anos, será madrinha. Apenas um detalhe, eles terão que fazer uma viagem de mais de mil quilômetros, cruzando a Argentina e chegando à fronteira com o Brasil, em um trailer bastante apertado, principalmente quando se trata de levar 12 passageiros. Ainda terão que arrumar espaço para um cachorro que será encontrado no meio da estrada e seguirá viagem junto a eles.

É através de cores quentes e dos sons realistas que o filme nos passa as sensações de aperto, desconforto e calor. Todos estão em uma casa móvel que não dá espaço para ninguém e que o único lugar de privacidade parece ser o banheiro. Desde o pequeno Matias que o usa para chupar chiclete escondido de sua mãe, até os dois jovens que tentam ficar a sós para namorar, todos apenas querem um pouco de espaço. Como num barco, aquele trailer une as pessoas de forma brusca e forçada, já que não se tem a opção de não se integrar ao grupo tal é a redução do espaço.

Nessa interação tão direta, com os sentimentos à flor da pele e embaixo de um sol escaldante, surgirão as intrigas, os desentendimentos, o carro começará a quebrar e amores antigos voltarão a aflorar. Ernesto, cunhado de Marta, irá tentar reconquistá-la. Essa, por sua vez, não quer nada com ele, mas (com a sutileza de deixar o cabelo solto por ter sido elogiada) não nega que gosta de ser desejada. São esses pequenos detalhes que tornam o roteiro desse filme um texto tão bem construído. Ele dá à Argentina e a tudo que aborda um tratamento direto, sem redundâncias. Isso é visto tanto nas ações dos personagens quanto nas paisagens, nos figurinos, na mise-en-scène em geral. O carro em que viajam, por exemplo. Ao invés de ter um tom chamativo e diferente, como acontece com a Kombi de ‘Pequena Miss Sunshine’, em ‘Família Rodante’ trata-se de um trailer cinza, aguado e que não chama atenção para sua cor em momento algum. Parece um paradoxo, já que é o fato de não buscar atenção para esses pequenos elementos fazem com que o filme de Pablo Trapero se torne mais complexo e plural.

A câmera tem um papel fundamental na obra. Ela parece investigar e mostrar de forma singular cada um dos 12 personagens. Com closes que podem exprimir agonia em alguns e alegria em outros, ela tenta entrar com maior profundidade no sentimento daquela família, e faz isso com uma delicadeza que não chama atenção para si. O espectador se envolve com a narrativa, mas muitas vezes não saberá descrever o que aconteceu para deixá-lo assim, pois esses detalhes que estão presentes em movimentos de câmeras e no trabalho com a banda sonora do filme muitas vezes passam despercebidos, porém, são de fundamental importância para a constrição da atmosfera fílmica.

O filme faz questão de se encerrar sem dar um desfecho total para aquela história. Não se sabe o que acontecerá com o casamento de Ernesto, como ficará a relação de Marta com a sua irmã e também com o seu marido. Isso é um ponto que pode ser visto não só nessa produção, mas também em tantas outras da América latina na safra atual. Esse tipo de filme investe em deixar ‘portas’ abertas, pois sabe que essas partes não contadas tornam o roteiro ainda mais interessante, pois, assim como na vida, muitas dúvidas continuarão, mesmo o filme tendo acabado.

"A mulher de todos" por Alan Tonello Borba


Helena Ignez e Rogério Sganzerla


Indo contra a imagem da boa moça do final da década de 60, Ângela Carne e Osso foi o símbolo da revolução, da contracultura, do pop, e continua sendo até hoje. Interpretada por Helena Ignez, que foi considerada a musa do cinema marginal brasileiro, A Mulher de Todos, Ângela Carne e Osso, não temia nada e ninguém, fazendo o que lhe desse em sua cabeça e com o homem que quisesse – de preferência numa casa aconchegante na Ilha dos Prazeres, local onde ela sentia-se mais à vontade do que nunca, esculachando com a cultura conservadora e sem poupar irreverência.

Sempre com um cigarro ou charuto à disposição, Ângela, que era casada com um bem-sucedido empresário de quadrinhos, tinha vários amantes e aproveitava a vida da forma com que achasse melhor, sem pudor algum, quebrando uma imagem da mocinha de família, forma como a mulher era tratada na maioria dos filmes precedentes ao cinema marginal. O filme faz uso da ironia e cita diversos elementos da cultura pop, homenageando também o movimento da chanchada e os filmes pastelão.

