O que é a fé? Até que ponto um homem pode aderir as suas crenças
espontaneamente? O homem tem o direito de pensar por conta própria? As crenças
de um homem devem conformar-se a um conjunto de dogmas pré-estabelecidos por
uma instituição que favorece os interesses da classe dominante?
O pagador de promessas é um filme
de Anselmo Duarte, ganhador da Palma de Ouro em Cannes em 1962. O enredo
simples do filme parece inicialmente se propor a responder apenas a primeira
das perguntas sugeridas acima.
O humilde Zé do Burro (Leonardo Villar) caminha sete léguas debaixo de
sol e chuva, acompanhado pela esposa Rosa (Glória Menezes) e carregando uma pesada cruz
nos ombros para se prostrar em frente ao altar da igreja de Santa Bárbara em
Salvador e agradecer por uma graça alcançada.
A graça
é a salvação de Nicolau, o seu melhor amigo, que fora atingido por um raio
durante uma tempestade. Ao descobrir que Nicolau na verdade é um burrinho, e
que a promessa fora feita em um terreiro de macumba, O padre Olavo (Dionísio
Azevedo) não permite a entrada da cruz na igreja. Assim tem início a trama do
filme.
Na Divina Comédia, Dante Alighieri narra em
versos a árdua jornada de um homem que desceria até as profundezas do inferno,
cruzaria o purgatório e se elevaria até o paraíso - apenas para contemplar, uma
última vez, o rosto de sua amada. Zé do Burro não teria tanta sorte. A Igreja
de Santa Bárbara é o paraíso onde Zé almeja entrar com sua cruz. O inferno é
representado por um antro de perdição, o bar no outro lado da rua onde a esposa
do protagonista é seduzida por um cafajeste. Nosso herói é condenado a aguardar
sua sina na escadaria da Igreja, o purgatório.
A partir
de um conflito simples – a religiosidade espontânea de um sertanejo em oposição
aos dogmas da Igreja – o enredo estabelece em microcosmo um emblema da luta de
classes marxista. Zé do Burro é o representante do proletariado que, contra a
sua vontade, acaba indo de encontro aos interesses de uma instituição poderosa
e autoritária. Sozinho ele é incapaz de derrotá-la. Contudo, o final do filme
revela a crença do diretor que o povo unido é capaz de vencer qualquer
barreira. Vale lembrar que o filme foi produzido no final de um breve e
conturbado período de democracia no Brasil, marcado pela luta política acirrada
entre a direita e a esquerda.
O filme
execra a Igreja com vigor, porém faz isso utilizando-se da simbologia do
catolicismo com uma vividez impressionante: após um período exaustivo de
provações, é somente na morte que Zé do Burro tem o direito de cruzar o limiar
que o separa do paraíso. E ele adentra as portas do céu estendido sobre uma
cruz. Ele não é mais Zé do Burro. É o mártir do povo que morreu para o redimir.
Ele é, a um só tempo, Che Guevara e Jesus Cristo.
O pagador de promessas foi produzido imediatamente
antes do período mais sombrio da História recente do Brasil. Se durante a
guerra fria ainda existia no país uma débil esperança de mudança social através
do socialismo, essa crença desgastou-se gradualmente com a ascensão das
ditaduras de direita no continente, a queda do Muro de Berlim, e a posterior
eleição de líderes de Estado no Brasil que se diziam de esquerda, porém que na
prática não se mostraram moralmente superiores aos sórdidos governantes de
direita que os precederam. Se por um lado a situação atual do país é crítica,
por outro ela é análoga a momentos anteriores de nossa História. Mais de meio
século se passou desde a primeira exibição de O pagador de promessas. Contudo, as questões levantadas pelo filme
permanecem tão atuais quanto eram na data de seu lançamento.
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