sábado, 5 de dezembro de 2009

"E sua mãe também" por Camila Nascimento Martins


Um olhar maduro sobre jovens de idades diferentes. O filme de Alfonso Cuarón, “Y tu mama también” (2001) é um road movie que acompanha o amadurecimento dos personagens e do seu roteiro. A primeira vista parece uma trama adolescente sem maiores preocupações mas a medida que a viagem vai se tornando mais longa, os três personagens vão crescendo e o drama aflorando.

Julio e Tenoch são dois amigos adolescentes que convidam Luisa, uma jovem adulta, para uma viagem à praia. O tom da narrativa até certo ponto é de pura brincadeira juvenil. Eles conversam sobre sexo durante a viagem e vão ficando cada vez mais íntimos, amigos. A leveza destes momentos da estrada é quebrada, no entanto por um olhar para as margens das rodovias. Eles estão viajando por um México pobre e o filme registra o que está no acostamento daquelas vias. Pontuando os habitantes e os acontecimentos da beira da estrada, o filme parece querer metaforizar o que há de inato nos homens e nas relações humanas. Há uma intenção política neste registro, sem dúvida, mas há também uma metáfora para o que é inerente aos seres humanos de uma forma geral. Luisa precisa daqueles rapazes naquele momento da mesma forma que eles precisam dela; as pessoas se precisam, isto é o que há de estático (inerente, inato) nesta dinâmica que é a estrada da vida.

O envolvimento entre rapazes e a moça é inevitável. Ela está sofrendo pela traição da qual foi vítima e seduz um e depois o outro. Isto os deixa enciumados e capazes de se ferir mutuamente confessando que um já havia feito sexo com a namorada do outro. Estabelece-se o conflito e Luisa ameaça deixá-los. Ela desencadeia e resolve a situação.

Neste ponto o drama está mais maduro. Regado a muito álcool o envolvimento dos três personagens chega ao clímax. Eles fazem sexo a três. Uma experiência decisiva na vida dos dois adolescentes. Eles não estavam preparados para tamanha entrega. Luisa apesar de mais velha parece carregar a inconseqüência da juventude, e uma falta de limites entre a liberdade e a libertinagem está estranhamente presente nela. Isto nos é justificado somente no final quando sabemos que ela estava doente e sabia que ia morrer.

Aos rapazes, sobrou-lhes a lembrança de uma experiência vivida e o final de uma amizade. O filme começa alegre e jovem e termina com o pesar da maturidade. Assim mesmo como a vida.

"A menina santa" por Wilson Rocha


Quais os efeitos que uma sociedade repressora exerce sobre seus indivíduos ? Sejam por critérios religiosos, familiares, profissionais a sujeição a regras estabelecidas aprisiona o homem dentro de um dilema do que pode ser certo ou errado, isolando-o. Em “A Menina Santa” de Lucrecia Martel todos os três papéis principais direcionam-se a debater estes tipos de conflito.

Centrada na figura de Amália, a Santa a que se refere o título, a obra da diretora argentina navega por diversas situações sem proferir uma sentença favorável a um comportamento bastando-se apenas em desenvolver as questões de forma imparcial e livre de méritos pré-definidos. A conclusão é particular, e sendo assim, relativa.

Amália é uma jovem adolescente, filha de pais separados e onde as primeiras impressões sobre sexo e afetividade são confusas. As aulas de religião apenas fomentam essa dicotomia entre o que parecer ser sagrado e o pecado tentador. Os comentários maliciosos feitos por sua melhor amiga, a prima Josefina, muito mais experiente no que tange as tentações do sexo, apenas sublinham sentidos hipocritamente velados entre o que se diz e o que se quer. Josefina é o arauto do filme, que retira as pressões dos dogmas e traz a noção de realidade menos utópica que a educação tenta instituir sem se preocupar com as consequências.

O turbilhão de sensações invade o emocional de Amália quando o médico hospedado no hotel de sua mãe, Dr. Jano, tira uma ‘casquinha’ com a adolescente numa cena que os dois estão em um aglomerado na rua. A atração que Amália sente pelo Dr. Jano é irresistível e o médico passa a ser vigiado pela menina, que o torna ícone dessa sua fase de descobertas. Ícone este que também vive seu momento de ceder aos chamados pecaminosos e permeia um caminho que pode comprometer a sua reputação valorada de homem casado e de posição profissional respeitada.

Neste jogo de sentimentos contidos Helena, mãe de Amália, perfaz esse círculo e tenta restabelecer sua vida após a separação do marido e de saber que o mesmo espera filhos gêmeos de sua nova esposa. Vinculada aos mesmos ditames morais do ambiente que lhe cerca ela não se contém em se insinuar para o médico que já despertara em sua filha sentimentos adormecidos.

A câmera de Martel conduz o expectador, através das sutilezas das expressões faciais dos atores, aos seus mundos particulares, às suas almas. Amália é uma das figuras que tem menos falas no filme, contudo é a que mais se comunica e se deixa transparecer pelo seu semblante. Nessas cenas em que imagem dispensa um diálogo a lascívia, o medo e a insegurança não se ressentem de qualquer outra fórmula para indicar o estado interior dos integrantes do filme. Um olhar mais demorado e hesitante, um sorriso temeroso, um toque despretensioso tem uma carga erótica muito mais forte do que uma cena explícita de desejo. E é disso que se vale o filme de Lucrécia Martel: sensibilidade na captação, exposição e na forma como ela conduz o olhar para a leitura das imagens.

“A Menina Santa” radiografa tudo o que é incontido e o que aflora sem refutá-los ou questioná-los de forma a entendê-los como fazendo parte da natureza humana. Eximir-se dos mesmos pode parecer o mais sensato e menos ingênuo do que sucumbir, porém não mais humano. Essa carga particular do exercício secreto de uma intimidade guardada às sete chaves atrela a si um sentimento de solidão que acompanha e une os personagens na incerteza de seus futuros.

"SOY O NO SOY CUBA?- Resenha do Filme Soy Cuba, de Mikhail Kalatozov [URSS / CUB, 1964]" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Cuba, 1964. Com apenas uma semana em cartaz desde seu lançamento uma grande epopéia cinematográfica sobre a revolução daquele país é arquivada. Após 30 malogrados anos de esquecimento esta parceria entre Cuba e a antiga União Soviética foi redescoberta e restaurada pelos cineastas Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. Estou falando de Soy Cuba, a lendária superprodução regida pelo fotógrafo e diretor russo Mikhail Kalatozov. Que motivos levariam a esse engavetamento repentino, visto que atualmente o filme é considerado uma obra prima do cinema mundial e seu ressurgimento é tratado como um achado arqueológico?

Durante dois anos uma equipe mista de soviéticos e cubanos trabalhou na elaboração desse filme, um extraordinário poema visual de exaltação à então recente Revolução Cubana. Buscando retratar o período que antecedeu a queda do ditador Fulgencio Batista, a obra é claramente dividida em episódios que representam os momentos de dominação americana nos contextos urbano e rural e a resistência do povo cubano no apoio à militância estudantil e à guerrilha na Sierra Maestra. São capítulos intercalados pela narração em off da própria nação cubana, uma voz feminina que recita poeticamente sua situação social e política. A obra segue a forma de construção eisensteiniana, com partes, que funcionariam de maneira individualizada apresentando os diversos momentos da revolução, porém com o sentido definitivo fechado da maneira que é disposta na composição total.

As elites culturais dos dois países recusaram a proposta. O lado cubano não se sentiu representado no filme. De fato há uma excessiva estetização, principalmente visual, da história, dos tipos humanos, sociais e indumentárias. O olhar estrangeiro predominou na representação do povo e na dramaticidade exagerada de algumas seqüências. Embora todo virtuosismo da equipe técnica, principalmente da impecável, acrobática e belíssima fotografia [lente grande angular / filme infravermelho], torne a obra um primor de qualidade estética, toda essa beleza desagradou justamente por não ser Cuba. Já o lado soviético, acredito que com todo esse foco na construção formal e dramática, recusou o filme por achá-lo pouco revolucionário. Seus elementos narrativos são trabalhados de maneira intensamente poética, porém enfatizando uma postura mais defensiva das massas, e freqüentes situações de opressão e humilhação da parte do ocupante americano.

Conceitualmente Soy Cuba é um grande filme e sua força está concentrada mesmo na forma: além da já citada fotografia, aliada à grandiloqüência dos seus planos-seqüência estão os competentes recursos de sonorização e montagem, que criaram diversas e criativas soluções narrativas para exaltar ainda mais a estética do filme. No entanto, toda essa habilidade técnica dos soviéticos pareceu não ser suficiente para um registro fidedigno da realidade cubana, talvez por uma falta de aprofundamento nos estudo da cultura do país. As pessoas pareceram um tanto artificiais, a imagem dos heróis cubanos é apenas sugerida, o nome do filme se mostrou pretensioso... e a voz em off soou mais como uma senhora de sotaque eslavo ao dizer: “Sou Cuba”. Mesmo sem ser.

"Whisky" por Cleiton Costa


Nos últimos dez anos, a America latina chamou a atenção do mundo para o seu cinema. Entre diversas produções de vários países, alguns filmes se destacaram por encarar um tema ainda pouco explorado pelo cinema ocidental (e improvável em Hollywood): o cotidiano comum. A argentina Lucrecia Martel encabeçou tal iniciativa com Pântano (La Ciénaga) e nos seus filmes seguintes, explorando o cotidiano ao extremo, onde tudo indica algo, mas nada acontece no sufoco da rotina. As Luvas Mágicas (Argentina, 2003) do diretor Martín Rejtman leva de uma forma mais descontraída essa abordagem da rotina entediante dos seus personagens. Mas, o melhor exemplo (a meu ver) da perfeita construção do tédio do cotidiano é Whisky (Uruguai, 2003) dos diretores Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Filme que alcança o equilíbrio entre o fascinante e o maçante (o desequilíbrio é um perigo constante de filmes com essa proposta).

Whisky nos apresenta Jacobo Köller, um senhor judeu que está indo pros 60 anos, dono da mini-fábrica de meias Köller. Marta é sua funcionária antiga, que já beira os 50, e que cuida do fabrica junto com ele, além de fiscalizar as outras duas funcionarias. Jacobo é carrancudo, ranzinza, o típico judeu “econômico”, frio, mas educado. Marta é a uma mulher introspectiva, passiva, obediente. E o mundo dos dois é: chegar ao amanhecer no trabalho, sair à noite. Um mundo acostumado à repetição, às maquinas, à incomunicabilidade. Mas a relação dos dois é quase conjugal. O conjugal que virou rotina. Talvez nada mudasse esse modo de levar a vida, a não ser o elemento estranho ao meio: o irmão de Jacobo, Herman, que mora no Brasil e vem para as cerimônias de passagem do aniversário da morte da mãe judia. Herman, o oposto, moderno, simpático, extrovertido, inquieto. É o bastante para abalar a vida dos dois seres inertes.

