sábado, 5 de dezembro de 2009

"Navegar impreciso- resenha sobre 'O canto do mar'" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Navegar é preciso, viver não é preciso... A beleza das ondas e o horizonte indefinido do mar sugerem caminhos turvos, trajetos e possibilidades nos quais uma pessoa pode projetar suas esperanças, seus sonhos, seus ideais. Talvez por uma imprecisão do destino em terra, muitos indivíduos enxergam na serenidade das águas a solução para seus problemas e a satisfação de suas necessidades. A incerteza deste caminho parece ser algo mais concreto, mais sólido que a rigidez da vida em terra firme. As palavras do poeta se aplicam muito bem à abordagem de o Canto do Mar [Brasil, 1953], filme de Alberto Cavalcanti em sua fase brasileira.

Gravado no Recife, a obra fala da miséria e da falta de perspectivas de vida do homem nordestino. Um grupo de retirantes do sertão passa uma etapa no litoral pernambucano enquanto espera pela partida rumo ao sul do país, em um navio. É durante esta fase de transição que nos é apresentada a família de Raimundo, residente na capital. Após um acidente seu pai torna-se inválido por deficiência mental. Maria, a mãe, toma a liderança da família, cabendo ao filho parte da responsabilidade pela subsistência de seus parentes. Além dos citados, a irmã mais velha Nina e o irmão pequeno, Silvino. Assim, Raimundo e as pessoas de seu convívio sofrem com a falta de perspectivas do meio em que vivem.

Cada um lida à sua maneira com a dura realidade: A mãe é bastante severa, trabalha como lavadeira e procura manter a unidade da família, no entanto seus esforços são em vão; Nina, desiludida, encontra no meretrício uma alternativa ao destino que lhe espera; E Raimundo, ainda esperançoso, encontra no mar a saída para seus problemas. Planeja fugir com a namorada para o sul, esforçando-se para conseguir o dinheiro para as passagens de navio para a cidade de Santos. Porém, como fala uma garota ingênua – interessante personagem secundária – o destino engana. E é com essa situação que o jovem aos poucos se depara.

O Canto do Mar é um remake do filme En Rade, do próprio Cavalcanti, produção francesa de 1926. Nascido em uma família de militares positivistas, não encontrava aceitação em casa, devido à sua homossexualidade. Estudou na Europa, onde fez carreira no cinema, tendo lugar de destaque nas vanguardas francesas e na escola documental inglesa. Após trinta anos fora do país, é convidado para o cargo de direção de arte na Vera Cruz, a grande tentativa de estabelecer uma indústria cinematográfica nacional. Junto com sua bagagem internacional, Cavalcanti traz uma série de profissionais estrangeiros para dar conta dos filmes, além de capacitar brasileiros para os cargos técnicos.

Como se sabe, a Vera Cruz foi um fiasco. Além do preconceito que sofreu por sua orientação sexual, o cineasta sofreu vários ataques tanto dos intelectuais conservadores quanto dos mais progressistas. Assistindo O Canto do Mar, pode se imaginar algumas das razões: O filme mistura elementos do então recente neo-realismo com aspectos mais tradicionais, principalmente na forma. É um filme de transição, precursor da temática nordestina tão abordada na década seguinte, com o cinema novo. Causou polêmica também ao expor para o mundo a miséria do contexto nordestino, além de elementos da cultura popular, o que deve ter incomodado bastante as elites culturais. Mesmo assim o filme é bastante equilibrado, tem um bom roteiro e qualidade na abordagem e na técnica. Mas a excessiva estilização fugiu um pouco do contexto nacional. O sotaque brasileiro parece forçado...

Assim como os personagens de seu filme, o cineasta se deparou com uma realidade que lhe foi hostil. Mesmo com o prestígio internacional, Cavalcanti não conseguiu se adaptar ao seu local de origem. Era um estranho no ninho, um estrangeiro no próprio país. Profundamente amargurado, o brasileiro partiu de volta para a Europa, onde também se sentia deslocado entre três países, França, Inglaterra, Brasil. A imprecisão do destino forçou-o a procurar por outras identidades, nacionalidades, navegar por outros horizontes.

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