sábado, 4 de junho de 2016

"Los olvidados", por Lucie Berthet



Buñuel realizou "Os esquecidos" num momento em que o México, após da revolução de 1910-1920, estava tentando se reconstruir nacionalmente através da construção de uma identidade mexicana coletiva. Isso explica porque a pintura violenta de um grupo de adolescentes na periferia mais pobre do México foi muito mal acolhida pelo público mexicano, que, nessa época, preferia documentários nacionalistas como "Memórias de um Mexicano" de S. Toscano, realizado no mesmo período que "Los Olvidados" e muito mais exitoso. Assim, como enuncia Braganças, “Todo documentário é mentira”, sendo necessário analisar suas condições de produção. Em "Os esquecidos", Buñuel não se contenta com mostrar a pobreza e a violência, mas também explica, diante o perfil de Pedro e Jaibo, dois meninos carecendo de afeto que terminam roubando e matando na rua para sobreviver. Esse retrato afinado do declínio dessos dois adolescentes é fruto de meses pasados morando nas favelas do México com o fim de observar a realidade de forma mais precisa possível. “Esse filme inspira-se de fatos reais, nenhum personagem é ficticio”, ele avisa no início do filme. De fato, o filme não fala da miséria no México, porém tenta revelar, acima de tudo, o drama social que joga-se baixo os olhos dos cidadões mexicanos mas que ninguém vê.
Como o sugere o título, o filme todo lembra esse tema do esquecido o, melhor dito, do “não quer-ver”: canção do cego no início, o carro « Me Mirabas » do homem-tronco, os adultos ausentes. De fato, as crianças são esquecidas por suas famílias como são pela sociedade: os pais do Ojitos que nunca vieram buscar-lhe no mercado, o pai alcoólatra do Julian, a mãe que não ama seu filho, o Jaibo que nunca conheceu seus pais. Ademais, tanto o cego como o diretor da escola-fazenda reconhecem a incapacidade da sociedade e da família para educar suas crianças. Diante do personagem da Marta, Buñuel também desconstrói a figura da mãe mexicana, o que indignou profundamente o público mexicano.
Porém, nesse filme, Buñuel não julga. Não acusa a sociedade que tenta ajudar, propondo uma escola para Pedro, mas dá conta de uma situação que parece ter a morte como única saida. De fato, liando seu gosto pelo naturalismo social a suas origens surrealistas, o autor consegue filmar a miséria sob seu aspecto mais terrível: um ciclo infernal do qual não se pode escapar. “Ah se pudéssemos encerrar a miséria para sempre!”,  sonha o diretor da escola quando manda Pedro à cela para acalmar-se. Mas não podemos encerrar a miséria. É a miséria que encerra, apoiada no seu trabalho pela ignorância-tolerância da sociedade que finge não saber. O personagem do cego constitui uma alegoria desse público cego ao que Buñuel tenta abrir os olhos “Uno menos ! Uno menos ! Ojala les poderian matar a todos antes de que nascen !” ele profere no final do filme no modelo das soluções radicais do governo Diaz. Mas a miséria não se erradica assim e a violência é o vetor que o permite propagar-se como uma gangrena. O filme inteiro fica construído por elementos que lembram essa ideia de “circuito fechado”. De fato, começa por uma imagem de corrida, arena fechada na qual as crianças debatem-se, sofrendo, mas incapazes de escapar. Estão espancados por seus semelhantes, o que acentua a impressão de circuito fechado: é o ser humano mesmo que inflige o pior tratamento possível e encerra ao outro. A repetição das cenas das galinhas batidas fortalece também essa ideia de encerramento. O fato de que sejam atuadas pela mãe e depois o Jaibo que pode assimilar-se ao pai fictício do Pedro antes do que o adolescente mesmo reproduzisse essa ação participa dessa ideia de determinismo. De fato, Buñuel acredita que somos vítimas de nosso meio de origem e tem, então, um olhar compassivo sobre os seus personagens. O travelling final que sai de Pedro para perder-se no céu sugere uma libertação que só pode conseguir-se na morte.
 
Portanto, o estudo documentário realizado por Buñuel não se restringe apenas ao realismo, mas combina-se com imagens surrealistas e oníricas. Todo os elementos do filme participam da criação desse ambiente: o sonho culpado do Pedro depois do assassinato do Julian, assim como o sonho do Jaibo no momento de sua morte, lembram a dimensão onírica da obra de Buñuel com uma piscadela ao cachorro perdido do Cão Andaluz. Várias cenas ilustram também a superstição, como a cura diante da pomba, o fetiche ilustrado pelo colar de dente do Ojitos, até o erotismo com as cenas de Meche e Marta lavando-se as pernas com sensualidade. A música geralmente composta de flauta, instrumento onírico por excelência, participa também da criação desse ambiente de sonho e a técnica do fundo preto borrifa o filme de elipses parecidas com as que poderíamos ter num sonho. Enfim, as galinhas que aparecem de todos lados adicionam uma dimensão irracional ao filme.
 
Porém, essa realidade não é sonhada, o que demostra a reação violenta dos mexicanos ante esse formidável poder cinematográfico, reafirmado por Buñuel. Assistimos um filme para nos divertir, para sonhar, mas o cinema, como um espelho, nos mostra nossa verdadeira cara, tal como somos. Buñuel manuseia seu público para o obrigar a duvidar da ordem existente ainda que não tome verdadeiramente partido. A cena do ovo que Pedro joga na janela da escola-fazenda constitui uma última chamada ao resgate que se esmaga na parede da ignorância do público, a câmera se tornando no seu próprio olho. Essa parede de vidro-tela que separa os personagens do mundo real pode então simbolizar a fronteira da miséria, ante esse mundo real inacessível que os esquecidos poderiam alcançar em teoria, o que nunca acontecera ainda que com o filme de Buñuel tente criar, para eles, uma abertura.


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