Inovando com um estilo único de atuar – à sua época –, debochado, violento e extravagante, Helena Ignez elevou uma das maiores características do cinema marginal: o enfoque dado ao personagem. Algumas semelhanças entre este movimento e o do Cinema Novo podem ser encontradas, mas se destacam, neste filme de Sganzerla, as imagens constantemente agitadas e estrondosas, seus temas que confrontavam a censura, o experimentalismo e a ruptura da narrativa linear.

“A mulher dos homens boçais”, como se definia Ângela Carne e Osso, foi o símbolo do poder feminino que aumentava cada vez mais na década de 70 e podemos hoje, sem nenhum problema, achar algumas dessas Ângelas por aí, admitindo o caráter vanguardista que possuiu esta obra de Rogério Sganzerla, pela qual “nosso amor aumenta de 15 em 15 minutos”...

"Memórias do Subdesenvolvimento" por Evandro Mesquita


A palavra subdesenvolvimento é frequentemente utilizada em referência aos países latino-americanos. Talvez economias colonizadas ou com pouco desenvolvimento industrial. O filme cubano Memórias do Subdesenvolvimento (1968), dirigido por Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) e considerado o mais importante de sua carreira, lida com este assunto de subdesenvolvimento de várias maneiras. Em princípio o filme se preocupa com a vida e pensamentos de um intelectual burguês, Sergio, que ficou, literalmente, por trás da revolução. Ele fica em Cuba ao passo que sua mulher e pais vão para os Estados Unidos porque ele quer observar o que vai acontecer em Cuba. Ele se acha europeizado. Para ele subdesenvolvimento significa mentes cubanas subdesenvolvidas. Sergio critica seu próprio povo, especialmente as mulheres por esquecerem as coisas ou não serem consistentes, porém no seu próprio caso, lembrar-se de tudo o deixa simplesmente paralisado.

A estória original de onde o filme foi feito, publicado em inglês com o título “Memórias Inconsoláveis” foi escrita por Edmundo Desnoes, um intelectual cubano que passou muitos anos nos Estados Unidos. Depois retornou a Cuba após a revolução onde ocupou lugar de destaque na editora Casa de las Américas voltando mais tarde para os Estados Unidos onde passou a viver seus últimos dias em Nova York. Desnoes parece ter posto muito de si próprio em sua obra, que é narrada em primeira pessoa, mostrando um protagonista muito perspicaz e altamente qualificado. Com estrutura formal de uma autobiografia, o protagonista, sem nome, escreve um diário com o objetivo de manter sua sanidade e identidade pessoal a fim de obter certo controle sobre sua própria vida. Ele também escreve em primeira pessoa sobre experiências vividas já que se considera um escritor fracassado que não pode criar. No filme de Alea este intelectual, de nome Sergio, coloca-se como uma “memória do subdesenvolvimento”, um burguês que mergulha em seu próprio discernimento mental, mas que não pode sair de uma angústia e assumir um compromisso com a revolução.

Tanto o livro como o filme não são tão diretos. No livro o protagonista critica seu amigo Eddy (Desnoes) por ter escrito uma estória com um personagem superficial sobre um intelectual alienado o qual é “salvo” por se comprometer com a revolução. A estória do livro e do filme projeta seu olhar nas influências das culturas européia e americana e não hesitam em usar os modelos de expressão ocidentais mesmo quando criticam tal influência sobre a vida cubana.

Em termos de estilo, Alea se debruça sobre duas maneiras de ver o subdesenvolvimento. Ele desenvolve a narrativa psicológica no estilo de filme europeu sobre a alienação existencial de Sergio. Ao mesmo tempo ele arrasta esta alienação até a crítica por meio de documentário que mostra que Sergio não irá se engajar na revolução. Por exemplo, o filme mistura o discurso falado, avançando e retrocedendo no tempo de acordo com as memórias de Sergio com tomadas do povo de Cuba nas ruas. Por exemplo, a dança no início do filme (com típicos cubanos) estabelece uma idéia de raça em contraposição a um Sergio, um homem alto, branco e que se parece com um gringo; algo que o espectador poderia entender como indicativo de classes diferentes. No meio do filme Alea repete o que se vê na seqüência inicial (os cubanos de pele parda-escura dançando quando um homem é assassinado). Desta vez, Sergio está no meio da multidão e sua brancura se sobressai. Alea parece querer usar o protagonista para enfatizar em termos visuais esta alienação da classe média intelectual em relação ao povo.

