segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"De ditaduras a outras" por Annyela Rocha


Em seu documentário de 2007, SiCKO, Michael Moore entrevista alguns franceses sobre o sistema de saúde no país. Enquanto nos Estados Unidos pagam-se altos preços para as seguradoras de saúde e se tem um mau atendimento hospitalar, na França os serviços médicos são universais, gratuitos e de boa qualidade. Uma francesa fala, então, para Michael: “Lá, o povo tem medo do governo. Aqui, o governo tem medo do povo”.

Por diferentes motivos e em proporções distintas, isso também se aplica á situação política do Brasil e de outros países próximos. Os jovens de hoje em dia (e eu tenho que me incluir nesse quadro) não viveram a ditadura, não foram perseguidos por militares nem sofreram com isso. Mas o trauma causado ao país entre as décadas de 1960 e 1980 ainda persiste. A exemplo disso, temos o projeto recente Memórias Reveladas, coordenado pelo Arquivo Nacional, da Casa Civil da Presidência da República, e destinado a apurar informações sobre o período da ditadura brasileira. Os comerciais veiculados referentes ao Memórias Reveladas trazem a constatação de que ainda há vários desaparecidos políticos no país. O projeto pede por arquivos, informações, documentos que os ajudem a encontrar essas pessoas e deixam claro que a identidade do informante não será revelada.

Ou seja, de uma forma ou de outra, é verdade que por aqui ainda persiste esse medo do governo, medo de ir à luta pelos direitos. Como alternativa para superar os receios, a história é divulgada a fim de ser debatida, compreendida e servir de exemplo para novos ânimos, novas formas de ver o mundo e se pensar política. E é dessa forma que surgem, na literatura, livros como Clamor - a vitória de uma conspiração brasileira (Ed. Objetiva, 2003), do jornalista pernambucano Samarone Lima, e, no cinema, filmes como O ano em que meus pais saíram de férias (Cao Hamburguer, 2006) e o filme chileno Machuca (Andrés Wood, 2004).

Os dois filmes citados tratam da conflituosa época de ditadura em seus respectivos países através do olhar infantil. Infantil por assim dizer, porque os dois têm como protagonistas os infantes, mas nenhum deles possui um conteúdo leve foi ou feito para crianças. Torna-se interessante então, falar aqui de Machuca, não porque ele é melhor, mas porque mostra uma situação histórica menos conhecida pelos brasileiros (se hoje poucos sabem as diferenças entre Geisel e Médici imagine quantos são os que entendem de fato quem foi Pinochet).

Andrés Wood escolheu como linha narrativa a amizade entre dois garotos, Gonzalo Infante (Matias Quer) e Pedro Machuca (Ariel Mateluna). Gonzalo é branco, bem alimentado, tem uma boa casa num bairro de classe média e veste roupas boas. Machuca é moreno, magro, de ascendência indígena e mora num povoado ilegal, o que para nós é a favela. A amizade só se torna possível devido ao projeto de integração numa escola católica britânica, a Saint George’s College, encabeçado pelo diretor Padre McEnroe.

Ambientado em Santiago, no ano de 1973, o filme mostra personagens bem acentuados, quase estereotipados: o rico, o pobre, o bom samaritano, os burgueses de caráter fraco. Até certa altura da narrativa, Salvador Allende ainda está no poder. Apesar da premissa socialista, os grupos vivem do contraste e persistem separatistas. A amizade entre os meninos causa incômodo nos que veem.

Infante e Machuca mostram a verdade de que é possível conviver com as diferenças. É inevitável, no entanto, não perceber o olhar de Wood. Enquanto Infante só pode mostrar frivolidades do mundo dele, Machuca tem virtudes e aprendizados concretos a serem mostrados para o amigo. Aparece ainda mais uma personagem, Silvana, bem interpretada por Manuela Martelli. Além de descobrir as diferenças de classes, Gonzalo também começa a sentir as evidências de ser adolescente, ficando atraído pela menina, muito mais esperta que ele e visivelmente esquerdista.

No entanto, a relação criada entre as identidades culturais divergentes entra em crise quando Augusto Pinochet dá o golpe militar e instaura o seu governo conservador. O Padre McEnroe é reprimido, a menina Silvana, assassinada, e a favela onde Machuca mora, atacada, durante uma visita de Infante ao lugar. Numa atitude egoísta, talvez para representar que afinal de contas Gonzalo é mesmo só um burguês, o menino consegue se livrar do soldado que o ameaça e vai embora, deixando tudo para trás. De qualquer forma, não havia nada que pudesse fazer naquela situação além de cuidar de si mesmo.

Assim, o falso abraço entre as posições sociais assimétricas é desfeito. No fim, Gonzalo se muda. Mostra assim, como a família do menino fica alheia à violência praticada pelo governo. Pior, com o totalitarismo, eles parecem obter melhores condições de vida.

Mesmo que tenha um desenho estereotipado, a câmera discreta de Andrés Wood e a estória comovente atraem o espectador. Machuca atende às expectativas da narrativa clássica, tendo fácil entendimento apesar de possuir uma temática pesada. Pode levar o público a refletir, incitar debates, ou não. Porém vale a intenção de trazer a temida realidade às telas sem medo de destrinchar, sentir ou combatê-la. Instigante iniciativa e recomendável para entender um pouco da realidade de um país que, mesmo não encostando as fronteiras com as nossas, tem um histórico tão pesado como o daqui.

3 comentários:

  1. Aniela
    Gostei muito de sua resenha sobre o filme "Machuca". Equilibrada, consciente, não sectária, mas esclarecida politicamente. Isso renovou minhas esperanças na juventude,que andavam meio em baixa. Explico: o jovem hoje, em geral, não quer ter qualquer envolvimento com a política. Até compreendo essa atitude, pois sabemos bem como se faz política em nosso país. Mas isso é um grande erro, porque, alguém que ignora a política, não ficará, por essa razão,imune às suas consequências, que, queiramos ou não, atingem a todos. Portanto, essa atitude de avestruz não é uma atitude correta. Espero muito estar completamente errado,mas tenho ouvido e lido muito jovens afirmando que não há mais motivo para lutas (não estou falando de luta armada), pois os tempos são outros e ao que parece, vivemos no melhor dos mundos. Uma juventude sem ideais amplos parece-me algo estarrecedor. Apenas uma correção geográfica: além do Chile, também o Equador não faz fronteira com o Brasil. Parabéns e um abraço do colega
    Luiz

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  2. Muito obrigada pelos parabéns

    e pela correção,

    não sou muito orientada geograficamente mesmo,
    heuehuehueh

    ainda bem que me avisastes,

    =]


    Anny

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  3. anny, querida, gostei muito do teu texto. parabéns!

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