domingo, 25 de outubro de 2009

"Um filme na iminência" por Annyela Rocha



Sobre o que fala o filme O Pântano, de Lucrécia Martel? Relações familiares, conflitos sociais, preconceito? Sobre tudo isso, quem sabe. Ou até sobre nada. Nas linhas gerais, é o retrato de uma família argentina pouco estruturada.

Duas famílias vão passar uma temporada num sítio onde se plantam pimentões. A família que possui a casa é liderada por Mecha. Logo de início, ela sofre um acidente banal, consequência de um alto nível de embriaguez. O marido, além de não se importar muito, está também bêbado demais para socorrê-la. As filhas a levam para o hospital.

A confusão familiar é um tema recorrente. O marido de Mecha teve um caso com uma amiga dela, Mercedes. Agora quem tem um affair com a mesma Mercedes é o filho do casal, José. A filha mais nova, Momi, tem uma amizade peculiar com a empregada da família, Isabel, uma indígena. A prima de Mecha, Tali, é divorciada e cuida euforicamente dos seus quatro filhos.

Os personagens estão sempre desestabilizados, em crise. Quando não são estressados, são alheios ao que acontece ao redor: ou alienados por escolha própria ou inocentes no meio de tudo (este último é o caso das crianças). E é impossível não perceber o descontrole de todos eles: diálogos banais em cenários apertados e a câmera quase tocando nos atores. Aliás, tudo quase se toca em O Pântano, das temáticas abordadas aos elementos da mise-en-scène.

Além do incômodo causado pelas recorrentes discussões, outro fator pode perturbar um pouco o espectador – há uma completa falta de higiene no filme. Momi usa o mesmo maiô durante toda a narrativa. Um dos filhos de Tali corta a perna e vai lavá-la na pia da cozinha. O filtro e a bomba da piscina estão com defeito, deixando a água completamente suja. Percebe-se, assim, a não-aleatoriedade da escolha de tempo e espaço feita por Martel. A diretora toma parte de um ambiente causador de preguiça, numa época do ano na qual tudo que aflora é o marasmo.

Além da tal sujeira, há no longa uma presença do sangue. Esse elemento dá conta de intensificar, ao mesmo tempo, a presença da vida e a iminência de morte. Permanece sempre no ar uma sensação de tragédia. Os personagens têm uma tendência pessimista de sugerir o trágico em vários momentos, ao exemplo de uma viagem à Bolívia que Tali faria com a prima, mas deixa de lado por medo de dirigir pelo percurso.

Lucrécia trabalha ainda com o anticlímax. Durante a projeção nada especial ou muito marcante acontece. As cenas sempre determinam uma tensão de que algo grande vai ocorrer: parentes se olham com um desejo aparentemente sexual, crianças brincam com armas. No entanto, quando algo com forte potencial narrativo surge, não há alarde nem intensificação da linha dramática. Resta apenas a fuga: o filme acaba.
Dessa forma, é tudo sobre o cotidiano. Uma família problemática como qualquer outra pode ser. O nada vivido por personagens bizarros, mas ao mesmo tempo reais. O carinho fraternal pouco aparece. Ficam mais evidentes os conflitos, as brigas, que fazem o espectador se sentir dentro da discussão, mas sem o direito de voz. Com uma excelente construção de personagens, a diretora consegue abordar todos os problemas familiares e sociais possíveis. No fim das contas, O Pântano é uma construção propositalmente instável de Martel. Um castelo de cartas – prestes a ser soprado.

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