A inserção de elementos de documentário na narrativa funciona muito bem, como, por exemplo, numa mesa redonda a que Sergio comparece. O assunto da discussão é literatura e subdesenvolvimento onde os painelistas são o próprio Edmundo Desnoes e Jack Gelber, um dramaturgo americano que escrevera a introdução na versão em inglês de “Memórias Inconsoláveis”. Neste fórum de discussão, que foi filmado, Desnoes fala do tempo em que esteve nos Estados Unidos, onde diz ser apenas mais um palestrante e critica, em especial, o grande sonho branco americano. Um outro palestrante diz que subdesenvolvimento e desenvolvimento são palavras doentias e que o que Cuba precisaria seria o confronto de palavras como capitalismo e socialismo.

Em termos políticos um dos grandes problemas é que, sendo o filme direcionado a uma platéia cubana, Alea mostra Sergio morando sozinho no luxo e sem problemas materiais, após a revolução em um apartamento que poderia abrigar uma ou duas famílias. A platéia deveria criticar e não invejar suas condições de vida. O filme levanta a questão da escassez de bens quando mostra que há falta de óleo e outros acessórios para os automóveis. Enquanto muitos edifícios na área urbana se deterioravam e o governo revolucionário incentivava o desenvolvimento rural, Alea mostra o apartamento de Sérgio em Havana em perfeito estado.

Sergio se orgulha de ter uma vida urbana e ser europeizado. Ele vive uma dualidade: obcecado, mas ao mesmo tempo condescendente com o subdesenvolvimento de Cuba. Ele acha as mulheres cubanas intelectualmente e culturalmente subdesenvolvidas, embora use o sexo para escapar de sua alienação e de sua paralisia como escritor. Ele tem um caso com Elena, uma jovem que encontra na rua a quem ele tenta educar levando-a a museus e bibliotecas. Ele reflete: “Descobri que Elena não raciocinava como eu. Tento viver como um europeu, mas, ela me faz sentir o subdesenvolvimento o tempo todo”.

O filme é mais reflexivo do que narrativo. As constantes variações de planos e linguagem, a mistura de documentário com a ficção pode confundir o espectador se ele não estiver atento. Contudo, é recompensador porquanto é instigante e ousado. É um filme para ser assistido mais de uma vez, já que não é raso, demandando, portanto, um espírito crítico e observador por parte do espectador para que possa entender os significados da excelente obra de Alea.

"A Mulher de Todos" por Mirtiline Leitão


Vencedor do Festival de Brasília em 1969, nas categorias de melhor atriz (Helena Ignez) e melhor montagem, A Mulher de Todos é um filme que continua con um teor de contemporaneidade, apesar de fazer 40 anos. A liberdade feminina é tratada com um vanguardismo impressionante por Rogério Sganzerla – num terreno de filmes brasileiros até então com teor mais comportado – também diretor de outra obra pontualmente vanguardista: O Bandido da Luz Vermelha, que também traz a inesquecível Ignez (esposa de Sganzerla), num dos papéis principais.

Com roteiro baseado em história de Egídio Eccio, A Mulher de Todos trata da relação de um casal (extremamente moderna para a época), composto por Ângela Carne e Osso, uma ninfômana quase demoníaca de relações relâmpagos, que se recusa a ser submissa a Plirtz (Jô soares), um milionário arrogante e excêntrico. Ela viaja para a exótica Ilha dos Prazeres, e está de caso rompido com seu último amante (Stênio Garcia). Assim, encontra o playboy Vampiro (Antônio Pitanga) e um de seus amantes, Armando (José Carlos Cardoso).

Analisada hoje, Ângela representa contemporaneamente o cinismo da mulher moderna, atualmente representada com tranqüilidade e identificação, na maioria das novelas brasileiras. Ela tem um vício de possuir homens com a mesma velocidade com a qual os abandona. Exercendo um fascínio quase demoníaco sobre eles, trata-os como isca para as armadilhas sexuais que sua personalidade ardilosa é capaz de produzir. Ângela Carne e Osso, a mulher dos homens boçais, como ela mesma se define, se passaria por mais uma esposa do início da década de 70, não fosse o argumento do filme. Ela despreza totalmente a sociedade da qual faz parte, e toda a gama de papéis sociais que dela são exigidos por esse contrato social do qual todos nós fazemos parte: Mãe e esposa. Ela é um personagem tão complexo que é necessário analisá-la no filme, tal qual a enigmática e eterna análise que se faz de Capitu, em Dom Casmurro, que em uma sociedade bem mais rígida do que a de Ângela, já demonstrava ares de insurreição contra a rigidez do casamento e uma doce e misteriosa sedução sem amarras, para a época.

