terça-feira, 29 de setembro de 2009

“Memórias do Subdesenvolvimento” por Camila Nascimento Martins


Independente do país de origem, da situação histórica ou política em que um personagem marcadamente burguês poderia estar inserido, seus desejos seriam os mesmos: ser rico, inteligente, culto, ter status social e viver rodeado de mulheres.

Num híbrido de ficção e imagens documentais, a primeira idéia que nos vem à cabeça ao assistirmos ao filme “Memórias do Subdesenvolvimento” é a seguinte: a intenção do diretor foi informar que apesar de ficcional aquele contexto está bem próximo da realidade. E ele tem razão. Quem não adoraria possuir todos estes atributos?

Agora imagine esta subjetividade marcadamente capitalista se desenvolvendo numa Cuba imediatamente após a revolução socialista... O personagem Sérgio permanece sozinho no país enquanto sua família migra para Miami. Com o desenrolar do filme ele começa a ser engolido por aquela nova realidade. Ele não se posiciona. Não é contra nem a favor do regime, ele “não é nada” como enuncia a jovem com quem se relaciona. Ele tem consciência da realidade ao seu redor, mas isto não o toca. Ele se sabe decadente, mas nada lhe faz pulsar num sentido contrário.

Lembro-me de um texto de Luís Fernando Veríssimo que relata a procura do escritor durante toda sua vida por qualidades de mulheres e mulheres, mas termina desistindo: “Hoje, com 40 anos, gosto de mulheres com bunda grande. E só.” Talvez essa mulher de bunda grande (e só) seja a Cuba para Sérgio. Um país que pouco lhe oferece ou dispõe. Após procuras ideológicas juvenis o homem de meia idade passa seus dias a simplesmente passar seus dias. Um clima de impotência e indiferença vai suplantando o personagem.

Apenas seus impulsos mais orgânicos são capazes de quebrar-lhe a monotonia. A jovem com quem ele se envolve chama-lhe a atenção somente por seus joelhos bonitos numa passagem que metaforiza bem a falta de perspectiva dele e de sua vida. Ele busca o sexo e envolve-se com ela que lhe garante problemas com a justiça. Esta fica sendo então a única maneira de fazê-lo voltar a tomar conhecimento das mudanças de Estado que estão ocorrendo. No julgamento nós nos aproximamos da mentalidade política da Cuba de então e percebemos as mudanças que estão sendo implementadas.

Como o enfado do personagem, o filme se desenvolve, ou se subdesenvolve já que parece não sair do lugar. Há uma continuidade narrativa, mas a atmosfera estática da indiferença impregna todo o desenrolar dessa espera de Sérgio com pequenos arroubos passageiros de paranóia e desespero.

O enfado revelado na película, no entanto, passa longe de se tornar chato porque traduz o grande talento de seu diretor em nos fazer cúmplices daquela situação como se estivéssemos a assistir a história pela ótica do personagem. Tornamo-nos alheios enquanto participantes daquela realidade. Espectadores e personagens desde a primeira tomada.

Um filme fortemente marcado por um contexto político que consegue não ser panfletário, mas lírico. Ele deixa em aberto qualquer tipo de juízo e convida você, espectador-personagem a tirar suas próprias conclusões se é que elas são pertinentes. Uma proeza difícil de alcançar revestindo a obra com um sentido poético que se completa na interpretação de quem assiste. É um filme imprescindível que não lançou mão de inovações formais por não precisar delas. Não foi à toa que se tornou um clássico.

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