domingo, 27 de setembro de 2009

“IRACEMA, UMA TRANSA AMAZÔNICA” por Henrique Vieira


O Brasil, com sua diversidade única, não raramente nos espanta. Se de um lado conhecemos bem o que nos é vinculado cotidianamente pela televisão: Praias cariocas, arranha-céus paulistas, ascendências européias e suas misturas africanas... Custamos a conhecer melhor outras áreas do nosso grande país. A região norte talvez seja a menos explorada. Sabemos que, entre florestas, há vida urbana por lá. Mas nada muito mais do que isso.

Iracema, uma transa amazônica se passa neste mundo distante que é o Pará dos anos 70. Mergulhamos desde o princípio numa realidade muito distante das grandes cidades litorâneas. Sentimos imediatamente um atraso cultural e informacional muito grande. Infra-estruturas pobres, uma massa de gente resignada a uma vida sem perspectiva. Neste meio, uma jovem de quinze anos, Iracema, se prostitui para ganhar a vida. Encontra um dia o caminhoneiro Tião Brasil Grande e passa a viajar com ele pela recém construída estrada Transamazônica, grande projeto do governo ditatorial brasileiro da época. Nessa viagem, eles entrarão em contato com a realidade que circunda a estrada e seus problemas (desmatamento, queimadas…). Finalmente, o motorista irá abandonar a jovem, entregue então a sua sorte e que continuará no caminho decadente da prostituição.

O filme é todo feito na fronteira entre a ficção e o documentário. O que quer dizer isso? Há, de um lado, uma história fictícia que é contada. Esta história possui personagens, que representam papéis que não condizem com suas realidades. Edna de Cássia, que representa a jovem prostituta, não o é de verdade. Como também o conhecido ator Paulo César Pereio, que faz o motorista, não é caminhoneiro. No entanto, há em paralelo toda uma preocupação etnográfica na construção do filme. Uma intenção de retrato fiel à realidade, sem forjamentos. Quando esses dois personagens estão na festa de uma cidadezinha, é uma verdadeira festa que a câmera está captando, com todos os seus participantes verdadeiramente empenhados nela. Não são figurantes que evoluem naquele cenário, mas pessoas de verdade exercendo seu cotidiano. Isto é constatável quando se vê a reação das pessoas à presença da câmera, olhando para esta diretamente, curiosos. Nas cenas dentro de um restaurante, não houve mesmo a preocupação de fechar o estabelecimento para as gravações. Filma-se sem refletor, sem silêncio (o que dificulta muito as vezes o entendimento do que os atores estão falando) Os atores entram, sentam e conversam, dando seguimento à trama, em meio a olhares curiosos do resto da clientela. Clientela esta que está, naquele momento, mais que servindo ao filme como figuração, sendo indiretamente objeto do filme, como material documental.
Essa estratégia de mesclar ficção e realidade tentando passar gato por lebre se fará mais insistente ainda quando o personagem de Paulo César Pereio irá praticamente ‘entrevistar’ alguns trabalhadores do extrato de madeira quanto a suas opiniões sobre a estrada Transamazônica. Esta parte se constitui quase como uma pesquisa social. Lamenta-se, no entanto, que do ponto de vista do conteúdo o resultado seja tão pobre. Nada do que os trabalhadores dizem se mostra muito relevante para a compreensão de sua situação (exceto algumas exceções).

A utilização de muitos não-atores é outro traço do filme. A própria protagonista é um deles e, por sinal, dá muito bem conta do recado (o que não é de longe o caso de outros personagens que aparecem no filme). E aí surge a questão: pra quê usar não-atores num filme? Se o objetivo é poder apresentar personagens o mais próximos possível da realidade do filme, tão próximos que somente eles, sendo parte desta realidade, consigam executar o papel, é compreensível. Mas aí é preciso um grande trabalho junto aos não-atores para que possam desempenhar suas funções. Não é o caso de Iracema, uma transa amazônica. Alguns personagens são patéticos. Absolutamente unicordes. Seria negligencia do diretor? Pelo agrado que o filme me causou apesar disto, prefiro pensar que foi mais uma forma documental de encarar aquele povo. Numa espécie de experimentação sobre ‘como esse povo se representa a si mesmo’… Mas talvez eu esteja indo muito longe…

Em suma, a história é simples e interessante. Interessante, sobretudo pela técnica documental que já foi referida. Um bom registro de um lugar e de uma época, tão distante e tão diferente. Vale a pena ser visto. (mas com legenda!)

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