terça-feira, 29 de setembro de 2009

"Memórias do Subdesenvolvimento" por Evandro Mesquita


A palavra subdesenvolvimento é frequentemente utilizada em referência aos países latino-americanos. Talvez economias colonizadas ou com pouco desenvolvimento industrial. O filme cubano Memórias do Subdesenvolvimento (1968), dirigido por Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) e considerado o mais importante de sua carreira, lida com este assunto de subdesenvolvimento de várias maneiras. Em princípio o filme se preocupa com a vida e pensamentos de um intelectual burguês, Sergio, que ficou, literalmente, por trás da revolução. Ele fica em Cuba ao passo que sua mulher e pais vão para os Estados Unidos porque ele quer observar o que vai acontecer em Cuba. Ele se acha europeizado. Para ele subdesenvolvimento significa mentes cubanas subdesenvolvidas. Sergio critica seu próprio povo, especialmente as mulheres por esquecerem as coisas ou não serem consistentes, porém no seu próprio caso, lembrar-se de tudo o deixa simplesmente paralisado.

A estória original de onde o filme foi feito, publicado em inglês com o título “Memórias Inconsoláveis” foi escrita por Edmundo Desnoes, um intelectual cubano que passou muitos anos nos Estados Unidos. Depois retornou a Cuba após a revolução onde ocupou lugar de destaque na editora Casa de las Américas voltando mais tarde para os Estados Unidos onde passou a viver seus últimos dias em Nova York. Desnoes parece ter posto muito de si próprio em sua obra, que é narrada em primeira pessoa, mostrando um protagonista muito perspicaz e altamente qualificado. Com estrutura formal de uma autobiografia, o protagonista, sem nome, escreve um diário com o objetivo de manter sua sanidade e identidade pessoal a fim de obter certo controle sobre sua própria vida. Ele também escreve em primeira pessoa sobre experiências vividas já que se considera um escritor fracassado que não pode criar. No filme de Alea este intelectual, de nome Sergio, coloca-se como uma “memória do subdesenvolvimento”, um burguês que mergulha em seu próprio discernimento mental, mas que não pode sair de uma angústia e assumir um compromisso com a revolução.

Tanto o livro como o filme não são tão diretos. No livro o protagonista critica seu amigo Eddy (Desnoes) por ter escrito uma estória com um personagem superficial sobre um intelectual alienado o qual é “salvo” por se comprometer com a revolução. A estória do livro e do filme projeta seu olhar nas influências das culturas européia e americana e não hesitam em usar os modelos de expressão ocidentais mesmo quando criticam tal influência sobre a vida cubana.

Em termos de estilo, Alea se debruça sobre duas maneiras de ver o subdesenvolvimento. Ele desenvolve a narrativa psicológica no estilo de filme europeu sobre a alienação existencial de Sergio. Ao mesmo tempo ele arrasta esta alienação até a crítica por meio de documentário que mostra que Sergio não irá se engajar na revolução. Por exemplo, o filme mistura o discurso falado, avançando e retrocedendo no tempo de acordo com as memórias de Sergio com tomadas do povo de Cuba nas ruas. Por exemplo, a dança no início do filme (com típicos cubanos) estabelece uma idéia de raça em contraposição a um Sergio, um homem alto, branco e que se parece com um gringo; algo que o espectador poderia entender como indicativo de classes diferentes. No meio do filme Alea repete o que se vê na seqüência inicial (os cubanos de pele parda-escura dançando quando um homem é assassinado). Desta vez, Sergio está no meio da multidão e sua brancura se sobressai. Alea parece querer usar o protagonista para enfatizar em termos visuais esta alienação da classe média intelectual em relação ao povo.

A inserção de elementos de documentário na narrativa funciona muito bem, como, por exemplo, numa mesa redonda a que Sergio comparece. O assunto da discussão é literatura e subdesenvolvimento onde os painelistas são o próprio Edmundo Desnoes e Jack Gelber, um dramaturgo americano que escrevera a introdução na versão em inglês de “Memórias Inconsoláveis”. Neste fórum de discussão, que foi filmado, Desnoes fala do tempo em que esteve nos Estados Unidos, onde diz ser apenas mais um palestrante e critica, em especial, o grande sonho branco americano. Um outro palestrante diz que subdesenvolvimento e desenvolvimento são palavras doentias e que o que Cuba precisaria seria o confronto de palavras como capitalismo e socialismo.

Em termos políticos um dos grandes problemas é que, sendo o filme direcionado a uma platéia cubana, Alea mostra Sergio morando sozinho no luxo e sem problemas materiais, após a revolução em um apartamento que poderia abrigar uma ou duas famílias. A platéia deveria criticar e não invejar suas condições de vida. O filme levanta a questão da escassez de bens quando mostra que há falta de óleo e outros acessórios para os automóveis. Enquanto muitos edifícios na área urbana se deterioravam e o governo revolucionário incentivava o desenvolvimento rural, Alea mostra o apartamento de Sérgio em Havana em perfeito estado.

Sergio se orgulha de ter uma vida urbana e ser europeizado. Ele vive uma dualidade: obcecado, mas ao mesmo tempo condescendente com o subdesenvolvimento de Cuba. Ele acha as mulheres cubanas intelectualmente e culturalmente subdesenvolvidas, embora use o sexo para escapar de sua alienação e de sua paralisia como escritor. Ele tem um caso com Elena, uma jovem que encontra na rua a quem ele tenta educar levando-a a museus e bibliotecas. Ele reflete: “Descobri que Elena não raciocinava como eu. Tento viver como um europeu, mas, ela me faz sentir o subdesenvolvimento o tempo todo”.

O filme é mais reflexivo do que narrativo. As constantes variações de planos e linguagem, a mistura de documentário com a ficção pode confundir o espectador se ele não estiver atento. Contudo, é recompensador porquanto é instigante e ousado. É um filme para ser assistido mais de uma vez, já que não é raso, demandando, portanto, um espírito crítico e observador por parte do espectador para que possa entender os significados da excelente obra de Alea.

Nenhum comentário:

Postar um comentário