Whisky toma como ponto de partida esses personagens e seus universos, mostrando um delicado cuidado na construção deles, e do modo minimalista de com eles se relacionam. Personagens que têm tantos detalhes que preencheriam páginas. Um desses mundos próprios é o que está entre os dois irmãos: a rivalidade de Jacobo para com Herman, tudo transmitido sutilmente através de pequenos gestos de antipatia, onde Jacobo faz de tudo para não ficar por baixo do irmão. Personagens que praticamente personificam a situação social do Uruguai (como o arcaico Jacobo) e do seu vizinho Brasil (como o moderno e desenvolvido Herman).

Apesar da força dos personagens dos irmãos serem sempre colocados em foco e darem mote a história, Marta consegue, com o decorrer da narrativa, atrair a filme para o seu mundo. Um mundo particular e fascinante. Uma mulher fechada que esconde a grande pessoa que é, e que só precisa de uma mão para se soltar: Herman, ele é que vai incentivar esse desabrochar, criando momentos em que ela aprenderá a se divertir e a sorrir de verdade (e não forçar, como ela costumava fazer), relembrando até seus tempos de garota, como na brincadeira de inverter as palavras. Todo o sentimento disfarçado dela por Jacobo, indo gradativamente se revelando aos poucos (mas até no máximo da revelação, ainda assim, sutil), e mesmo diante das claras/sutis declarações de afeto, a indiferença de Jacobo. Situação essa que provoca a grande transformação do filme: a Marta que vai ficando cada vez mais independente desses sentimentos, em uma crescente auto-valoração, até ao momento de libertação total, na cena em que ela fuma na frente dele.

E a grande ironia de Whisky é que o título, que remete à bebida alcoólica, não tem esse sentido no filme, porque, no Uruguai, essa é a palavra usada na hora de tirar uma foto. Momento que acontece duas vezes: com Jacobo e Marta, e entre os três. Momento que em que eles fingem estarem felizes e unidos. Mas logo depois, cada um segue seu caminho.

"As luvas mágicas" por Juliana Ribeiro


O porquê do título desse filme de Martin Rejtman se perde devido à quantidade de coisas extremamente absurdas que se passam num curto espaço de tempo. Vários relacionamentos se constroem e se rompem, e ao mesmo tempo pouco sentimos suas repercussões, pouco o tempo é dentre um fato novo e outro.

Alejandro é um taxista, tem amigos não tão convencionais, que gostam de música menos convencional ainda, e tentam a todo custo deixá-lo surdo, mas nem todos entendem essa surdez. Ele resolve vender seu carro para investir no negócio de luvas mágicas, que acredite ou não, realmente existe (nunca tinha ouvido falar), coisa de argentino. Bem, as situações mais cotidianas são retratadas de maneira tão peculiar e histérica, que fica difícil de acreditar que esse tipo de negócio realmente exista.

O novo cinema Argentino é bem recebido no cenário mundial principalmente pela forma como representa o cotidiano de maneira cômica, estranha, comum no aspecto da circularidade da vida de todo dia como em Whisky. A empatia que temos com os personagens de As Luvas Mágicas é criada pela forma como dançam, pelos diálogos entrelaçados, que começam numa cena e são reiterados em outra totalmente diferente, e no meu caso, pela hipocondria. A presença dos calmantes é posta de forma teatralmente hilária, só fico decepcionada pela dosagem ter diminuído com o tempo (quem começa com Valium e termina com Rivotril?), deve ter sido essa a intenção.

O filme é curto e quando termina passa a sensação que é cada vez mais comum no cinema Argentino de que o final ainda estaria por vir. O que é perfeitamente aceitável subentendendo-se que a vida dos personagens ainda continua, e que não é necessário um final real para cada passagem dessas vidas. É um tipo de abordagem que pode facilmente destruir o filme para o público, mas não é o caso de As Luvas Mágicas. O filme é tão prazeroso, que apesar do final súbito, passa a sensação de ter sido bem resolvido quanto à proposta.

"As luvas mágicas" por Paula Riff


Assim como outros filmes do cinema latino americano, “As Luvas Mágicas” também tem como tema central o cotidiano das pessoas. O que o diferencia dos demais filmes é a fuga nonsense que os personagens se utilizam para escapar do monótono e do previsível. Sendo assim, ao invés de utilizar-se de um enredo monótono e lento, de personagens densos e do anticlímax, esse filme opta por uma abordagem cômica e absurda, exatamente para servir de contraste a esse cotidiano simples e “normal” que estamos acostumados a ver. É através das relações esdrúxulas entre os seis personagens principais que a história se desenvolve e constrói situações tão ridículas que extrapolam o habitual e compõem cenas quase surreais.

Alejandro é um homem de meia idade que não tem família construída e que permanece em um subemprego. A sua rotina está aparentemente normal até que sua noiva, Valeria, resolve romper o relacionamento sem muitos motivos e concomitantemente surge uma relação repentina entre ele e Sérgio que, de apenas mais um dos seus vários clientes, se transforma em seu amigo, sócio e conselheiro amoroso.

Ao longo do filme notamos que o único personagem completamente acomodado e aparentemente satisfeito com sua rotina é Alejandro. Sendo assim, de todas as mudanças que acontecem a ele, nenhuma delas, tem iniciativa sua. Ele é, a todo o momento, forçado ou influenciado pelos outros personagens a mudar e consequentemente a fugir do que lhe é habitual. Desta forma, tanto o fim como o início dos seus dois relacionamentos não dependeram de uma ação sua, assim como a idéia de investir em um negocio e prosperar economicamente na foi sugerida por ele. Alejandro parece ser incapaz de agir sozinho, talvez por estar genuinamente feliz com seu cotidiano ou apenas por não ter nenhuma ambição, a realidade é que Alejandro é um personagem completamente dependente, e se a história fosse apenas sobre ele, o filme não teria ação alguma. Talvez seja por isso que o filme seja tão repleto de personagens e todos parecem ter relevância até maior do que Alejandro de quem, aparentemente, é o papel principal.

Cada personagem tem uma loucura a parte que expõe um pouco da urgência interior que todos tem em negar e fugir da mesmice do dia-a-dia. A mania de Sérgio em gravar músicas de heavy metal, o vício que Valeria adquire pela mistura de remédios e uísque e a obsessão de Susana em se intrometer na vida dos outros por não ter nada de excitante na sua própria vida são exemplos que ajudam o filme ao dar esse formato grotesco e completamente diverso dos demais.

O final é feliz para quase todos os personagens com exceção de Alejandro. Embora tenha, assim como todos os outros personagens, conseguido mudar sua vida, Alejandro não está satisfeito, quer voltar a sua normalidade, a ter o seu carro velho. Resta saber se ele vai tentar voltar ao seu status quo ou vai se conformar novamente e esperar que os outros tomem atitudes por ele.

“As Luvas Mágicas” é um filme que cumpre o que seu enredo propõe. Vai além dos filmes habituais e quebra com um tipo de cinema latino americano que já estava começando a virar rotina. Afinal, tudo que é demasiadamente repetido cansa, até mesmo o cinema.

"Pipoca para Pensar" por Nilson Braga de Almeida


O entretenimento no cinema é visto como algo sem valor para alguns especialistas. Talvez, apenas eles conheçam os reais motivos para isso. Porém, não precisa ser expert no assunto para identificar características que ajudem a confirmar tal afirmação. Olhando, por exemplo, para as diversas comédias românticas (O Amor Não Tira Férias, Se Eu Fosse Você 2) e filmes adolescentes (as intermináveis sequências de American Pie) que todo ano são lançados, dá pra facilmente perceber indícios do porquê da existência dessa linha de pensamento.

Piadas sem nenhuma graça e, por vezes, grosseiras. Situações forçadas que beiram o ridículo. Total previsibilidade. Estes são apenas alguns dos muitos erros que acometem a grande maioria desses filmes. Feitos exclusivamente para obterem êxito financeiro, usam fórmulas já conhecidas, sem nenhuma inovação.

Mas, ainda bem que algumas películas quebram essa regra e conseguem divertir com qualidade, contrariando a visão generalista dos já citados entendidos da matéria. No cenário latino-americano, que não é tão diferente no sentido comercial da coisa, obras como Lisbela e o Prisioneiro e O Filho da Noiva mostram que o sucesso econômico não é sinônimo de pobreza artística.

Neste último vemos, de um lado, um típico melodrama: a mãe de Rafael tem Mal de Alzheimer e o seu pai pede ajuda para realizar um antigo sonho. Do outro, um romance: a namorada dele se sente só, insatisfeita com a falta de presença do companheiro. Nesse meio, ainda há um relacionamento distante com a filha pequena e a chegada de um antigo amigo, pra lá de abusado. De quebra: situações cômicas a todo instante.

Só de pensar nesta mistura de gêneros, dá pra imaginar que não é nada fácil fazer a composição destas cenas e encaixá-las numa relação de coerência que agregue, ao mesmo tempo, dinamismo e simplicidade. Além de conseguir isso, a produção argentina faz com que o espectador e o protagonista se dividam entre a paixão, o compromisso, a família, a responsabilidade, tudo mostrado numa rápida passagem de tempo onde quase nada do que realmente importa na vida é aproveitado, como ocorre no mundo contemporâneo.

É isso o que permeia o homem moderno: o corre-corre comum dos dias agitados, numa constante aceleração, onde não se pode parar, nem pra pensar, nem pra perceber que ao redor existem coisas de grande valor, pessoas e momentos que não voltam jamais. Pena que só mais tarde vem o desapego ao que não interessa. Pena que depois já não dê mais pra fazer muita coisa.

Com certeza, a originalidade não é o trunfo desta obra de Juan José Campanella. Embora repleto de ingredientes exaustivamente testados, o filme serve para provar que o cinema pode, mesmo utilizando os mesmos temas, os mesmos enredos, se tornar interessante quando se usa a criatividade, encontrando soluções inesperadas para situações banais e explorando sabiamente os momentos-chave da trama. Ao assisti-lo, o público sai da sala de projeção com um gostinho de satisfação, com uma sensação de que o cinema pode fazer rir e chorar, além de pensar.

"Navegar impreciso- resenha sobre 'O canto do mar'" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Navegar é preciso, viver não é preciso... A beleza das ondas e o horizonte indefinido do mar sugerem caminhos turvos, trajetos e possibilidades nos quais uma pessoa pode projetar suas esperanças, seus sonhos, seus ideais. Talvez por uma imprecisão do destino em terra, muitos indivíduos enxergam na serenidade das águas a solução para seus problemas e a satisfação de suas necessidades. A incerteza deste caminho parece ser algo mais concreto, mais sólido que a rigidez da vida em terra firme. As palavras do poeta se aplicam muito bem à abordagem de o Canto do Mar [Brasil, 1953], filme de Alberto Cavalcanti em sua fase brasileira.

