
Independente do país de origem, da situação histórica ou política em que um personagem marcadamente burguês poderia estar inserido, seus desejos seriam os mesmos: ser rico, inteligente, culto, ter status social e viver rodeado de mulheres.
Num híbrido de ficção e imagens documentais, a primeira idéia que nos vem à cabeça ao assistirmos ao filme “Memórias do Subdesenvolvimento” é a seguinte: a intenção do diretor foi informar que apesar de ficcional aquele contexto está bem próximo da realidade. E ele tem razão. Quem não adoraria possuir todos estes atributos?
Agora imagine esta subjetividade marcadamente capitalista se desenvolvendo numa Cuba imediatamente após a revolução socialista... O personagem Sérgio permanece sozinho no país enquanto sua família migra para Miami. Com o desenrolar do filme ele começa a ser engolido por aquela nova realidade. Ele não se posiciona. Não é contra nem a favor do regime, ele “não é nada” como enuncia a jovem com quem se relaciona. Ele tem consciência da realidade ao seu redor, mas isto não o toca. Ele se sabe decadente, mas nada lhe faz pulsar num sentido contrário.
Lembro-me de um texto de Luís Fernando Veríssimo que relata a procura do escritor durante toda sua vida por qualidades de mulheres e mulheres, mas termina desistindo: “Hoje, com 40 anos, gosto de mulheres com bunda grande. E só.” Talvez essa mulher de bunda grande (e só) seja a Cuba para Sérgio. Um país que pouco lhe oferece ou dispõe. Após procuras ideológicas juvenis o homem de meia idade passa seus dias a simplesmente passar seus dias. Um clima de impotência e indiferença vai suplantando o personagem.
Apenas seus impulsos mais orgânicos são capazes de quebrar-lhe a monotonia. A jovem com quem ele se envolve chama-lhe a atenção somente por seus joelhos bonitos numa passagem que metaforiza bem a falta de perspectiva dele e de sua vida. Ele busca o sexo e envolve-se com ela que lhe garante problemas com a justiça. Esta fica sendo então a única maneira de fazê-lo voltar a tomar conhecimento das mudanças de Estado que estão ocorrendo. No julgamento nós nos aproximamos da mentalidade política da Cuba de então e percebemos as mudanças que estão sendo implementadas.
Como o enfado do personagem, o filme se desenvolve, ou se subdesenvolve já que parece não sair do lugar. Há uma continuidade narrativa, mas a atmosfera estática da indiferença impregna todo o desenrolar dessa espera de Sérgio com pequenos arroubos passageiros de paranóia e desespero.
O enfado revelado na película, no entanto, passa longe de se tornar chato porque traduz o grande talento de seu diretor em nos fazer cúmplices daquela situação como se estivéssemos a assistir a história pela ótica do personagem. Tornamo-nos alheios enquanto participantes daquela realidade. Espectadores e personagens desde a primeira tomada.
Um filme fortemente marcado por um contexto político que consegue não ser panfletário, mas lírico. Ele deixa em aberto qualquer tipo de juízo e convida você, espectador-personagem a tirar suas próprias conclusões se é que elas são pertinentes. Uma proeza difícil de alcançar revestindo a obra com um sentido poético que se completa na interpretação de quem assiste. É um filme imprescindível que não lançou mão de inovações formais por não precisar delas. Não foi à toa que se tornou um clássico.
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