Ainda assim, fica uma sensação de dúvida da aceitação da personagem, de defesa do seu caráter, de revanche diante do tédio da vida que ela levava e que, se na época chocou o público, com certeza teria razão para tal. Ângela encarnou a vontade oculta de muitas senhoras e o pavor de todos os maridos. Uma mulher aventureira num filme/cinema/estilo aventureiro e inesquecível. E tal argumento a torna cada vez mais apaixonante. O grotesco e alienado Plirtz simboliza a classe alta brasileira, completamente idiota diante de si mesma. Era a verdade escancarada, e o público não sabia que estava preparado para aquilo. Mas estava.

È o imediatismo que rege a vida de cada personagem, de diferentes formas, que serve como plano de fundo para a ambigüidade do filme, e fama de “louco” de Sganzerla. O filme é grosseiro, e ao mesmo tempo desbrava muito de inocência tênue que existe em nós. É essa caricatura que Sganzerla faz dos valores sociais que garante a sua originalidade, que mesmo se apropriando de características do estilo Godard, dos filmes pornôs suecos, dos cinemas novos mundiais e de histórias em quadrinhos, faz uma leve crítica à elegância hipócrita do cinema brasileiro da época e constrói seu estilo.

Ângela é divina em seu exagero de viver e vida, ela quer tudo ali, agora. Ao mesmo tempo em que deseja o que todos os personagens desejam, não existe nada parecido com ela, nem O Bandido da Luz Vermelha chega aos seus pés em redenção. Ele ainda é mais inocente do que ela, por ser tratado como um aborto social, um “produto do meio”. Ele não tem muitas opções, mas Ela tem. E faz valer cada minuto delas e do filme. Tornamos-nos cúmplices dela, seus amantes, voyeurs. Sem julgamentos, nos transportamos assim para a mente de Ângela, que é somada à forma Sganzerla de filmá-la. O pior é que adoramos a forma como ambos se exibem para nós, como se além de ninfômana ela gostasse de ser observada. E ele, como se gostasse de colocar sua esposa e musa em suas fantasias e nos mostrar tudo isso sem segredos.

“Memórias do Subdesenvolvimento” por Camila Nascimento Martins


Independente do país de origem, da situação histórica ou política em que um personagem marcadamente burguês poderia estar inserido, seus desejos seriam os mesmos: ser rico, inteligente, culto, ter status social e viver rodeado de mulheres.

Num híbrido de ficção e imagens documentais, a primeira idéia que nos vem à cabeça ao assistirmos ao filme “Memórias do Subdesenvolvimento” é a seguinte: a intenção do diretor foi informar que apesar de ficcional aquele contexto está bem próximo da realidade. E ele tem razão. Quem não adoraria possuir todos estes atributos?

Agora imagine esta subjetividade marcadamente capitalista se desenvolvendo numa Cuba imediatamente após a revolução socialista... O personagem Sérgio permanece sozinho no país enquanto sua família migra para Miami. Com o desenrolar do filme ele começa a ser engolido por aquela nova realidade. Ele não se posiciona. Não é contra nem a favor do regime, ele “não é nada” como enuncia a jovem com quem se relaciona. Ele tem consciência da realidade ao seu redor, mas isto não o toca. Ele se sabe decadente, mas nada lhe faz pulsar num sentido contrário.

Lembro-me de um texto de Luís Fernando Veríssimo que relata a procura do escritor durante toda sua vida por qualidades de mulheres e mulheres, mas termina desistindo: “Hoje, com 40 anos, gosto de mulheres com bunda grande. E só.” Talvez essa mulher de bunda grande (e só) seja a Cuba para Sérgio. Um país que pouco lhe oferece ou dispõe. Após procuras ideológicas juvenis o homem de meia idade passa seus dias a simplesmente passar seus dias. Um clima de impotência e indiferença vai suplantando o personagem.

Apenas seus impulsos mais orgânicos são capazes de quebrar-lhe a monotonia. A jovem com quem ele se envolve chama-lhe a atenção somente por seus joelhos bonitos numa passagem que metaforiza bem a falta de perspectiva dele e de sua vida. Ele busca o sexo e envolve-se com ela que lhe garante problemas com a justiça. Esta fica sendo então a única maneira de fazê-lo voltar a tomar conhecimento das mudanças de Estado que estão ocorrendo. No julgamento nós nos aproximamos da mentalidade política da Cuba de então e percebemos as mudanças que estão sendo implementadas.

Como o enfado do personagem, o filme se desenvolve, ou se subdesenvolve já que parece não sair do lugar. Há uma continuidade narrativa, mas a atmosfera estática da indiferença impregna todo o desenrolar dessa espera de Sérgio com pequenos arroubos passageiros de paranóia e desespero.

