domingo, 27 de setembro de 2009

"A mulher de todos" por Douglas Deó Ribeiro


Assistindo a “A mulher de todos” sorvemos um discurso anárquico e múltiplo. Trata-se de uma obra onde forma e conteúdo estão à disposição de uma ideologia libertária e absolutamente não convencional – o que leva um espectador acostumado à organização tradicional das narrativas clássicas a sentir indiscutível estranheza diante do filme.

Uma sinopse simplória, que visasse apenas o resumo objetivo possível da história, diria que se trata das peripécias amorosas extraconjugais da protagonista – Ângela carne e osso – seguidas de uma vingança por parte de seu marido. No entanto essa trama serve como eixo para uma série de elaborações formais.

O filme data de 1969, época em que já estavam bem difundidas as inovações formais cinematográficas instituídas pelas correntes cinematográficas européias do pós-guerra – em particular o neorrealismo italiano e a nouvelle vague francesa – e pelos cinemas novos mundo afora – inclusive no Brasil. Portanto a estética fragmentária utilizada por Sganzerla não tem seu mérito na instituição de novas formas de filmar, mas sim na utilização dessas novas ferramentas em prol de um discurso libertário.

Ângela é a personificação absoluta da liberdade que se prega: personificação metafísica de uma liberdade anárquica principalmente quando se pensa que é uma mulher infiel numa representação da sociedade brasileira – latinamente machista. Sua evolução na narrativa se dá por uma perambulação irregular em ambientes vários, passando por diversos homens – fugitivos do Brasil, negros milionários, desenhistas de quadrinhos, caroneiros, toureiros gays cabeleireiros, guerrilheiros fugitivos nudistas profissionais e detetives de meia tigela - num emaranhado geográfico onde a única referência ambiental se chama ilha dos prazeres.

A ilha dos prazeres parece, então, como uma representação visual ainda mais intensa da liberdade que se quer representar: corpos nus, montagem entrecortada, trilha que ora conecta os planos, ora se fragmenta à semelhança das imagens, quadros que parecem flertar com as construções surrealistas – como o em que uma cabeça com óculos escuros divide o quadro com uma vitrola e outros objetos na grama e o em que um recorte de praia onde se vê um cavalete é invadido por uma mulher dançando e dois homens montados em cavalos ao fundo. Talvez a cena mais representativa da ilha seja aquela que surge quando o narrador está falando sobre como o paulista se diverte no fim de semana e aparece um casal curtindo a praia que ressurge pelo menos três vezes ao longo do filme; ela sempre pede ao marido que pague uma cuba – ou seria uma brincadeira semântica com a Cuba de Fidel? – e ele a agride.

Sem dúvida a liberdade que se prega tem suas raízes nos ideais sociais marxistas – o autor utiliza-se, inclusive, de recursos expositivos para autenticar isso quando diz que não existe liberdade individual sem liberdade coletiva e quando a protagonista declara que é um demônio anti-ocidental -, mas a montagem recortada, os falsos raccords, os elementos de quadrinhos, a câmera na mão, o olhar para a câmera e as músicas múltiplas – que vão da modinha à musica negra, de Elvis ao cha-cha-cha, do samba ao rock progressivo, sem falar nas incursões clássicas – compõem uma estética mais correspondente à anarquia de Bakunin –ou, cinematograficamente falando, às possibilidades abertas pela nouvelle vague de Godard.

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