segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"Iracema, meu amor" por Gabriel Muniz de Souza Queiroz


Não bastasse o título, no mínimo provocativo, o filme ainda tem como protagonista uma indiazinha menor de idade que se torna prostituta em Belém, após uma festa religiosa. Assim, direto. Isso no Brasil de 1974, em plena ditadura militar, rendeu à produção Brasil / Alemanha / França uma proibição oficial por alguns anos... Liberado em 1981, Iracema – Uma Transa Amazônica, de Jorge Bodansky e Orlando Senna é um valioso retrato das contradições que o grandioso projeto desenvolvimentista militar da época apresentava, porém condenadas ao silêncio e à “colaboração” popular. Diante de numerosas interrogações até mesmo sobre sua nacionalidade, Iracema foi chamada de estrangeira, e por isso extraditada para seu lugar de origem, a Europa, onde foi premiada em diversos festivais.

Diferentemente da heroína de mesmo nome no romance do século XIX, esta Iracema [Edna de Cássia] é representada de uma maneira totalmente oposta. A jovem inocente que viaja de barco com a família para a festa do Círio de Nazaré, rapidamente se converte em prostituta e fica em Belém, mostrando desenvoltura ao caminhar pela cidade grande. Encontra o caminhoneiro Tião Brasil Grande [Paulo César Pereio] em um cabaré e com ele pega carona Brasil adentro, observando as diversas realidades das variadas pessoas com quem se esbarra pelo caminho. Iracema se perde no Brasil Grande. O personagem de Pereio é um homem comum, desacreditado do presente e esperançoso do futuro. Contraditório? Tião é uma alegoria do brasileiro, tem fé no país e sua força, se mostra iludido com o ideal de progresso propagado com a construção da Estrada Transamazônica. No entanto, Pereio / Tião é como um agente provocador nas diversas conversas / entrevistas com os habitantes da região.

Essa interpelação de pessoas comuns caracteriza a forma mista documental / ficção de Iracema, que começa pelo rio como um boat-movie documentário para depois chegar a Belém e se definir como ficção-documental. A dupla de diretores, um bom roteirista [Senna] e um bom fotógrafo [Bodansky], aliada à competente equipe técnica [o som em especial], conseguiu fazer desta película um importante documento sobre a época, além do mérito de uma obra de grande qualidade artística. O olhar e a interrogação direta com os habitantes gerou uma experiência de contato com uma região pouco representada, onde não há lei ou ordem, onde a maioria está igualmente perdida à própria sorte em um espaço – natureza mãe – hostil e hostilizado. A presença estrangeira está começando a ocupar a terra que “ninguém” ocupa.

Iracema e Tião percorrem o Brasil Grande e rico, pelos tortuosos caminhos de exploração, queimadas, prostituição e miséria dos habitantes da região. No pára-choque do caminhão: “Do Destino Ninguém Foge”; No pára-brisa: “Brasil Ame-o Ou Deixe-o”. Assim, essa viagem Transa Amazônica propõs um nome mais adequado àquela situação, onde um projeto tão mirabolante quanto predatório buscava “unificar” o país. E, como sabemos, a estrada Transamazônica continua na mesma.

Ser assim tão direto, na provocação do texto e na fotografia de um plano de queimada semelhante à bandeira do país, custou ao filme brasileiro Iracema um período clandestino só finalizado com o processo de reabertura política. Neste período a brasileira Iracema / Edna de Cássia deixava de lado o sonho de ser atriz. Também em 1981, foi encontrada por um programa de auditório. Edna Cereja, seu verdadeiro nome, então com 21 anos, contou sua vida como lavadeira em um cortiço de madeira em Belém, com seu filho de 3 anos. Para o filme e para a protagonista foi um grande risco fazer Iracema – Uma Transa Amazônica. E o sonho de ser atriz da brasileira Edna esbarrou na realidade que ela própria representou.

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