O enfado revelado na película, no entanto, passa longe de se tornar chato porque traduz o grande talento de seu diretor em nos fazer cúmplices daquela situação como se estivéssemos a assistir a história pela ótica do personagem. Tornamo-nos alheios enquanto participantes daquela realidade. Espectadores e personagens desde a primeira tomada.

Um filme fortemente marcado por um contexto político que consegue não ser panfletário, mas lírico. Ele deixa em aberto qualquer tipo de juízo e convida você, espectador-personagem a tirar suas próprias conclusões se é que elas são pertinentes. Uma proeza difícil de alcançar revestindo a obra com um sentido poético que se completa na interpretação de quem assiste. É um filme imprescindível que não lançou mão de inovações formais por não precisar delas. Não foi à toa que se tornou um clássico.

"A mulher de todos" por Ruana Pedrosa


Um filme com temas polêmicos até para os dias de hoje. "A mulher de todos" de Rogério Sganzerla, nasce em 1969, mostrando a mente de um cineasta a frente do seu tempo.
Ao narrar a história de uma mulher casada com um homem rico, e que o trai com vários homens, o diretor poderia não estar inovando, mas apenas utilizando de mais um típico roteiro sobre relacionamentos. Porém tudo isso é apresentado aos olhos de um “Cinema de Autor”, onde o personagem torna-se mais importante que a história.

Essa é Ângela Carne e Osso, na brilhante interpretação de Helena Ignez, que deixa o expectador impressionado com seus atos e seu texto. Ângela não está apaixonada por nenhum dos seus amantes, mesmo assim mantém com todos uma espécie de relação de dominação. Até o detetive, contratado por seu marido Doktor Plirzt ( Jô Soares ), cai nos encantos da loira, que convida seus homens a passar um final de semana na Ilha dos Prazeres.

Plirzt é o marido traído, desconfiado e apaixonado pela “heroína” da película. Um empresário em ascensão financeira e extremamente arrogante com seus funcionários. Ao descobrir a traição de sua esposa, a coloca junto a um dos seus amantes numa bola gigante, que joga ao mar.

Apesar do final “trágico” para a protagonista, o filme é intensamente engraçado e prende a atenção do expectador com fatos, como, por exemplo, um casal na praia, sem função narrativa alguma, que passa uma significativa parte da história brigando, enquanto a mulher pede uma cuba.

Sganzerla consegue com este filme trazer polêmica e sátira ao cinema
brasileiro. Fazendo com que a paixão do público por Ângela aumente a cada dois minutos.

domingo, 27 de setembro de 2009

"A mulher de todos" por Douglas Deó Ribeiro


Assistindo a “A mulher de todos” sorvemos um discurso anárquico e múltiplo. Trata-se de uma obra onde forma e conteúdo estão à disposição de uma ideologia libertária e absolutamente não convencional – o que leva um espectador acostumado à organização tradicional das narrativas clássicas a sentir indiscutível estranheza diante do filme.

Uma sinopse simplória, que visasse apenas o resumo objetivo possível da história, diria que se trata das peripécias amorosas extraconjugais da protagonista – Ângela carne e osso – seguidas de uma vingança por parte de seu marido. No entanto essa trama serve como eixo para uma série de elaborações formais.

O filme data de 1969, época em que já estavam bem difundidas as inovações formais cinematográficas instituídas pelas correntes cinematográficas européias do pós-guerra – em particular o neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa – e pelos cinemas novos mundo afora – inclusive no Brasil. Portanto a estética fragmentária utilizada por Sganzerla não tem seu mérito na instituição de novas formas de filmar, mas sim na utilização dessas novas ferramentas em prol de um discurso libertário.

Ângela é a personificação absoluta da liberdade que se prega: personificação metafísica de uma liberdade anárquica principalmente quando se pensa que é uma mulher infiel numa representação da sociedade brasileira – latinamente machista. Sua evolução na narrativa se dá por uma perambulação irregular em ambientes vários, passando por diversos homens – fugitivos do Brasil, negros milionários, desenhistas de quadrinhos, caroneiros, toureiros gays cabeleireiros, guerrilheiros fugitivos nudistas profissionais e detetives de meia tigela - num emaranhado geográfico onde a única referência ambiental se chama ilha dos prazeres.

