sábado, 4 de junho de 2016

O pagador de promessas, por Macário Hartnett


 
 
 
O que é a fé? Até que ponto um homem pode aderir as suas crenças espontaneamente? O homem tem o direito de pensar por conta própria? As crenças de um homem devem conformar-se a um conjunto de dogmas pré-estabelecidos por uma instituição que favorece os interesses da classe dominante?

O pagador de promessas é um filme de Anselmo Duarte, ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 1962. O enredo simples do filme parece inicialmente se propor a responder apenas a primeira das perguntas sugeridas acima.

O humilde Zé do Burro (Leonardo Villar) caminha sete léguas debaixo de sol e chuva, acompanhado pela esposa Rosa (Glória Menezes) e carregando uma pesada cruz nos ombros para se prostrar em frente ao altar da igreja de Santa Bárbara em Salvador e agradecer por uma graça alcançada.

A graça é a salvação de Nicolau, o seu melhor amigo, que fora atingido por um raio durante uma tempestade. Ao descobrir que Nicolau na verdade é um burrinho, e que a promessa fora feita em um terreiro de macumba, O padre Olavo (Dionísio Azevedo) não permite a entrada da cruz na igreja. Assim tem início a trama do filme.

Na Divina Comédia, Dante Alighieri narra em versos a árdua jornada de um homem que desceria até as profundezas do inferno, cruzaria o purgatório e se elevaria até o paraíso - apenas para contemplar, uma última vez, o rosto de sua amada. Zé do Burro não teria tanta sorte. A Igreja de Santa Bárbara é o paraíso onde Zé almeja entrar com sua cruz. O inferno é representado por um antro de perdição, o bar no outro lado da rua onde a esposa do protagonista é seduzida por um cafajeste. Nosso herói é condenado a aguardar sua sina na escadaria da Igreja, o purgatório.

A partir de um conflito simples – a religiosidade espontânea de um sertanejo em oposição aos dogmas da Igreja – o enredo estabelece em microcosmo um emblema da luta de classes marxista. Zé do Burro é o representante do proletariado que, contra a sua vontade, acaba indo de encontro aos interesses de uma instituição poderosa e autoritária. Sozinho ele é incapaz de derrotá-la. Contudo, o final do filme revela a crença do diretor que o povo unido é capaz de vencer qualquer barreira. Vale lembrar que o filme foi produzido no final de um breve e conturbado período de democracia no Brasil, marcado pela luta política acirrada entre a direita e a esquerda.

O filme execra a Igreja com vigor, porém faz isso utilizando-se da simbologia do catolicismo com uma vividez impressionante: após um período exaustivo de provações, é somente na morte que Zé do Burro tem o direito de cruzar o limiar que o separa do paraíso. E ele adentra as portas do céu estendido sobre uma cruz. Ele não é mais Zé do Burro. É o mártir do povo que morreu para o redimir. Ele é, a um só tempo, Che Guevara e Jesus Cristo.

O pagador de promessas foi produzido imediatamente antes do período mais sombrio da História recente do Brasil. Se durante a guerra fria ainda existia no país uma débil esperança de mudança social através do socialismo, essa crença desgastou-se gradualmente com a ascensão das ditaduras de direita no continente, a queda do Muro de Berlim, e a posterior eleição de líderes de Estado no Brasil que se diziam de esquerda, porém que na prática não se mostraram moralmente superiores aos sórdidos governantes de direita que os precederam. Se por um lado a situação atual do país é crítica, por outro ela é análoga a momentos anteriores de nossa História. Mais de meio século se passou desde a primeira exibição de O pagador de promessas. Contudo, as questões levantadas pelo filme permanecem tão atuais quanto eram na data de seu lançamento.   

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