Gravado no Recife, a obra fala da miséria e da falta de perspectivas de vida do homem nordestino. Um grupo de retirantes do sertão passa uma etapa no litoral pernambucano enquanto espera pela partida rumo ao sul do país, em um navio. É durante esta fase de transição que nos é apresentada a família de Raimundo, residente na capital. Após um acidente seu pai torna-se inválido por deficiência mental. Maria, a mãe, toma a liderança da família, cabendo ao filho parte da responsabilidade pela subsistência de seus parentes. Além dos citados, a irmã mais velha Nina e o irmão pequeno, Silvino. Assim, Raimundo e as pessoas de seu convívio sofrem com a falta de perspectivas do meio em que vivem.

Cada um lida à sua maneira com a dura realidade: A mãe é bastante severa, trabalha como lavadeira e procura manter a unidade da família, no entanto seus esforços são em vão; Nina, desiludida, encontra no meretrício uma alternativa ao destino que lhe espera; E Raimundo, ainda esperançoso, encontra no mar a saída para seus problemas. Planeja fugir com a namorada para o sul, esforçando-se para conseguir o dinheiro para as passagens de navio para a cidade de Santos. Porém, como fala uma garota ingênua – interessante personagem secundária – o destino engana. E é com essa situação que o jovem aos poucos se depara.

O Canto do Mar é um remake do filme En Rade, do próprio Cavalcanti, produção francesa de 1926. Nascido em uma família de militares positivistas, não encontrava aceitação em casa, devido à sua homossexualidade. Estudou na Europa, onde fez carreira no cinema, tendo lugar de destaque nas vanguardas francesas e na escola documental inglesa. Após trinta anos fora do país, é convidado para o cargo de direção de arte na Vera Cruz, a grande tentativa de estabelecer uma indústria cinematográfica nacional. Junto com sua bagagem internacional, Cavalcanti traz uma série de profissionais estrangeiros para dar conta dos filmes, além de capacitar brasileiros para os cargos técnicos.

Como se sabe, a Vera Cruz foi um fiasco. Além do preconceito que sofreu por sua orientação sexual, o cineasta sofreu vários ataques tanto dos intelectuais conservadores quanto dos mais progressistas. Assistindo O Canto do Mar, pode se imaginar algumas das razões: O filme mistura elementos do então recente neo-realismo com aspectos mais tradicionais, principalmente na forma. É um filme de transição, precursor da temática nordestina tão abordada na década seguinte, com o cinema novo. Causou polêmica também ao expor para o mundo a miséria do contexto nordestino, além de elementos da cultura popular, o que deve ter incomodado bastante as elites culturais. Mesmo assim o filme é bastante equilibrado, tem um bom roteiro e qualidade na abordagem e na técnica. Mas a excessiva estilização fugiu um pouco do contexto nacional. O sotaque brasileiro parece forçado...

Assim como os personagens de seu filme, o cineasta se deparou com uma realidade que lhe foi hostil. Mesmo com o prestígio internacional, Cavalcanti não conseguiu se adaptar ao seu local de origem. Era um estranho no ninho, um estrangeiro no próprio país. Profundamente amargurado, o brasileiro partiu de volta para a Europa, onde também se sentia deslocado entre três países, França, Inglaterra, Brasil. A imprecisão do destino forçou-o a procurar por outras identidades, nacionalidades, navegar por outros horizontes.

“Whisky” por Rafaella Cavalcanti


Solidão, monotonia do cotidiano, inércia dos personagens, mecanização do ser humano. O tempo circular. Tudo isso perdura no premiado “Whisky” (2004) de Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll.

A história é simples. Jacobo (Andres Pazos) é um homem de seus 60 anos que reside em Montevidéu, Uruguai. Vive sozinho e trabalha todos os dias em sua pequena fábrica de meias. Marta (Mirella Pascual, em brilhante atuação), 48 anos, é supervisora da fábrica e todos os dias espera na porta, exatamente no mesmo lugar, para Jacobo abri-las. A mesma rotina. Ligar as máquinas, preparar o chá, ajeitar as persianas. Tudo isso bem frisado por cenas demoradas e planos algumas vezes repetidos. Quando chega Herman (Jorge Bolani), o irmão de Jacobo que está há mais de 20 anos morando em Porto Alegre com a família. Ele também possui uma fábrica de meias, mas aparentemente os negócios vão bem melhor que os do irmão. Ele vem para a matzeiva da mãe, que os judeus fazem para a colocação da pedra do túmulo. Jacobo, por vergonha ou mesmo por algum instinto competitivo entre irmãos, pede que Marta se passe por sua esposa enquanto Herman se hospeda em sua casa.

É nesse fiapo de narrativa que “Whisky” se firma, marcado acima de tudo pela delicadeza, somado ainda à um humor peculiar. Aquela inércia dos personagens reflete-se nos cenários, nos carros velhos, nas poucas pessoas da cidade. Tudo lembra um Uruguai que já viveu melhores dias.

Os pequenos detalhes que vão sendo descobertos sobre cada personagem, tanto o espectador como eles mesmos, tornam-se mais próximos, gerando uma nova percepção sobre quem são aquelas pessoas, mas principalmente o que as fazem estar ali envolvidas naquela prisão de rotina que acabam por acomodarem-se.

Se a promessa da poética do cotidiano ordinário no cinema latino-americano de fato é uma promessa, o filme está em suas melhores definições. É um melodrama discreto, mas tão capaz que tentar inserir elementos que o deixasse “convencional” talvez simplesmente não funcionasse tão bem.

O final que surpreende mesmo sem grandes reviravoltas, é a prova de que fazer o simples ser tão bom pode ser mais difícil do que parece.

domingo, 29 de novembro de 2009

"Diários de motocicleta" por Cleiton Costa


Se tem um filme que possa ser chamado vulgarmente de latino-americano, esse filme é Diários de Motocicleta (Walter Salles, 2004). Ele foi produzido por cinco países latino-americanos (Brasil, Chile, Argentina, Peru, Cuba, entre outros não latinos); o diretor é brasileiro; atores pricipais: Gael García Bernal (mexicano), Rodrigo de La Serna (argentino); e a história tem como protagonista quem viria a ser o maior revolucionário-ícone-pop latino (ou talvez mundial): Ernesto Guevara de la Serna, antes de se tornar o tão conhecido guerrilheiro “Che”.

O filme narra a trajetória de Guevara e seu amigo Alberto Granado, que saem da Argentina com a moto “la poderosa” decididos a conhecer a America do Sul, por motivos essencialmente turísticos. Mas, com o passar do longo caminho percorrido, suas visões idealistas da America exótica vão ruindo diante da dura realidade dos países por que passam. Foi essa realidade que afetou profundamente Guevara e o fez seguir o rumo militante. A transformação no fim da viagem. O que afirma Diários de Motocicleta na proposta Road Movie.

Walter Salles, como diretor, teve uma boa sensibilidade para filmar essa transformação. O filme assume o ponto de vista de Guevara, e seu interior é refletido na estética formal da imagem. Logo no começo, os planos são mais rápidos, muita câmera na mão, e a fotografia mais intensa e quente, expressando a animação de começo de viagem, o início de uma aventura. Com o andar da viagem, quando encaram um povo sofrido e injustiçado pelos mais poderosos (donos de terras), gradativamente, os planos vão ficando mais lentos e contemplativos, a fotografia mais naturalista, quase documental.

Mas o verdadeiro desafio de Diários de Motocicleta estava claro: a construção do personagem Guevara. Desafio este que Walter Salles não venceu. Diante de tal símbolo latino (ícone humano que existiu e foi inventado ao mesmo tempo), sempre pairou o questionamento: como construir sua imagem num filme? Mistificá-lo mais do que já é? Ou revelar o lado pouco explorado do humano por trás do mito? Salles resolveu mistificar, o que não acrescenta informações sobre quem Guevara realmente foi. Deu-nos mais do mesmo, o que já sabemos decorado. O filme transforma Guevara na moral cristã personificada, a bondade em pessoa, o homem honesto que nunca mente, que entende a dor do próximo, que sempre estende a mão ao mais necessitado: seja para dar tudo que tem (como no caso dos comunistas ambulantes), seja para demonstrar confiança e respeito (no caso dos leprosos). Além das alegorias primarias para demonstrar essa transformação: os 15 dólares (nada sugestivo) da sua namora que ele doa, demonstrando total desapego do material; não esquecendo a cena da travessia do rio a nado, filmada de forma grandiosa, que simboliza a concretização da metamorfose. Só falta ele virar uma borboleta no final do filme, ou Jesus Cristo.

É claro que esse não é o único filme a abordar Che dessa forma. O próprio Che (primeira parte da cinebiografia de Guevara do diretor Steven Soderbergh) vai por esse caminho, mistificando Ernesto em sua fase militar em Cuba: homem duro, mas que nunca perde a ternura. Na verdade, os dois filmes se completam, cumprindo o papel de endeusamento. Fase do pré-mito e a fase do mito.

Diários de Motocicleta seria um bom filme se não tivesse esse Ernesto Guevara idealizado. Afinal, o filme é bem filmado e bem realizado narrativamente, além do valor social-histórico: escancarando a America Latina injusta do “ontem” que reflete no hoje. Mas não podemos analisar um filme pelo o que ele poderia ser, e sim, pelo o que é, pelo que chega até nós. Diários de Motocicleta é tão idealista quanto à tão famosa imagem do Che, com sua boina e seu olhar distante, que ironicamente virou marca registrada em camisas de lojas capitalistas.

sábado, 28 de novembro de 2009

"Porque Machuca não fez historia" por Amanda Hureau


Chile, 1970. Allende está no poder, e estamos a três anos do golpe de estado. No bairro nobre de Vitacura, a escola Saint George é dirigida por um padre inglês. Como muitos dos padres estrangeiros que foram pro Chile naquela época de efervescência social, tenta promover e pôr em prática princípios socialistas, claro, mas também promover a igualdade social, o respeito e o companheirismo. Assim é como chega Pedro Machuca nessa escola, num intento de “mesclar as pêras com as maçãs”. A diferença é clara, os novos são “de camisa negra”, ou seja, mestiços e/ou de traços indigenas, e os de Vitacura, brancos e loiros. O padre é acusado por pais de alunos de querer manipular e “conscientizar seus filhos, mesclá-los com gente que eles não têem razão de conhecer”.

Num intento de reunir o (pouco) que se sabe dum tempo histórico nem tão distante, o jovem diretor, Andrés Wood, representa provavelmente grande parte da juventude chilena, que utiliza o pouco que se sabe para criar História, sua história. O problema é, justamente, que sabemos pouco. E não só os jovens. Ante a verdadeira falta de qualquer trabalho de historiador, uma análise histórica do período se ve dificultada por alguns aspectos: os documentos históricos aos quais se tem acesso são na maioria testemunhos, livros escritos por personalidades políticas (e usados com fins politicos), etc., mantendo o tema como tabu na sociedade, e ainda pior, na escola. Por tanto, talvez a unica opção restante seja se conformar. E é o que A. Wood faz.

Por que Machuca não fez história? Porque é apolítico.