A ilha dos prazeres parece, então, como uma representação visual ainda mais intensa da liberdade que se quer representar: corpos nus, montagem entrecortada, trilha que ora conecta os planos, ora se fragmenta à semelhança das imagens, quadros que parecem flertar com as construções surrealistas – como o em que uma cabeça com óculos escuros divide o quadro com uma vitrola e outros objetos na grama e o em que um recorte de praia onde se vê um cavalete é invadido por uma mulher dançando e dois homens montados em cavalos ao fundo. Talvez a cena mais representativa da ilha seja aquela que surge quando o narrador está falando sobre como o paulista se diverte no fim de semana e aparece um casal curtindo a praia que ressurge pelo menos três vezes ao longo do filme; ela sempre pede ao marido que pague uma cuba – ou seria uma brincadeira semântica com a Cuba de Fidel? – e ele a agride.

Sem dúvida a liberdade que se prega tem suas raízes nos ideais sociais marxistas – o autor utiliza-se, inclusive, de recursos expositivos para autenticar isso quando diz que não existe liberdade individual sem liberdade coletiva e quando a protagonista declara que é um demônio anti-ocidental -, mas a montagem recortada, os falsos raccords, os elementos de quadrinhos, a câmera na mão, o olhar para a câmera e as músicas múltiplas – que vão da modinha à musica negra, de Elvis ao cha-cha-cha, do samba ao rock progressivo, sem falar nas incursões clássicas – compõem uma estética mais correspondente à anarquia de Bakunin –ou, cinematograficamente falando, às possibilidades abertas pela nouvelle vague de Godard.

"MEMÓRIAS DO SUBDESENVOLVIMENTO" por Luiz Marcos de Carvalho


Logo a partir do título o filme nos mostra que não é o que parece ser. Pelo título somos levados a pensar que o tema principal do filme é o subdesenvolvimento latino americano, em particular o de Cuba, país de origem da película. Mas não é bem assim.

É verdade que a história se passa em Cuba, dois anos após a derrubada do governo de Fulgencio Batista e da instalação do regime comunista, mais precisamente no período compreendido entre a invasão da Baía dos Porcos e a crise dos mísseis soviéticos, época em que a permissão para deixar o país ainda não estava de todo vedada.

A revolução cubana é apenas o cenário, o pano de fundo do filme que trata principalmente das memórias de um escritor que fica sozinho em seu país, ao contrário de sua ex-esposa e de seus pais que optaram por sair de Cuba e mudaram-se para os Estados Unidos da América.

O filme é baseado no livro de Edmundo Desnoes, renomado escritor cubano, intitulado “Memórias Inconsoláveis. “

O grande cineasta francês Alain Resnais, que dirigiu entre outros filmes célebres, “Hiroshima Mon Amour!” disse uma vez que sempre desejou ter uma memória inconsolável.

São, portanto as memórias inconsoláveis do protagonista Sérgio, o objeto principal do filme. E suas memórias são amplas e abrangem múltiplos aspectos: político, social, profissional, emocional, afetivo, todos, enfim.

Por meio dessas memórias o diretor faz um longo e sinuoso percurso sobre os temas os mais variados, porém inseridos no contexto histórico do país no período a que já nos referimos.

O filme, como também o personagem são fortemente ambíguos e difíceis de definir. O filme é uma mistura de documental e ficção. Segundo o próprio diretor, Tomas Gutierrez, “ele é uma colagem com um pouco de tudo”.

O filme está continuamente alternando cenas documentais, com cenas de ficção, sonhos e desejos, com realidade. Godard disse que “todo grande filme de ficção deriva na direção do documentário e vice-versa.”


O diretor utiliza um estonteante arranjo de materiais e estilos fílmicos, como uso de câmera na mão, bem como de montagens agitadas que lembram os filmes de Eisenstein e mostram também algumas influências do neo realismo italiano.

O protagonista representa uma personagem ambivalente incapaz de se definir, não só politicamente, mas em quase tudo na vida. Ele não deixou o país, numa época em que poderia tê-lo feito, mas essa não foi propriamente uma decisão firme, deliberada, mas a opção de deixar as coisas como estavam, porque isso era mais cômodo.

Durante todo o filme essa dubiedade e falta de firmeza de caráter vão sendo mostradas. Seu relacionamento com a ex-esposa, com uma namorada alemã de quem gostava muito, mas a quem teve de renunciar por terem-no obrigado a cuidar de uma certa loja, o que inviabilizava seu “projeto “de ir viver com ela em outro local. Mais tarde, ao recordar esse episódio ele se arrepende de não ter sido capaz de tomar a decisão de permanecer com ela.

