terça-feira, 29 de setembro de 2009

"A Mulher de Todos" por Mirtiline Leitão


Vencedor do Festival de Brasília em 1969, nas categorias de melhor atriz (Helena Ignez) e melhor montagem, A Mulher de Todos é um filme que continua con um teor de contemporaneidade, apesar de fazer 40 anos. A liberdade feminina é tratada com um vanguardismo impressionante por Rogério Sganzerla – num terreno de filmes brasileiros até então com teor mais comportado – também diretor de outra obra pontualmente vanguardista: O Bandido da Luz Vermelha, que também traz a inesquecível Ignez (esposa de Sganzerla), num dos papéis principais.

Com roteiro baseado em história de Egídio Eccio, A Mulher de Todos trata da relação de um casal (extremamente moderna para a época), composto por Ângela Carne e Osso, uma ninfômana quase demoníaca de relações relâmpagos, que se recusa a ser submissa a Plirtz (Jô soares), um milionário arrogante e excêntrico. Ela viaja para a exótica Ilha dos Prazeres, e está de caso rompido com seu último amante (Stênio Garcia). Assim, encontra o playboy Vampiro (Antônio Pitanga) e um de seus amantes, Armando (José Carlos Cardoso).

Analisada hoje, Ângela representa contemporaneamente o cinismo da mulher moderna, atualmente representada com tranqüilidade e identificação, na maioria das novelas brasileiras. Ela tem um vício de possuir homens com a mesma velocidade com a qual os abandona. Exercendo um fascínio quase demoníaco sobre eles, trata-os como isca para as armadilhas sexuais que sua personalidade ardilosa é capaz de produzir. Ângela Carne e Osso, a mulher dos homens boçais, como ela mesma se define, se passaria por mais uma esposa do início da década de 70, não fosse o argumento do filme. Ela despreza totalmente a sociedade da qual faz parte, e toda a gama de papéis sociais que dela são exigidos por esse contrato social do qual todos nós fazemos parte: Mãe e esposa. Ela é um personagem tão complexo que é necessário analisá-la no filme, tal qual a enigmática e eterna análise que se faz de Capitu, em Dom Casmurro, que em uma sociedade bem mais rígida do que a de Ângela, já demonstrava ares de insurreição contra a rigidez do casamento e uma doce e misteriosa sedução sem amarras, para a época.

Ainda assim, fica uma sensação de dúvida da aceitação da personagem, de defesa do seu caráter, de revanche diante do tédio da vida que ela levava e que, se na época chocou o público, com certeza teria razão para tal. Ângela encarnou a vontade oculta de muitas senhoras e o pavor de todos os maridos. Uma mulher aventureira num filme/cinema/estilo aventureiro e inesquecível. E tal argumento a torna cada vez mais apaixonante. O grotesco e alienado Plirtz simboliza a classe alta brasileira, completamente idiota diante de si mesma. Era a verdade escancarada, e o público não sabia que estava preparado para aquilo. Mas estava.

È o imediatismo que rege a vida de cada personagem, de diferentes formas, que serve como plano de fundo para a ambigüidade do filme, e fama de “louco” de Sganzerla. O filme é grosseiro, e ao mesmo tempo desbrava muito de inocência tênue que existe em nós. É essa caricatura que Sganzerla faz dos valores sociais que garante a sua originalidade, que mesmo se apropriando de características do estilo Godard, dos filmes pornôs suecos, dos cinemas novos mundiais e de histórias em quadrinhos, faz uma leve crítica à elegância hipócrita do cinema brasileiro da época e constrói seu estilo.

Ângela é divina em seu exagero de viver e vida, ela quer tudo ali, agora. Ao mesmo tempo em que deseja o que todos os personagens desejam, não existe nada parecido com ela, nem O Bandido da Luz Vermelha chega aos seus pés em redenção. Ele ainda é mais inocente do que ela, por ser tratado como um aborto social, um “produto do meio”. Ele não tem muitas opções, mas Ela tem. E faz valer cada minuto delas e do filme. Tornamos-nos cúmplices dela, seus amantes, voyeurs. Sem julgamentos, nos transportamos assim para a mente de Ângela, que é somada à forma Sganzerla de filmá-la. O pior é que adoramos a forma como ambos se exibem para nós, como se além de ninfômana ela gostasse de ser observada. E ele, como se gostasse de colocar sua esposa e musa em suas fantasias e nos mostrar tudo isso sem segredos.

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