Nada de ser um “filme feito por comunistas para comunistas”, nada de se posicionar. O enfoque não é o conflito político, e sua intenção não é explicar con precisão a epoca (recordemos que não é um documentarío senão um filme de ficção). E ainda menos defender o governo de Allende. É claro que não tem legitimidade histórica, nem valor histórico, nem era esse seu objetivo. O que representa é uma grave fratura social, que o conflito político simplesmente cristaliza, mas não provoca, nem inventa. O que representa é a pouca compreensão que a criança tem dessa fratura, da desigualdade, e como consequência, como ela as reproduz. O que representa é uma história linda de dois meninos de classes sociais diferentes (inclusive opostas), que tentam construir uma relação de amizade; e vemos como isto não resulta, pois no final, o que fazemos senão reproduzir o que nos ensinam? “Quando vistes que um branco seja amigo do indio?”. E não é preciso ser comunista para encontrar a história linda e amorosa. Porque o vídeo teve tanta importância no Chile? Entre outras coisas, porque não se posiciona. Seria por acaso que até pinochetistas gostaram dele?

Por que Machuca não fez história? Porque é atual.

Pois o filme não trata apenas do passado, duma época ultrapassada de confronto entre idealistas de esquerda e aqueles que lhes temiam e queriam voltar à Ordem. O filme trata, mais que nada, dum confronto social que segue sendo atual. Que não me venham dizer que já não não existem os “de camisa negra”, que já não se insulta simplesmente pronunciando a palavra”indio”, “roto”; que não me venham dizer que já não existem “os do otro lado do rio”, os “dessa favela asquerosa”, os “ordinarios”. Quem conhece o Chile sabe, perfeitamente, que ainda hoje a sociedade encontra-se fraturada entre aqueles que apoiam Pinochet e aqueles que não; e essa fratura, muitas vezes, se reflete no social: aqueles para quem tudo sobra, e aqueles para quem tudo falta. E essa fratura social é nítida. Não são meros estereótipos.

Quem conhece sabe que, tristemente, a juventude, como a pensa Benedetti, tem visto impôr-se sobre si uma “proximidade feita de incomunicação e distância”.
“A partir de uma ótica infantil, mas nada amnésica, viram uma boa parte dos duros confrontos e viram como outros adolescentes, os de sesenta e nove e setenta, eran feridos como inimigos e como seqüestraram seus país, às vezes suas mães e até seus avós, que e eles só voltariam a ver muito mais tarde e ainda atrás das grades e de longe ou também de uma proximidade feita de incomunicação e distância. E viram chorar e choraram eles mesmos junto de ataúdes que era proibido abrir, e viram como depois veio o silêncio estrondoso nas esquinas, e as tesouras nos cabelos e no diálogo, e isso sim, muito rock e jukeboxes e caça-níqueis para que esquecessem o inesquecível.” (Primavera num espelho partido, 2009, p. 95)

Quem conhece sabe, que nos foi imposto o silêncio, que nos foi dito e repetido que já não vale a pena recordar essas coisas e botar o dedo na ferida.

E é por isso que Machuca não fazendo história, nem História, conseguiu, tão somente, sensibilizar, utilizando o olhar infantil, em torno de um tema que é tabu. Mesmo se não contribuiu em nada enquanto para um trabalho histórico que todos esperamos e precisamos, talvez sim tenha elevado a curiosidade de alguns, que deixando seus “comunistas de merda” ou “pinochetistas de merda”, decidiram averiguar mais alguma coisa sobre a época, e perguntar por aquilo que foi desaprendido. Que decidiram tentar compreender, antes de assumir posturas partidárias, muitas vezes sem argumentos, nem conhecimento. E o problema é esse. Que por querer ser sensível e apolítico, não amplia ese desejo de saber mais. Pois a história é linda, e com isso, já é suficiente.

Onde foi parar o desejo de Benedetti de que aquelas “carroças, que ainda estiverem rodando, ajudem a recordar o que viram. E também o que não viram”?

"Machuca" por Henrique Vieira


Haa... Como se gosta de um bom e velho “arranca-rabo” entre a direita e os ideais comunistas. É verdade que não está mais tão em voga ultimamente - não há mais pra quê. Mas muitos saudosistas desiludidos se realizam, nem que por um momento, ao verem reativadas suas velhas e enérgicas discussões. Seus antigos temas da juventude. Afinal, o mundo era mais fácil enquanto estavam estabelecidos, bem direitinho, o bom e o malvado, cada um bem fixo em seu lado. É repousado neste tema e nesta visão simplista do mundo que Andrés Wood, jovem diretor chileno, faz um filme que, como diria Luís Fernando Veríssimo, é “profundo na superfície, mas superficial no fundo”.

O ano é 1973. O lugar, Santiago del Chile. Salvador Allende governava o Chile e o aproximava cada vez mais da esfera soviética, despertando inquietude em muitas pessoas do país. Na sociedade, duas facções se opunham: os que o apoiavam e queriam um regime socialista e os que o desaprovavam. É neste ambiente que acompanhamos um trecho da vida de Gonzalo Infante, garoto de 11 anos de classe média alta, que estuda num tradicional colégio de elite dirigido por um padre inglês. O padre é adepto às idéias socialistas e, um belo dia, decide aceitar em seu colégio alunos oriundos de uma favela próxima da escola. Entre esses alunos está o jovem Pedro Machuca, de 11 anos também, que termina se tornando amigo de Gonzalo.

A adaptação dos novos alunos não é fácil. Os “meninos ricos” zombam deles e os maltratam. Coisa que também acontece com Gonzalo. E aí se estabelece a característica mais marcante e irritante do filme: seu maniqueísmo, que aniquila qualquer possibilidade de aprofundamento na temática abordada. São os meninos bonzinhos de um lado (Gonzalo e Pedro) contra os meninos definitivamente malvados do outro. O loirinho, líder dos “meninos do mal”, se apresenta como um verdadeiro Draco Malfoy diante de Harry Potter.

Esse maniqueísmo logo toma proporções políticas quando, ao se aproximar de Pedro e de sua vida, Gonzalo se depara com o conflito entre o mundo ao qual pertence, liberal e conservador, e o mundo do colega, cujo tio e prima, inclusive, participam de passeatas comunistas e apóiam deliberadamente Allende. Além claro de perceber a desigualdade nos níveis sociais e econômicos que existe entre os dois.
O tema humano que tem por trás disso é muito interessante. Mas, infelizmente, é tratado com uma obviedade irritante. Desde o início, o filme adota seus “bonzinhos”. O padre comunista, a família de Pedro (muito simpática e prestativa), o próprio pai de Gonzalo, que defende idéias mais de esquerda. Todos eles partidários da esquerda, claro(!). Já a mãe de Gonzalo é mostrada como alguém superficial, que se preocupa demais com roupa e objetos importados e que, inclusive, trai o marido com um amigo rico que só pensa em dinheiro. Claro, ela não podia deixar de fazer parte dos “malvados” do filme, fazendo, inclusive, parte de uma passeata anticomunista num dado momento do filme.

Essa grande dicotomia é evidenciada num encontro dos pais do colégio com o padre onde muitos pais (de direita) revelam sua completa desumanidade (característica de qualquer pessoa de direita afinal, não é mesmo?) ao não quererem os “meninos pobres” perto de seus filhos, enquanto que os pais de esquerda, inconformados, defendem sua permanência.

Durante todo o filme, somos torturados por frases clichês que reforçam a irritante obviedade com que se é tratado o maniqueísmo. “Volta para a favela!”, “favelado de merda”, “meus amigos, temos que respeitar a todos de forma igual!”, ou ainda, as repetidas vezes que Pedro está diante de algum pertence de Gonzalo e exclama: “como você tem sorte!”. Como se o espectador precisasse disso para se dar conta da disparidade econômica entre os dois.

Machuca não se limita a um filme político. Na realidade o enfoque da história deveria ser mesmo o da relação de amizade entre os dois meninos. Mas esta relação está tão embainhada desse conflito político, que por sua vez é tratado de forma tão absurda, que fica difícil falar de outra coisa. O mais profundo que o filme atinge é uma sugestão de que, a meio prazo, uma relação entre dois meninos de classes sociais tão distantes se faz muito difícil, pela incompatibilidade inerente a esta relação. Mas quase não se aponta isso e é preciso meio que pegar no ar.
Finalmente, Machuca agrada àqueles esquerdistas nostálgicos que não perdiam uma oportunidade de trucidar a direita e vêem no filme seus inimigos bem definidos sendo postos como vilões. Tal os vietnamitas eram os vilões do herói Rambo. O filme chega a ser, poderíamos dizer, panfletário. Não serve como registro histórico, visto que é completamente tendencioso. É um filme de comunista feito para comunistas, numa época em que o comunismo não vale mais nada.

“Sorriam e digam WhisKY!” por Yanna Luz


“Sorriam e digam WhisKY!”

O que se sabe do processo colonial da América Latina, em suma, é que foi duro e explorador, e que os ocupantes não pouparam esforços para desconstruir os ambientes que encontraram e transformá-los em espaços com características semelhantes às dos quais eram oriundos. Aconteceu com o Brasil, de metrópole portuguesa, e aconteceu com todos os outros países da América do Sul, Central, e México - no Norte.

O que se pode dizer, então, no contexto atual de análise, sobre o que aconteceu e acontece de forma convergente com a cinematografia de tais países ocupados? O que pode ser dito é, provavelmente, o que disse Paulo Emílio em seu “Cinema e trajetória do subdesenvolvimento”, no qual alinhava o modo como tais países foram colonizados ao comportamento de seus Cinemas, tratando o primeiro fator como justificativa para o modo de conduta do segundo. Ao Brasil sobram comentários do tipo “Somos um prolongamento do ocidente, não há entre ele e nós a barreira natural de uma personalidade hindu ou árabe que precise ser constantemente sufocada, contornada e violada. (...) A peculiaridade do processo, o fato do ocupante ter criado o ocupado aproximadamente à sua imagem e semelhança, fez deste último, até certo ponto, o seu semelhante.”. Importante observar que tal análise se partirmos da mesma premissa da qual partiu Paulo Emílio, pode ser também estendida para os outros países da ‘latinoamerica’ e suas respectivas produções.

Outra conclusão que pode ser tirada sobre o atual cinema latino americano acontece ao passo que deixamos descansar na estante as breves páginas de Paulo Emílio e desfrutamos de alguns filmes recentes de tal cinematografia, tais como os vistos: Machuca, Pântano, As luvas mágicas, O filho da noiva e, por fim, Whisky. Ao nos deparamos com essas obras em sequência, e não necessariamente nessa ordem, fica impossível não sublinhar como buscam, cada uma a seu modo, possuir identidade reconhecível e peculiar. O quanto demonstram querer ser um Cinema latino-americano, enquanto conjunto de características, entre as quais algumas próprias. A ânsia de definição de fronteiras desse Cinema, em especial produzido no século XXI, pode ser reconhecida através da insistência retórica de O filho da noiva, ou das luvas mágicas, por exemplo, quanto à demarcação geográfica da trama, que ocorre geralmente
através de contextualização social e de forma óbvia em diálogos, ou ainda quando os filmes se utilizam de recursos narrativos quase novelísticos, bastante característicos, dentre outras recorrências.

