terça-feira, 29 de setembro de 2009

"O Brasil Grande de Iracema" por Annyela Rocha



Algumas cenas que flutuam sobre o limite do real e do ficcional podem trazer reações interessantes. Pobreza, miséria, falta de esperança, destruição de florestas. Por vezes encenados, por outras, impossível não serem reais. Isso acontece em Iracema – uma transa amazônica, filme de 1974 dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna.

O ano de lançamento no Brasil é 1981. A ditadura conseguiu segurar a divulgação do longa o quanto pôde, enquanto Iracema percorria mundo e ganhava títulos como o de melhor filme em exibição na Europa (1975) e no 12º Reencontre Film et Jeunesse, o prêmio especial de Cannes de Melhor Filme (1978). A polêmica já é um indicativo da importância do filme.

Iracema – uma transa amazônica conta a estória de Iracema, menina que vai à Belém para uma festa religiosa e se torna prostituta. Influenciada por uma colega, acaba viajando no caminhão de Tião Brasil Grande, com o intuito de conhecer cidades grandes, como São Paulo. O caminhoneiro trabalha transportando madeira pelo país, iniciando a história da Transamazônica.

Há no discurso de Tião um amor incondicional pela pátria, um olhar positivo de que o Brasil só pode melhorar, só pode avançar. De forma contraditória, durante as viagens, os dois se deparam apenas com personagens pobres e sem esperança de melhorias nas condições de vida. A oposição presente demonstra provavelmente o choque entre a alienação imposta pelos militares, com as tentativas de manter a ordem calando os “revolucionários” que não “amavam” o país, e a realidade dura vivida nas cidades brasileiras de difícil acesso.

Exemplo disso é um dos adesivos presentes no caminhão de Tião: “Brasil: ame-o ou deixe-o”, slogan criado durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969/1974). Assim como Médici, Tião era gaúcho, confirmando sua importância dramática como representação desse Brasil ideal proposto pela ditadura militar. Ainda assim, Brasil Grande possui plena consciência de como as coisas andam na verdade.

Iracema conversa com as pessoas que vivem nos lugares onde o caminhoneiro para. Como esse filme reside na fronteira realidade-ficção, tem-se a impressão, mas não afirmo com toda certeza, de que esses personagens são reais. Isso é sentido pelas próprias falas, com um tom de improvisadas e espontâneas, pelo enquadramento da câmera, por toda a mise-em-scène em si.

Num bordel qualquer, em algum lugar no meio do nada, Iracema é abandonada por Tião. Ela passa a trabalhar no local. Um dia está com uma outra prostituta e as duas são enganadas por um conhecido. Ele diz que as levará para uma fazenda, de avião, e no outro dia elas estarão de volta. Mas elas acabam num caminhão de um gato (traficante de pessoas). Iracema é deixada no meio do mato. Dá um jeito de se encontrar, no entanto.

A vida dela é a transitoriedade. Ela sabe que não pode parar em lugar algum. Assim como o homem com quem ela teve mais contato, Tião, sua vida é explorar e ser explorada pelos poucos lugares que pode alcançar. No final, os dois se reencontram, mas Iracema já não é mais a mesma. Mais vivida, mais decadente e menos bonita, ela desagrada Brasil Grande, que logo vai embora.

Há cenas de impacto, como uma que mostra uma queimada. A realidade presente em alguns momentos traz determinada angústia. Entretanto, os problemas da região norte do país nunca mais foram trazidos para os filmes. O ânimo que existia em nossos cineastas deveria ser algo juvenil. Talvez eles só fizessem essas fortes críticas sociais porque eram proibidos de fazê-las. Os tais problemas talvez não existam hoje com a mesma intensidade, mas com certeza permanecem o desmatamento inconsciente, a escravidão fora-da-lei e a prostituição infantil.

Dessa forma, Iracema – uma transa amazônica assume grande importância entre os filmes brasileiros. Primeiro por ser um documentário-ficção que traz bons resultados por sua ambiguidade bem elaborada. Segundo porque tem uma boa narrativa, um bom trabalho de direção e excelentes atuações de Edna de Cássia (Iracema) e de Paulo César Pereio (Tião). E por último, porque serve de exemplo de filme a ser seguido.

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