segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"Gravando na memória" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Que tipo de necessidades levam um homem a preocupar-se com o registro de suas memórias? Há quem imagine que o pouco tempo de uma vida seja motivo suficiente para que uma pessoa deixe para a posteridade suas impressões, talvez pelo medo de um fim repentino. As lembranças parecem compor uma espécie de nuvem de coisas importantes e sem importância em constante fuga e que se encaminham para este destino tão certo quanto aparentemente próximo. Como somos sábios... para que deixar na memória o que pode estar fisicamente gravado? A máquina de escrever é o ponto de partida do personagem Sergio para registrar suas Memórias do Subdesenvolvimento [CUB, 1968]. Dirigido por Tomás Gutiérrez Alea, a produção cinematográfica cubana, baseada no livro homônimo de Edmundo Desnoes, coloca questionamentos relacionados à situação do país após a revolução de 1959.

Era uma vez Sergio Corrieri, um homem de 38 anos, burguês ex-dono de um negócio de móveis, que vivia com a falta de grandes preocupações de seu mundinho isolado e com uma esposa que, por sua vez, se empenhava em torrar parte da renda do marido em sua paradisíaca ilha tropical européia. Após a revolução, quando todos os seus companheiros de classe, inclusive mulher e família, decidem ir embora da ilha, Sergio fica, para ver como serão as coisas. E assim resolve registrar o que lhe parece algo digno de importância. Porém, diferente do que falei anteriormente, é o excesso de tempo que o impele a refletir sobre sua situação e ocupar seu vazio existencial.

Como em um diário pessoal, o protagonista tece impressões sobre o contexto da Cuba pós-revolucionária. No primeiro momento Sergio em sua situação de abandono parece não se incomodar. Recorre a aparelhos tecnológicos, gravador, telescópio, para refletir e observar a realidade. Logo se sente entediado. Com isso passa a um olhar mais direto e crítico, saindo e vendo com os próprios olhos o momento em que vive. E sua análise da realidade parece cada vez mais confusa. Então passa aos diversos questionamentos que são colocados pelo filme. A própria decadência de sua individualidade é cercada pelo que chama indiferentemente de subdesenvolvimento. Na provinciana capital Havana ou nas pessoas com quem passa a conviver, distantes do seu ideal de modernidade européia; ou na sociedade em que vive, no cinema [com a autorreferência ao ICAIC, produtor do filme], na arte clássica [seu ideal de beleza, que o diga a Vênus de Milo]. Cada vez mais o personagem sente-se incomodado com tudo aquilo que o cerca, principalmente quando se dá conta da própria mediocridade de indivíduo deslocado em uma ilha pessoal constantemente invadida pela conscientização do ser subdesenvolvimento que também é, e que toma conta de seus pensamentos até sufocá-lo por completo.

É dessa maneira que o diretor nos leva ao contexto cubano. A partir do personagem Sergio, Alea se mostra como um cronista de seu tempo, sua necessidade consiste em criticar as contradições e a arrogância do homem burguês, mas também refletir sobre os rumos que o país seguia com a burocratização do Estado cubano. Sua lucidez difere da maneira confusa com que o protagonista enxerga a realidade, embora ainda pareça que a posição do diretor ficou dispersa naquela nuvem de coisas importantes e sem importância... Misturando referências do neo-realismo italiano com aspectos formais da nouvelle vague, realiza um filme autoral, uma registro da sociedade cubana sob uma ótica de imparcialidade que se apresenta como verossímil.

Vale a ousadia de seu cinema, não tão simples de ser digerido, até mesmo pela duplicidade que coloca neste filme, entre o documental e o ficcional. No entanto, Alea parece não temer um fim repentino para seus questionamentos e fica a impressão de que Memórias do Subdesenvolvimento não tem tanto um desfecho sólido enquanto registro histórico como o tem enquanto registro cinematográfico. Talvez por isso haja novas necessidades de novos filmes para novas memórias, inclusive de outros contextos. E por que o cinema como ponto de partida? Seria uma suposta falta de tempo ou o excesso do mesmo? Como somos práticos...

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