Acima de tudo, é relevante a análise da característica mais marcante em todos esses filmes: a presença forte do cotidiano, não apenas como plano de fundo para as tramas, mas, como uma atmosfera que possui voz própria, atuação soberana e veiculadora de situações diárias que constituem, por fim, um posicionamento estético, o qual foi tomado por todas as obras anteriormente citadas. Dessa forma, a opção por histórias intimistas e “banais” parece ter sido uma solução plausível para um cinema de baixos orçamentos, que tem que dançar conforme a música, e até tem dançado no ritmo.

Em Whisky logo não é diferente, a abordagem do cotidiano dada pelos diretores Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll vem também dominadora, cercando os personagens Marta e Jacobo, a primeira, empregada do segundo em uma pequena fábrica de meias em Montevidéu, propriedade deste, que por sua vez, é um homem de aproximadamente 60 anos, solitário desde a morte da mãe. A relação entre os dois é distante, mas revela uma estranha interdependência. Determinado dia, Jacobo recebe a notícia que será em breve visitado pelo seu irmão, também proprietário de uma pequena fábrica de meias, sendo no Brasil (que, por sinal, é também mencionado por algumas vezes: literalmente e através de elementos citados como os famosos “dois beijinhos” ou o ainda-mais-famoso Tony Ramos, tudo participando da tentativa incansável de fazer a América Latina, como conjunto, soar familiar.). Em Jacobo tal visita reage como uma ocasião para afirmar que está com uma vida suficientemente equilibrada, oportunidade ideal para mascarar, diante do irmão, suas fraquezas. A presença desse quarto elemento na trama, (os dois primeiros seriam Marta e Jacobo, o terceiro o Cotidiano) provoca um desajuste nas articulações antes tão previsíveis e mecânicas, nos trazendo situações que se distanciam do Comum asfixiante e lodoso ao estilo de Pântano, ou ainda do cômico oferecido pelo As Luvas Mágicas: nos fazem pôr em prática um tipo de riso despretensioso e raro. Nos personagens, qualquer forma de prazer ou apreço só é apresentada do meio pro final do filme, e tudo começa com um sorriso bastante forçado para a foto de família. “Sorria e diga whisky!” é dito antes do clique em substituição esquisita ao arcaico – e até cômico- “olha o passarinho!” o comum acompanhante do flash em algumas infâncias.

Se ao início Marta era retratada sempre na fábrica, e sua imagem intercalada com planos aproximados de máquinas trabalhando incessantemente, (até lembram o plano-detalhe da agulha da máquina de costura no brasileiro Limite, de Mário Peixoto, inclusive pelos planos estáticos) de forma que uma imagem quase permeava a outra, ou que o close da máquina podia ser lido, em metáfora, quase como um close da própria Marta, (mostrando a força com a qual o Cotidiano infiltra vidas) ao final, a personagem mostra-se desvinculada desse contexto inicial. Há, ao longo da narrativa, uma descoberta dela sobre si mesma, sobre as suas diversas possibilidades de existência, e um desfecho que permitiu visão otimista ou ainda, pode se arriscar dizer em uma leitura mais ampla, que o filme ousou acreditar em progresso.

O curioso é pensar que, apesar de tamanho empenho em compor um mosaico de filmes que quase buscam a negação à tese inicial de Paulo Emilio, na tentativa de afirmar que não somos apenas um prolongamento do ocidente e de identificar uma identidade latino-americana, não soa estranho verificar o título, de única palavra estrangeira? Whisky (e não Uísque, você vai ver no Google...), por fim, convida a uma experiência interessante e apreciável de análise do panorama das recentes produções vizinhas, mas é suficiente para fazer acreditar que o cinema latino-americano é cultura original?

Somos mesmo colônias devoradas pelas metrópoles (elas, crocodilos que são!)... (desculpem o infame trocadilho musical) COTIDIANAMENTE. Ou, recaindo na trajetória do subdesenvolvimento: “de fato, o segundo [ocupante] também é nosso e seria sociologicamente absurdo imaginar a sua expulsão”? Nesse segundo caso, caros espectadores, convém ficarmos mais calmos com o Whisky de W, K, e Y. Embriaguemo-nos é de Cinema, enfim. E um brinde à Latinoamerica!

"O abraço partido" por Germana Glassner



Apesar do baixo orçamento e, consequentemente, precariedade nas produções o Cinema Argentino Contemporâneo tem se destacado como um cinema de qualidade ao apostar na profundidade psicológica de seus personagens. Um dos realizadores desse “Novo Cinema” é o cineasta Daniel Burman, que estreou na carreira, em 1997, e desde então já acrescentou a seu currículo onze filmes (quatro curtas e sete longas), entre eles a “trilogia” “Esperando o Messias” (2000), “O Abraço Partido” (2003) e “As Leis de Família” (2005), que refletem sobre temas como identidade e paternidade.

Com “O Abraço Partido” Daniel ganhou o troféu Urso de Prata no Festival de Berlim de 2004, o filme (assim como os outros da trilogia) conta a história de Ariel (Daniel Hendler) e tem como ambiente a Argentina ainda em crise, principal causa da decisão do protagonista em batalhar pelo passaporte polonês (seus avós eram poloneses) e, dessa forma, ter a possibilidade de entrar na Europa.

Ariel é um jovem que viveu na ausência da figura paterna e sofre alguns reflexos disso em sua intimidade. Ao reencontrar seu pai e descobrir que o real motivo desse afastamento é uma antiga traição de sua mãe com o vizinho, o jovem questiona as suas antigas certezas que estiveram presentes durante toda a narrativa. O filme é conduzido pelo ponto de vista do protagonista e utiliza uma câmera na mão, quase subjetiva, que acompanha de maneira intimista o personagem, exceto nas cenas em que há um distanciamento emocional da parte dele, nessas, são utilizados planos gerais e médios com a câmera fixa. A montagem picotada de acordo com o fluir de seus pensamentos, também, aumenta a sensação de envolvimento do espectador.

Tocante sem ser apelativo, com um humor sutil e uma sensibilidade amadurecida, “O Abraço Partido” é a prova de que essa nova geração de cineastas traz uma proposta que vale a pena ser conferida. Filmes como esse, mostram a vitalidade e o dinamismo a que se propõe o atual cinema latino americano, abrindo margem a grandes expectativas.

"Whisky" por Lucas Andrade


Era engano” “É, às vezes acontece”. “Digam whisky”. Um homem que abre sua fábrica todo dia no mesmo horário. Um vendedor que sempre pergunta sobre o time do cliente. Um bolo que gira da mesma forma em uma vitrine e chama a atenção de transeunte. O dono da fábrica, o cliente, o homem que se encanta com o bolo, que sempre responde que às vezes acontecem enganos e que diz whisky ao tirar fotos é Jacobo. Sua vida parece ter uma rotina preestabelecida, e realmente tem, porém, a chegada do seu irmão irá impor um novo padrão em sua vida, pelo menos no tempo em que ele permanecer lá.

Pode parecer estranho que “Whisky”, esse filme singular, tenha sido feito no Uruguai. Ao se perguntar para um grupo de pessoas quantas já assistiram produtos audiovisuais desse país, pouquíssimas, talvez nenhuma, dirão que já. Então, era de se esperar que isso ocorresse por conta da baixa qualidade da produção, porém, essa obra mostra o contrário. Com um cinema naturalista e que se preocupa com a micro-esfera, “Whisky” conseguiu sair do Uruguai e chamar atenção do mundo, tendo inclusive ganho prêmios internacionais, como no festival de Cannes.

No filme, Jacobo, um velho ranzinza, pede a ajuda Marta (sua empregada e, de uma forma estranha, sua amiga) quando sabe da chegada do seu irmão Herman ao Uruguai. Ele pede para que ela finja ser sua esposa. Não se diz de forma exata o porquê dessa mentira, mas parece claro que Jacobo precisa de alguma maneira mostrar a Herman que conseguiu levar sua vida no Uruguai de forma bem sucedida. Há uma tensão na relação desses irmãos, eles parecem se falar apenas pela obrigação do parentesco. Até a troca de presentes parece falsa (e previsível, já que ambos dão os mesmos presentes um para o outro na ida e na volta).

É esse cinema naturalista o que mais chama a atenção no filme. E ele parecia prever o que estava por vir (ou talvez já fosse reflexo disto): o “cinema romeno” que mostrou ao mundo obras bastante cruas e reais. Como no “cinema romeno” atual, “Whisky” mostra uma situação, porém, ela nunca é o mais importante. O que chama atenção do espectador são as tensões e as reações dos personagens, que tem um grande grau de realismo. Não é preciso saber porque que Jacobo é ranzinza, nem porque Herman não pode ir para o enterro da mãe, porém, é impossível não notar as expressões de desgosto que Jacobo transparece ou o ressentimento dele por seu irmão não estar presente na morte da mãe.

Existem elementos que são mostrados de forma bastante suave e talvez passe despercebido por alguns. São ações como: basta Hermam ir embora e Jacobo logo separa as camas recolocando-as na posição do começo do filme. É após a partida do seu irmão também que ele volta a tomar café no bar, que ele recomeça a chegar cedo na fábrica. Todas essas situações tentam mostram que Jacobo está tentando voltar a sua rotina, porém, algo que foge do controle dele acontece. Marta não mais chega cedo e parece que nem se quer irá chegar. Ela parece ter “fugido” para viajar e ser livre com o dinheiro que ele dera para ela. Como defende a teoria de Syd Field, o filme começa quando tudo está normal, algo acontece e no final tudo volta ao habitual, porém, é um habitual em que nem tudo é igual a como era antes. Em resumo, é isso o que realmente acontece em “Whisky”, porém, o fato de estar dentro dessa “fórmula” não faz dele um filme menor.

"O abraço partido" por Matias Wulff


“O Abraço Partido” é um filme do diretor argentino Daniel Burman (2004). Conta a história de uma familia judia em Buenos Aires, no contexto da crise do final dos anos 90. O personagem principal, Ariel, de pouco menos de 30 anos, quer sair desse pequeno universo que lhe parece oprimente. Ele mora com a sua mãe divorciada. Seu pai foi embora misteriosamente para Israel, aparentemente para se inscrever no exército, quando ele era uma criança. Ariel tem um forte rancor por essa partida vivida como um abandono covarde cheio de segredos. Também o espanta a lembrança da perda de sua namorada. Ele pretende, então, afastar-se do ambiente do centro comercial para viver na Polônia. Quer descobrir suas verdadeiras raízes, de onde escaparam seus avós judeus durante a guerra, mesmo se a entrevista na embaixada da Polônia e o subsequente choque cultural o deixam desmotivado.