Em uma cena, a jovem namorada cubana com quem se relaciona após ficar sozinho em Havana, questionando sua posição política, chega à conclusão de que ele não é nem revolucionário nem contra a revolução, afirmando-lhe categoricamente: “não és nada.”

Ele também tem consciência da realidade que o cerca, como nos mostram as cenas em que aparecem crianças subnutridas e pessoas miseráveis, mas isso também não é suficiente para que ele se posicione, mas apenas para que mergulhe mais ainda em suas dúvidas e incertezas.

Semelhante indefinição transparece também em relação ao filme que não se posiciona de maneira clara em relação à revolução cubana, deixando para o espectador o juízo de valor sobre a questão.

A esse respeito são esclarecedoras as palavras do diretor sobre o seu filme e do seu ponto de vista sobre o cinema: “ O cinema provê um elemento ativo e mobilizador que estimula a participação no processo revolucionário.. Então não é suficiente ter um cinema moralizante, baseado em arenga ou exortação. Precisamos de um cinema que promova e desenvolva uma atitude crítica.. Mas como criticar e ao mesmo tempo fortalecer a realidade na qual estamos imersos.”

O trabalho do diretor de Memórias do Subdesenvolvimento é representativo do movimento cinematográfico das décadas 60/70 que ficou conhecido como “Cinema Novo Latino Americano”, também referido como “Terceiro Cinema”, ou ainda “Cinema Imperfeito” o qual estava intimamente ligado à temática do neocolonialismo e na busca de uma identidade cultural para a América Latina.

As cenas finais do filme mostram o protagonista em imagens gradualmente mais e mais desfocadas, granuladas e desconstruídas, indicando a total dissolução do personagem em seu mundo de incertezas e indefinições.

“IRACEMA, UMA TRANSA AMAZÔNICA” por Henrique Vieira


O Brasil, com sua diversidade única, não raramente nos espanta. Se de um lado conhecemos bem o que nos é vinculado cotidianamente pela televisão: Praias cariocas, arranha-céus paulistas, ascendências européias e suas misturas africanas... Custamos a conhecer melhor outras áreas do nosso grande país. A região norte talvez seja a menos explorada. Sabemos que, entre florestas, há vida urbana por lá. Mas nada muito mais do que isso.

Iracema, uma transa amazônica se passa neste mundo distante que é o Pará dos anos 70. Mergulhamos desde o princípio numa realidade muito distante das grandes cidades litorâneas. Sentimos imediatamente um atraso cultural e informacional muito grande. Infra-estruturas pobres, uma massa de gente resignada a uma vida sem perspectiva. Neste meio, uma jovem de quinze anos, Iracema, se prostitui para ganhar a vida. Encontra um dia o caminhoneiro Tião Brasil Grande e passa a viajar com ele pela recém construída estrada Transamazônica, grande projeto do governo ditatorial brasileiro da época. Nessa viagem, eles entrarão em contato com a realidade que circunda a estrada e seus problemas (desmatamento, queimadas…). Finalmente, o motorista irá abandonar a jovem, entregue então a sua sorte e que continuará no caminho decadente da prostituição.

O filme é todo feito na fronteira entre a ficção e o documentário. O que quer dizer isso? Há, de um lado, uma história fictícia que é contada. Esta história possui personagens, que representam papéis que não condizem com suas realidades. Edna de Cássia, que representa a jovem prostituta, não o é de verdade. Como também o conhecido ator Paulo César Pereio, que faz o motorista, não é caminhoneiro. No entanto, há em paralelo toda uma preocupação etnográfica na construção do filme. Uma intenção de retrato fiel à realidade, sem forjamentos. Quando esses dois personagens estão na festa de uma cidadezinha, é uma verdadeira festa que a câmera está captando, com todos os seus participantes verdadeiramente empenhados nela. Não são figurantes que evoluem naquele cenário, mas pessoas de verdade exercendo seu cotidiano. Isto é constatável quando se vê a reação das pessoas à presença da câmera, olhando para esta diretamente, curiosos. Nas cenas dentro de um restaurante, não houve mesmo a preocupação de fechar o estabelecimento para as gravações. Filma-se sem refletor, sem silêncio (o que dificulta muito as vezes o entendimento do que os atores estão falando) Os atores entram, sentam e conversam, dando seguimento à trama, em meio a olhares curiosos do resto da clientela. Clientela esta que está, naquele momento, mais que servindo ao filme como figuração, sendo indiretamente objeto do filme, como material documental.
Essa estratégia de mesclar ficção e realidade tentando passar gato por lebre se fará mais insistente ainda quando o personagem de Paulo César Pereio irá praticamente ‘entrevistar’ alguns trabalhadores do extrato de madeira quanto a suas opiniões sobre a estrada Transamazônica. Esta parte se constitui quase como uma pesquisa social. Lamenta-se, no entanto, que do ponto de vista do conteúdo o resultado seja tão pobre. Nada do que os trabalhadores dizem se mostra muito relevante para a compreensão de sua situação (exceto algumas exceções).

