sábado, 5 de dezembro de 2009

"Whisky" por Cleiton Costa


Nos últimos dez anos, a America latina chamou a atenção do mundo para o seu cinema. Entre diversas produções de vários países, alguns filmes se destacaram por encarar um tema ainda pouco explorado pelo cinema ocidental (e improvável em Hollywood): o cotidiano comum. A argentina Lucrecia Martel encabeçou tal iniciativa com Pântano (La Ciénaga) e nos seus filmes seguintes, explorando o cotidiano ao extremo, onde tudo indica algo, mas nada acontece no sufoco da rotina. As Luvas Mágicas (Argentina, 2003) do diretor Martín Rejtman leva de uma forma mais descontraída essa abordagem da rotina entediante dos seus personagens. Mas, o melhor exemplo (a meu ver) da perfeita construção do tédio do cotidiano é Whisky (Uruguai, 2003) dos diretores Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Filme que alcança o equilíbrio entre o fascinante e o maçante (o desequilíbrio é um perigo constante de filmes com essa proposta).

Whisky nos apresenta Jacobo Köller, um senhor judeu que está indo pros 60 anos, dono da mini-fábrica de meias Köller. Marta é sua funcionária antiga, que já beira os 50, e que cuida do fabrica junto com ele, além de fiscalizar as outras duas funcionarias. Jacobo é carrancudo, ranzinza, o típico judeu “econômico”, frio, mas educado. Marta é a uma mulher introspectiva, passiva, obediente. E o mundo dos dois é: chegar ao amanhecer no trabalho, sair à noite. Um mundo acostumado à repetição, às maquinas, à incomunicabilidade. Mas a relação dos dois é quase conjugal. O conjugal que virou rotina. Talvez nada mudasse esse modo de levar a vida, a não ser o elemento estranho ao meio: o irmão de Jacobo, Herman, que mora no Brasil e vem para as cerimônias de passagem do aniversário da morte da mãe judia. Herman, o oposto, moderno, simpático, extrovertido, inquieto. É o bastante para abalar a vida dos dois seres inertes.

Whisky toma como ponto de partida esses personagens e seus universos, mostrando um delicado cuidado na construção deles, e do modo minimalista de com eles se relacionam. Personagens que têm tantos detalhes que preencheriam páginas. Um desses mundos próprios é o que está entre os dois irmãos: a rivalidade de Jacobo para com Herman, tudo transmitido sutilmente através de pequenos gestos de antipatia, onde Jacobo faz de tudo para não ficar por baixo do irmão. Personagens que praticamente personificam a situação social do Uruguai (como o arcaico Jacobo) e do seu vizinho Brasil (como o moderno e desenvolvido Herman).

Apesar da força dos personagens dos irmãos serem sempre colocados em foco e darem mote a história, Marta consegue, com o decorrer da narrativa, atrair a filme para o seu mundo. Um mundo particular e fascinante. Uma mulher fechada que esconde a grande pessoa que é, e que só precisa de uma mão para se soltar: Herman, ele é que vai incentivar esse desabrochar, criando momentos em que ela aprenderá a se divertir e a sorrir de verdade (e não forçar, como ela costumava fazer), relembrando até seus tempos de garota, como na brincadeira de inverter as palavras. Todo o sentimento disfarçado dela por Jacobo, indo gradativamente se revelando aos poucos (mas até no máximo da revelação, ainda assim, sutil), e mesmo diante das claras/sutis declarações de afeto, a indiferença de Jacobo. Situação essa que provoca a grande transformação do filme: a Marta que vai ficando cada vez mais independente desses sentimentos, em uma crescente auto-valoração, até ao momento de libertação total, na cena em que ela fuma na frente dele.

E a grande ironia de Whisky é que o título, que remete à bebida alcoólica, não tem esse sentido no filme, porque, no Uruguai, essa é a palavra usada na hora de tirar uma foto. Momento que acontece duas vezes: com Jacobo e Marta, e entre os três. Momento que em que eles fingem estarem felizes e unidos. Mas logo depois, cada um segue seu caminho.

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