O trabalho de câmera oscila entre grandes planos e efeitos handheld que guiam os espectadores na labiríntica consciência de Ariel. Além de uma mis-en-scene instintiva, Burman decidiu filmar quase tudo com câmera na mao: móvel e rápida, esta se torna um mecanismo para entrar en contato permanente com os personagems e penetrar no centro da intimidade. Assim, desde os primeiros minutos, somos absorvidos no redemoinho da vida do pequeno centro comercial, microcosmo de intercâmbio cultural entre migrantes de diversas épocas e lugares, sobretudo da comunidade judaica da Argentina, fazendo-nos entrar nas situações cotidianas mais pitorescas e simultaneamente mundanas. Passando de um personagem ao outro rapidamente, Ariel nos apresenta seu olhar do dia a dia, e dos personagems que o rodeiam: sua mae; dona de uma loja de lingerie que joga constantemente com a saudade do pai Elias, e que vive na esperança de sua volta. O seu irmao mais velho, um comerciante ambicioso, não muito bem-sucedido, viciado no trabalho. O dono da nova loja de internet, um velho idoso que tem uma relaçao ambígua e incerta com a sua secretaria, uma loira de uns 30 anos. De imediato, nota-se uma atração por essa mulher de parte de Ariel, com a qual desenvolve uma relação ao longo do filme. Sua avó, sobrevivente de um campo de concentração, que pode ajudar a seu neto para obter a nacionalidade polonesa, mas que resguarda os segredos da familia, e sobretudo conhece a história do fantasma que atormenta e espanta a Ariel: Elias. Alem disso, a dificuldade comunicacional com uns novos donos de uma loja coreana, dá um caráter mais absurdo a esse mundo. A presença do pai é notável na sua vida, mostrada pelas conversas, pelos detalhes do comportamento das pessoas da galeria, pelas preocupações de Ariel.

Ao longo do filme, Burman emprega sua câmera voluntariamente caótica para traduzir no cinema as atribulações de Ariel e cristalizar sua procura balbuceante de identidade. Sem cair no Pathos, e sem perder a leveza, ele descreve os dilemas e as perguntas existenciais de Ariel: Ficar na Argentina com sua família disfuncional, num país em plena crise econômica ou partir para a Polônia? Fugir dos demônios do passado ou procurar as lembranças dos próximos para entender-se? Desfazer-se do seu pai para sempre ou reencontrar-se com ele no momento em que ele ressurge repentinamente na sua vida ? Para viver vai ter que tomar a dura decisão entre esquecer e dar as costas ou enfrentar os seus tormentos, e assim, descobrir outra realidade, aprender a perdoar.

Além de tocar o clássico tema da busca de identidade, o filme denota bem esses elementos que fazem a particularidade da comunidade judaica argentina: seja através da paixão secreta da avó pela canção yiddish, ou da relação mãe – filho extremadamente complexa. Não faz questão de uma exaltação das peculiaridades, mas do culto aos detalhes que dão ao mesmo tempo realismo e interesse ao filme. São esse detalhes que podem construir uma mensagem universal sobre as relações humanas, ainda que esse não fosse o objetivo de Burman.

Parece uma crônica agridoce sobre uma minoria e uma juventude em sofrimento, O abraço partido traz atuações autênticas e memoráveis (com Daniel Hendler no papel de Ariel), o filme é engraçado e tocante. O filme faz parte do novo cinema argentino e seu humor cínico judeu é comparável a Woody Allen. Um filme de risadas curtas e repetitivas que nos lembra da dificuldade de nos tornarmos, simplesmente, nós mesmos.

“O ano em que meus pais saíram de férias” por Clara Pérez


Em 1970 o Brasil foi tri-campeão de futebol da Copa do Mundo no México. Infelizmente, nem tudo no país era digno de ser celebrado na época. Pelo contrário, os jogos de futebol serviam, em parte, como fator de evasão da situação política. O Brasil atravessava o período mais turvo do regime militar começado em 1964 e cuja repressão contra os inimigos políticos e qualquer possível ameaça à ordem militar se incrementou consideravelmente depois que Médici assumiu a presidência no ano 1969. É nesse contexto que está ambientado “O ano em que meus pais saíram de férias”, segundo longa-metragem do cineasta e roteirista Cao Hamburguer.

Nele, o direitor conta a história de Mauro, um garoto de Belo Horizonte de doze anos, cujos pais se vêem obrigados a “sair de férias” (versão dada ao menino para evitar ter que explicar-lhe que teriam que entrar para a clandestinidade em virtude da perseguição política que sofreriam pelo regime militar em consequência de suas ideologias de esquerda). Por causa destas “férias” impostas aos pais, Mauro deve ir morar com seu avô paterno em São Paulo (no bairro do Bom Retiro, conhecido pelas comunidades de imigrantes que se abrigavam lá) só que a sua inesperada morte dá um rumo inesperado à história. O menino, agora longe de sua família, tem que afrontar seu novo cotidiano numa comunidade bem particular composta pelo velho e solitário Shlomo (um judeu vizinho do avô), pela menina Hannah ou pelo estudante e ativista político Italo, de origem italiana, entre outros. Isso não será facil para ele já que terá que se adaptar à nova realidade que lhe rodeia ao mesmo tempo em que, ansioso, espera em vão uma ligação dos seus pais ou a chegada do dia da Copa do Mundo, dia no qual seu pai prometeu voltar. Este novo cotidiano de Mauro, seu instinto de sobrevivência que vai ter que desenvolver ao máximo durante os longos momentos que passa sozinho, sua ingenuidade inicial da qual pouco a pouco vai se desprendendo até deixar atrás parte de sua infância (de uma forma meio forçada com acontecimentos que vão obrigar-lhe a madurar), a paixão pelo futebol (elemento socializante e fator de evasão até no Brasil atual)... Estes são os principais temas deste filme que, de fato, poderia ir bem mais longe e aprofundar a atual conjuntura do país, ao invés de se prender de forma até certo ponto exaustiva sobre o cotidiano de Mauro, durante o que foi a fase mais sanguinária da ditadura militar brasileira.

O filme se compõe de algumas das lembranças pessoais do diretor que, como o protagonista, viveu a persecução política dos seus pais e que também adorava o futebol e foi goleiro na sua infância: “Muito da história do filme é parte de minhas memórias e das do Cláudio [outro dos roteiristas do filme]. Não é um filme autobiográfico, mas contamos muito de nossa própria infância nele”. De fato, a figura do goleiro é recorrente a todo o filme, fazendo alusão à metáfora deste jogador que, como Mauro, tem que sozinho o jogo ao qual está participando e escolher as melhores táticas para vencê-lo, sendo também o único membro que não possui o direito de errar.

O contexto histórico-político da ditadura e do tricampeonato mundial no México é um simples plano de fundo, sendo a questão principal a confusão do garoto Mauro frente a sua situação pessoal após o “abandono” por parte dos pais, e também com respeito à situação nacional da qual desconhece (parece que só no final do filme, com a detenção de Shlomo e a fuga de Italo, Mauro começa a perceber que algo fora do normal está acontecendo no Brasil). Com relação à análise do personagem de Mauro, aos seus sentimentos antagônicos (solidão e tristeza ligadas às saudades dos pais mas também pequenas alegrias infantis ligadas ao futebol, aos novos amigos...), o filme alcança as expectativas. Da mesma maneira que desde o ponto de vista técnico, conta com um elenco qualificado, desde o menino, até as interpretações da mãe dele, de Hannah, de Shlomo, de Irene... todas elas são inquestionáveis.

No entanto, é uma pena que um filme ambientado na fase mais cruel do regime autoritário seja tão superficial e tão alheio à realidade política que atravessava o país. É verdade que nem todos os filmes sobre um período histórico particular precisam ser documentais ou tratarem aspectos exclusivamente históricos, mas qual o interesse da história de um menino que sendo filho de perseguidos políticos, conta uma história até certo ponto banal? Que retrata um dia a dia no qual poderia ter qualquer outro menino morando em qualquer outro país, democrático ou não, (excluindo as cenas das pixações contra a ditadura que Mauro observa pela janela e algumas cenas finais, mas bem escasas e sempre superficiais, sem aprofundar nem um pouco na questão). Infelizmente, o filme limita-se a contar a história de um garoto que mora isolado de mais no seu prédio, totalmente inconsciente da realidade do Brasil do ano 1970, que como todos os garotos do mundo inteiro toma banho queixando-se da água fria, não gosta de ficar longe dos pais, espia mulheres bonitas, etc, etc. Tudo isso, na minha opinião, carece de interesse uma vez que já fizeram intermináveis filmes retratando essas mesmas coisas... até dá para entender porquê, segundo a crítica, as crianças que viram o filme gostaram dele. Mas para aquele que quiser, não necessariamente falo em saber um pouco mais sobre aquele ano do auge da repressão durante a ditadura militar, mas simplesmente se aproximar dos sentimentos das pessoas comuns que viveram aquilo, melhor abster-se de ver “O ano em que meus pais saíram de férias”, que pouco contribui neste sentido.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

"O Pico dos Delírios (“El Topo” de Alejandro Jodorowski)" por Douglas Deó Ribeiro






Existem duas formas de fruir uma obra como “El topo”: ou se tenta racionalizar neuroticamente todos os potenciais símbolos deixados pelo autor, ou mergulha-se sensorial e oniricamente nas composições visuais e nos delírios narrativos. Ambas as formas tem suas vantagens e ossos; é uma questão de escolha.

Parece não haver muito sentido quando se tenta encontrar uma lógica – no sentido aristotélico do termo - no filme. Ele se propõe onírico, psicodélico, ilógico, corrente. É um western, mas o excesso de sangue, os símbolos cristãos, os personagens estranhos podem adquirir inúmeras interpretações na leitura de quem assiste.

Apesar dessa desorganização estrutural da narrativa, há muitas imagens de impacto bastante relevante, quer seja por uma profundidade de campo expressiva, quer por uma encenação em que um rigor aparentemente incompatível com a desorganização da história fica evidente.

Há duas observações importantes surgidas dessa dissociação forma-conteúdo: primeiro, numa proporção bastante exagerada, essa composição de aparência casual constitui um universo fílmico mais humano do que aqueles em que há um rigor excessivo no diálogo entre o discurso e sua forma – não significando que esta ou aquela maneira de trabalhar seja esteticamente superior. Em segundo lugar, uma dissociação intencional, em que há uma aparente ausência de conteúdo coerente, desloca o foco da obra para essa desconexão, como se houvesse um discurso acima do discurso imediato, como camadas de interpretação,

“El Topo” é um filme incômodo. Pode nausear um espectador comum – e muitos outros espectadores. Sua constituição, seus delírios apresentaram uma aceitação maior, talvez, por ocasião do seu lançamento porque havia um público cuja constituição ideológica era compatível com a liberação das amarras da lógica mental através do uso das drogas e de tantos outros recursos subversivos. Por isso, como a maioria – ou todas – as obras, o filme é melhor apreendido quando se pensa nele inserido em seu contexto.