A utilização de muitos não-atores é outro traço do filme. A própria protagonista é um deles e, por sinal, dá muito bem conta do recado (o que não é de longe o caso de outros personagens que aparecem no filme). E aí surge a questão: pra quê usar não-atores num filme? Se o objetivo é poder apresentar personagens o mais próximos possível da realidade do filme, tão próximos que somente eles, sendo parte desta realidade, consigam executar o papel, é compreensível. Mas aí é preciso um grande trabalho junto aos não-atores para que possam desempenhar suas funções. Não é o caso de Iracema, uma transa amazônica. Alguns personagens são patéticos. Absolutamente unicordes. Seria negligencia do diretor? Pelo agrado que o filme me causou apesar disto, prefiro pensar que foi mais uma forma documental de encarar aquele povo. Numa espécie de experimentação sobre ‘como esse povo se representa a si mesmo’… Mas talvez eu esteja indo muito longe…

Em suma, a história é simples e interessante. Interessante, sobretudo pela técnica documental que já foi referida. Um bom registro de um lugar e de uma época, tão distante e tão diferente. Vale a pena ser visto. (mas com legenda!)

"Uma salada mista latino-americana" por Tiago Bacelar


Há 41 anos, em 1968, era lançado um filme, considerado pela crítica cinematográfica mundial como um grande “clássico” do cinema latino-americano, intitulado de Memórias do Subdesenvolvimento. Produzido pelo cineasta Tomás Gutierrez Alea, o filme leva o espectador para a Ilha de Fidel pós-revolução cubana. O passeio da fotografia de Ramón Suarez pelas ruas do arquipélago e pela casa de Ernest Hemingway imediatamente nos remete ao cinema documental e neo-realista de Roma, Cidade Aberta (Roberto Rossellini) e Rio 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos). Indo mais para o passado, esse longa-metragem lembra muito também o cinema verdade soviético de Dziga Vertov em Câmera Olho.

A atuação de Sergio Corrieri, Daisy Grandos e Eslinda Nuñez antecipa um estilo de interpretação bem característica do audiovisual latino-americano, especialmente o mexicano, que persiste até hoje. É um desempenho frente às câmeras exageradamente dramático, com muitos gestos corporais, gritos e cachoeiras de lágrimas. Um marco inicial desse tipo de ator é a película de Emilio Fernandez, Maria Candelária (1944), aonde o espectador é levado a suportar Dolores Del Rio (Maria Candelária) e Pedro Armendáriz (Lorenzo Rafael) em busca de sua porquinha.

Esse exagero na telona pode ser visto nos filmes de Glauber Rocha, que adorava fazer uma ceninha para o espectador, olhando diretamente para a câmera, no intuito de divulgar sua “estética da fome” aos brasileiros. Na atualidade, o México tornou-se especialista nesse mercado do dramalhão hiper, mega e ultra-exagerado com as “famosas” novelas mexicanas.

São vários os exemplos, tais como: a trilogia das Marias com a atriz e cantora Thalía (Maria do Bairro, Marimar e Maria Mercedes), Carrossel, Chiquititas, A Usurpadora, Pícara Sonhadora, Rebelde, No Limite da Paixão, A Feia Mais Bela, Esmeralda, Rosa Selvagem e Laços de Amor. Em meio a esse dramalhão todo, Memórias do Subdesenvolvimento consegue confundir quem o assiste. Apesar de ser considerado um “clássico”, o filme de Alea não sabe se quer ser um novelão, um documentário ou uma ficção “revolucionária”.

O personagem de Sergio Corrieri não faz idéia de quem é na verdade. Será ele um “Don Juan” do cinema cubano ou um “revolucionário”, cuja família imigrou para os EUA? Em 97 minutos, essa pergunta não é respondida e ainda sobrou para o Fidel, que aparece no final de Memórias do Subdesenvolvimento totalmente deslocado de uma história sem nexo, pé e cabeça. Com essa produção audiovisual, o cineasta Tomás Gutierrez Alea entrou para a história do cinema por ter feito um clássico “salada mista”, em que o espectador e o próprio diretor ficam perdidos naquele confuso mundo diegético.