"Água Caliente para Chocolate" por Evandro Mesquita


É um delicioso filme de Alfonso Arau sobre amor, tradições, paixão, comunicação e comida. A presença marcante do misticismo ao longo do filme vem regada à alegoria da comida. A estória acontece no início do século 20 no México. A protagonista, Tita é a última das três filhas que nasce com o destino marcado. De acordo com a tradição Mexicana, a última filha a nascer ficava proibida de casar para que ela pudesse cuidar da mãe em seu envelhecimento. Tita estava sempre na companhia de Nacha, a empregada da casa, e se torna a cozinheira da família. Quando desperta para a sexualidade, apaixona-se por Pedro, um menino formoso de uma fazenda vizinha. Elena, mãe de Tita, recusa-se a aceitar o casamento dos dois, mas oferece a mão de Rosaura, a filha mais velha. Pedro aceita e Tita sentindo-se traída vê seu mundo desabar, até o momento em que descobre que a verdadeira intenção de Pedro era ficar por perto.

Para aumentar sua tristeza, Elena lhe incumbe dos preparativos do casamento da irmã. Neste ponto, assistimos ao primeiro encontro do filme com o místico. Tita chora dentro da panela de preparar bolo e quando todos na festa comem um pedaço começam a chorar por um amor perdido.

Tudo o que se deseja é que Tita encontre sua felicidade com Pedro, mas isso não é o que acontece no final. Quanto à mãe Elena, desejamos que morresse estrangulada ou envenenada por Tita.

A história apresenta alguns elementos de “Cinderela”. Elena é tão fria e má quanto a madrasta e Rosaura trata Tita como uma escrava.

“Como Água Para Chocolate” é rica em simbolismo e metáforas: a comida sensual e seus ingredientes, a filha de Rosaura que se chama Esperança e o próprio título do filme. A água para chocolate refere-se à alta temperatura que a água tem de atingir para liquidificar o chocolate.

O filme também nos mostra a condição de subserviência mulher mexicana (ou latino-americana).

Quanto à estética, achei o ritmo do filme um pouco lento - até parece que o tempo não passa. O filme é um pouco escuro (escuridão das vidas ou porque a maioria das cenas é interna?).

O cinema latino americano, a partir do final dos anos 80 tem apresentado uma safra de novos cineastas que buscam uma proposta mais independente em relação ao cinema comercial de Hollywood ou o cinema de arte europeu. Arau, Walter Salles, e outros têm se firmado como realizadores que conseguiram unir arte e lucro conquistando um público sensível e exigente e dizendo que o cinema neste lado do mundo pode, sim, ter uma identidade própria.

"Machuca" por Luiz Marcos de Carvalho



O filme “Machuca” é uma co-produção Chile/Espanha/Inglaterra, dirigido pelo chileno Andrés Wood e ambientado no Chile em 1973, pouco antes da derrubada do governo socialista de Salvador Allende.

O filme retrata os acontecimentos do período, através do olhar de crianças, uma de classe média alta, Gonzalo (Matias Quer) e outros pobres moradores de barracos, Pedro Machuca (Ariel Mateluna) e suas famílias e revela traços biográficos do diretor.

Assim, o filme faz um paralelo entre a luta de classes que se desenrolava no plano macro político do Chile, com a situação individual dessas crianças e adolescentes.

Enquanto no plano político, o filme mostra as diversas tentativas do governo de instaurar uma situação mais justa, com uma diminuição das desigualdades entre ricos e miseráveis e as reações das elites e também o boicote insuflado pelas corporações internacionais, que viram seus interesses contrariados pela estatização de bancos e de empresas diversas, e principalmente das minas de cobre, no plano individual o filme mostra a repercussão desse quadro nas vidas desses jovens.

Os filhos das classes abastadas estudavam no melhor colégio, o St. George, dirigido pelo padre Mc. Enroe, um corpulento e vigoroso clérigo católico, que comungava com o ideário socialista e, que resolveu pô-las em prática, abrindo vagas gratuitas a vários alunos da comunidade carente que vivia nas proximidades do colégio.

Com isso o padre estava procurando diminuir a desigualdade social, criando uma ponte entre as classes e, também esperava estar seguindo a doutrina cristã, para a qual todos os seres humanos devem ser tratados como irmãos e filhos de Deus. Assim, o filme relata o destino simultâneo de duas utopias: o socialismo político e a doutrina cristã da fraternidade universal.

Tanto uma, como a outra, irão encontrar obstáculos instransponíveis: o socialismo, através da insurreição da burguesia que não iria abrir mão de seus privilégios e no plano individual, o reflexo desse ponto de vista se traduzia nos preconceitos dos colegas para com os “seus novos amigos”.

É possível superar esses obstáculos, esses preconceitos, profundamente arraigados na sociedade? É uma pergunta que está subjacente à narrativa fílmica. E, em ambos os casos, o filme mostra o que aconteceu: O malogro de ambas.

Inicialmente, entre os colegas Gonzalo e Machuca se desenvolve uma amizade verdadeira, que conduz a uma esperança de que as desigualdades pudessem ser superadas a partir dos indivíduos, principalmente das crianças, as quais ainda não estão definitivamente impregnadas do ódio entre classes, que vigora entre os adultos. Mas, tanto o contexto familiar como o político social, vão acabar por destruir essa iniciativa de convivência harmônica ensaiada por esses amigos que viviam em ambientes sociais tão diversos.

A situação política faz precipitar essa separação, com o acirramento dos ânimos de parte a parte, com as manifestações de rua dos defensores e dos opositores do governo de Allende. O resto é história (oficial) e assim prevaleceu mais uma vez o direito da força em detrimento da força do direito, sepultando, uma vez mais, a utopia de que um mundo melhor, mais igualitário, é possível.

Ainda que todas as utopias tenham fracassado desde o princípio, até nossos dias, isso não deve servir de motivo para que nós desistamos de alcançá-las, pois tal quadro seria ainda mais terrível do que o malogro das diversas tentativas até hoje efetivadas. O Homem não pode abandonar nunca seus sonhos de mais justiça e de mais igualdade, por mais longo e incerto que seja o caminho a ser percorrido. O Homem não pode desistir de lutar, como parece estar acontecendo hoje. Isso, sim, MACHUCA

"Um Shakespeare Latino-Americano" por Tiago Bacelar


Uma colher de sopa de tragédia shakespeariana, uma pitada de dramalhão mexicano e muita comida. É dessa mistura de culinária, romance proibido, história de época e guerra entre México e Estados Unidos, que saiu do forno, Como Água para Chocolate. Produzido em 1992, o divertidíssimo filme do mexicano Alfonso Arau tornou-se um dos primeiros reais sucessos de bilheteria latino-americano.

Toda a história do filme é guiada pela comida. A cebola, representando a lágrima, tempera o chororô sem fim, à melancolia e a tristeza dos personagens. Interpretações exageradas marcam a atuação dos atores. As rosas expressam o sangue como símbolo do romance, da paixão e atração sexual. O fósforo desvenda à alma, a alquimia, a pedra filosofal, à vontade e razão para viver.

A sopa cura a loucura, a insanidade, a perda da razão. A cozinha é a vida. Tita e Pedro encarnam a tragédia shakespeariana de Romeu e Julieta. Amor proibido, indo contra os costumes, rumo à morte trágica. Gertrudes seria uma espécie de Hilda Furacão, de boa família, larga a riqueza para viver num bordel e retorna triunfalmente como generala dos revolucionários mexicanos.

Rosaura é frágil como uma pluma. Mesmo se casando com Pedro e tendo uma filha chamada Esperanza, ela não consegue superar o fantasma da sua irmã Tita, verdadeira dona do coração de seu marido. A mãe representa uma mistura da clássica bruxa má das histórias infantis com a típica assombração dos filmes de terror.

Como Água para Chocolate é bem marcado historicamente, indo de 1895 até 1934, no casamento de Esperanza. A reconstrução de época é interessante, passando pelos cenários, figurinos, costumes e caracterização de personagens. As diferenças entre a família mexicana de Tita, conservadora, e a família americana do dentista, aberta e receptiva, é um bom exemplo do ótimo trabalho de concepção do filme.

O livro de culinária narra a história e o último plano visto é um enquadramento do livro se fechando da mesma forma que os desenhos animados de Walt Disney. São as somas de uma trama bem realizada, atores dedicados a proposta do filme e a intertextualidade de cinema e literatura, que tornaram Como Água para Chocolate num grande sucesso de público e bilheteria. Vale a pena ver de novo.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"Cinema argentino no século XXI" por Paula Riff




“O Pântano” (La Ciénaga) e o “Filho da Noiva” (Hijo de la Novia) representam a diversividade do cinema argentino, pois, apesar de terem muito em comum, constituem gêneros completamente diferentes. Ambos foram produzidos em 2001, na Argentina e sua temática aborda, em suma, as relações familiares. Entretanto, a ótica e a narrativa empregada mudam completamente a experiência adquirida de tal maneira que ao assistir a tais filmes tem-se a impressão de nada terem em comum.

O Filho da Noiva segue o modelo do típico cinema de gênero influenciado pela narrativa leve e linear das comédias norte-americanas. Tem seu personagem principal bem definido, Rafael Belvedere (Ricardo Darín), e o filme se desenrola a partir dos acontecimentos que ocorrem em torno dele, ou seja, conta a história de um homem que ao sofrer um ataque cardíaco revê seus valores familiares e tenta dar outro rumo a sua vida.

Os momentos de clímax do filme são claros, assim como os relacionamentos entre os personagens e os conceitos de família e de amor presentes na história. Para cada problema exposto, há uma resolução. Há começo, meio e fim bem delineados. No começo, há a apresentação dos personagens e das relações. Através de uma cena da infância de Rafael conhecemos seu amigo Juan Carlos (Eduardo Blanco) personagem importante na narrativa.

No meio do filme são apresentados os conflitos que o personagem terá que superar: a sua relação com sua mãe, Norma Belvedere (Norma Aleandro, atriz principal do também argentino “A história oficial”), com sua filha e com sua namorada. E no final há a resolução de todos os conflitos de maneira positiva. É um filme comum, divertido e que, apesar de todas as influências externas, não deixa de representar muito bem o cinema do seu país.

O outro exemplo de cinema Argentino destoa completamente das narrativas comuns. “O Pântano” é um filme tenso e inquietante. Sua temática não é bem definida assim como não são os personagens ou as relações que se formam entre eles. Há sempre a sugestão de algo que nunca é confirmado o que abre a oportunidade de diversas interpretações. As insinuações das relações incestuosas e homo afetivas incrementam ainda mais a ambiguidade do filme.

Não há um personagem principal. Sendo assim, a única coisa que une todos os personagens é o lugar onde a maioria dos eventos ocorre o que faz com que próprio local se transforme em um dos personagens da narrativa, ao qual se refere o título do filme.

Não há a elaboração de qualquer curva dramática ou clímax quer seja no início ou no fim da narrativa, o que reforça a impressão de estagnação dos personagens que não conseguem sair da fazenda, exemplificado pela tentativa frustrada de uma das personagens de ir para a Bolívia. Tal estagnação é simbolicamente tratada pela imagem da vaca submersa na lama.

O excesso de personagens em quadro que faz parte da mise-en-scène criada pela diretora Lucrecia Martel impõe ao expectador a permanente sensação de sufocamento. Um dos temas muito interessante abordado no filme é o da condenação ao legado familiar o qual fica claro na oposição da primeira e a última cena que revelam a repetição das ações ou inações dos personagens velhos, pelas personagens jovens que terminam o filme sentadas na borda da piscina, como se estivessem condenadas a ter o mesmo destino de seus ascendentes. Tal tema ainda é explorado no medo que é demonstrado pela matriarca Mecha (Graciela Borges) que temia ficar presa em sua cama até o fim da vida como acontecera a sua mãe.

“O Pântano” é uma espécie de drama psicológico, subjetivo, cheio de ambigüidades, simbolismos, personagens complexos e relações instáveis, e um excelente exemplo de cinema argentino e de cinema autoral.

O filme “O Pântano” de fato propõe estilo diverso do cinema argentino que “O Filho da Noiva” representa, mas diferente do que muitos acreditam, eles não se opõem. Não há qualquer impossibilidade de apreciar os dois gêneros e se sentir satisfeito e orgulhoso com o crescimento e aprimoramento do que alguns chamam de Novo Cinema Argentino e consequentemente do Cinema Latino-Americano, cada qual com produções competentes para cada intenção proposta: divertir e surpreender.

"Gravando na memória" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Que tipo de necessidades levam um homem a preocupar-se com o registro de suas memórias? Há quem imagine que o pouco tempo de uma vida seja motivo suficiente para que uma pessoa deixe para a posteridade suas impressões, talvez pelo medo de um fim repentino. As lembranças parecem compor uma espécie de nuvem de coisas importantes e sem importância em constante fuga e que se encaminham para este destino tão certo quanto aparentemente próximo. Como somos sábios... para que deixar na memória o que pode estar fisicamente gravado? A máquina de escrever é o ponto de partida do personagem Sergio para registrar suas Memórias do Subdesenvolvimento [CUB, 1968]. Dirigido por Tomás Gutiérrez Alea, a produção cinematográfica cubana, baseada no livro homônimo de Edmundo Desnoes, coloca questionamentos relacionados à situação do país após a revolução de 1959.

Era uma vez Sergio Corrieri, um homem de 38 anos, burguês ex-dono de um negócio de móveis, que vivia com a falta de grandes preocupações de seu mundinho isolado e com uma esposa que, por sua vez, se empenhava em torrar parte da renda do marido em sua paradisíaca ilha tropical européia. Após a revolução, quando todos os seus companheiros de classe, inclusive mulher e família, decidem ir embora da ilha, Sergio fica, para ver como serão as coisas. E assim resolve registrar o que lhe parece algo digno de importância. Porém, diferente do que falei anteriormente, é o excesso de tempo que o impele a refletir sobre sua situação e ocupar seu vazio existencial.

Como em um diário pessoal, o protagonista tece impressões sobre o contexto da Cuba pós-revolucionária. No primeiro momento Sergio em sua situação de abandono parece não se incomodar. Recorre a aparelhos tecnológicos, gravador, telescópio, para refletir e observar a realidade. Logo se sente entediado. Com isso passa a um olhar mais direto e crítico, saindo e vendo com os próprios olhos o momento em que vive. E sua análise da realidade parece cada vez mais confusa. Então passa aos diversos questionamentos que são colocados pelo filme. A própria decadência de sua individualidade é cercada pelo que chama indiferentemente de subdesenvolvimento. Na provinciana capital Havana ou nas pessoas com quem passa a conviver, distantes do seu ideal de modernidade européia; ou na sociedade em que vive, no cinema [com a autorreferência ao ICAIC, produtor do filme], na arte clássica [seu ideal de beleza, que o diga a Vênus de Milo]. Cada vez mais o personagem sente-se incomodado com tudo aquilo que o cerca, principalmente quando se dá conta da própria mediocridade de indivíduo deslocado em uma ilha pessoal constantemente invadida pela conscientização do ser subdesenvolvimento que também é, e que toma conta de seus pensamentos até sufocá-lo por completo.

É dessa maneira que o diretor nos leva ao contexto cubano. A partir do personagem Sergio, Alea se mostra como um cronista de seu tempo, sua necessidade consiste em criticar as contradições e a arrogância do homem burguês, mas também refletir sobre os rumos que o país seguia com a burocratização do Estado cubano. Sua lucidez difere da maneira confusa com que o protagonista enxerga a realidade, embora ainda pareça que a posição do diretor ficou dispersa naquela nuvem de coisas importantes e sem importância... Misturando referências do neo-realismo italiano com aspectos formais da nouvelle vague, realiza um filme autoral, uma registro da sociedade cubana sob uma ótica de imparcialidade que se apresenta como verossímil.

Vale a ousadia de seu cinema, não tão simples de ser digerido, até mesmo pela duplicidade que coloca neste filme, entre o documental e o ficcional. No entanto, Alea parece não temer um fim repentino para seus questionamentos e fica a impressão de que Memórias do Subdesenvolvimento não tem tanto um desfecho sólido enquanto registro histórico como o tem enquanto registro cinematográfico. Talvez por isso haja novas necessidades de novos filmes para novas memórias, inclusive de outros contextos. E por que o cinema como ponto de partida? Seria uma suposta falta de tempo ou o excesso do mesmo? Como somos práticos...

"Em busca de memórias 2" por Nilson Braga de Almeida



Os bons professores que ministravam a disciplina de história, ainda na minha época de escola, já alertavam os alunos sobre o certo distanciamento com que deveriam observar as informações registradas nos livros. Esse olhar crítico, na opinião deles, seria fundamental na construção de um cidadão pensante e transformador, que não crê em tudo que ouve e vê, mas que averigua com esmero cada situação a seu redor.

E, em se tratando de nossa pátria-mãe, lembro-me bem que essa atenção deveria ser redobrada. Como fazemos parte de um povo dominado desde a suposta descoberta de nossas terras por Pedro Álvares Cabral, no ano de 1500, as chances de haver divergências entre o que é ensinado em larga escala à população e o que de fato ocorreu e está ocorrendo é bem maior do que nos países desenvolvidos, pois inúmeros são os interesses sociais, políticos e econômicos ambicionados por estes sobre nossas nações e que estão escondidos atrás de coisas aparentemente comuns.

Adentrando agora apenas no aspecto nacional, local, chegamos à conclusão de que pouca coisa é diferente dessa situação. Os governos que passaram por aqui, sejam democráticos ou ditatoriais, liberais ou autoritários, sempre tentaram guardar e revelar apenas o que querem, apenas o que vai ser vantajoso e que lhes trarão benesses. O importante é noticiar aquilo que vai gerar ganhos. Tudo é visto com interesse.

Parando um pouco para pensar melhor na história contada nos países que fazem fronteira com o Brasil e, comparando-as com a daqui, observamos que não há nada de tão diferente. A América Latina sofre desse mesmo mal. Se olharmos, por exemplo, para nossos vizinhos argentinos, constataremos que a história dos livros também é essa: obscura, tendenciosa e parcial. E é exatamente esse complexo tema que o diretor portenho Luis Puenzo explora no filme A História Oficial (1985). Afinal, o que é verdade e o que é mentira nos livros didáticos? E na imprensa? Quanto de hipocrisia e falsidade chega até nós?

Não precisa demorar muito para ver que o longa poderia promover calorosos debates, com diálogos ácidos no decorrer da película. Mas, ao invés de penetrar a fundo nos questionamentos que surgem em determinados momentos – como nas cenas gravadas na sala de aula, assim como naquelas protagonizadas por uma personagem recém-chegada do exílio e, que passou, inclusive, por sessões de tortura, fazendo a partir daí florescer sérias discussões político-sociais – o cineasta preferiu dar ênfase a uma trama paralela onde predomina o lado pessoal dos personagens, seus dramas familiares.

A História Oficial ficou muito distante do rol das grandes obras cinematográficas, fazendo com que o espectador fique sempre esperando algo mais que o filme poderia proporcionar. Não deixa de ser relevante como resgate de um momento histórico nacional e, por que não, latino-americano. Porém, não empolga como deveria, chegando a ser apenas razoável em se tratando de cinema. O que valeu mesmo? A intenção de pôr o dedo na ferida.

"O filho da noiva" por Yanna Luz


O Cinema argentino tem passado por uma revigoração desde a década de noventa, apesar da forte crise econômica atravessada pelo país. Os Filmes, por terem recentemente atestado um salto de qualidade técnica e de linguagem na produção nacional, proporciaram o lançamento internacional de nomes como Lucrecia Martel, Daniel Burman, Marcelo Piñero e Pablo Trapero. Nessa fase da produção da Argentina tem sido notável a predileção pela exposição intensa da crise da classe média do país, transpondo à tela com freqüência as dificuldades e frustrações de tal estrato social, funcionando, portanto, como uma espécie de antropofagia dos tempos recentes.

É também nesse contexto, e explicitamente, que encontramos ‘O filho da Noiva’, de Juan José Campanella. Com ritmo narrativo envolvente e roteiro bem estruturado, o filme conta a história, pincelada em tons atuais, de Rafael, ocupadíssimo dono de restaurante, que vive engolido pelo seu cotidiano estressante. Argentino de meia-idade, sem tempo para a filha, em conflito com a ex-esposa, com pouco tempo pros amigos, namorada, pai, e mãe, que não visitava no asilo há quase um ano. Como seria de suspeitar, toda essa correria deságua em um problema cardíaco que fará Rafael repensar o modo como leva sua vida, e reestruturar, especialmente, seus laços afetivos, o modo como lidava com as outras pessoas e consigo mesmo. Ao longo da exposição de tal tentativa de recomeço, o filme se encarrega de nos apresentar situações antes não imaginadas, que deslizam facilmente do emocionante para o engraçado.

É fato que o espectador não deve esperar do filme inovações estéticas ou estilísticas relevantes na condução da narrativa. Talvez aguardar apenas boas atuações, um roteiro bem amarrado e alguns diálogos bem feitos seja o ideal para não se desapontar. No filme não existe a vontade de revolucionar o cinema atual, nem de definir um formato sobre o qual o cinema latino americano deva se moldar, um padrão que deva seguir. Por outro lado, se prevenindo de tais aspirações, inicialmente bastante pretensiosas, o filme evitou um possível afundamento diante do público, apresentando tema de interesse geral, com firme identidade: o suficiente para arrebatar grandes platéias e faturar, inclusive, indicação ao Oscar, se definindo, por fim, como um bom alicerce, se não narrativo, no mínimo, financeiro e técnico para a cinematografia argentina. Interessante, sim. Mas é incerto se imperdível...