sábado, 25 de junho de 2011
Bang Bang, um filme de Andrea Tonacci. Por Renan Brito
Não seria de todo errado dizer que Bang Bang não tem narrativa; poderíamos adotar essa afirmação e a partir dela discorrer sobre sua proposta e seus motivos. É certo que Bang Bang desconstrói a narrativa clássica do cinema, brinca e satiriza a curiosidade do espectador em saber qual desfecho terá a estória, desmistifica o herói enquanto herói e o vilão enquanto vilão etc. Mas a maneira como faz Andrea Tonacci, diretor do filme de 70, vai além da desconstrução e do embaralhamento dos fatos narrativos. Tonacci simplesmente monta, desmonta e remonta parte dessa narrativa. Sim, apenas parte dela, retalhando-a e a discrimando de seu todo, não oferecendo um início nem um desfecho aparentes, mas simplesmente remontando variações em torno de uma situação. Dando tiros às cegas (e não é gratúita a expressão), Tonacci constrói seu cinema, desconstruindo toda noção convencional da coerência do fio narrativo, procurando sempre novas possibilidades estéticas.
Bang Bang, no entanto, não é apenas a desconstrução narrativa de um filme para analisá-lo em sua condição de cinema. Tonacci cria em torno da situação clássica de perseguição, tão recorrente no cinema hollywoodiano (e essa escolha não é à toa), hipóteses várias que correspondem ao universo de possibilidades oferecido pelo cinema. Bandidos esdrúxulos e caricatos, um mocinho que não se vê como herói e a mocinha misteriosa que dança para a câmera, em frente a um plano de fundo ilustrado por elementos essencialmente urbanos: edifícios, construções etc. Aliás, a urbanidade é patente no filme, não só como plano de fundo, ou mesmo como cenário, mas como habitat natural dessas figuras grotescas que perambulam por aí sem objetivo aparente que não botar as garras no mocinho. Os elementos que compõem esse urbanismo exacerbado, a concretude, os mecanismos dos elevadores, amontoado de peças automobilísticas sucateadas, tudo isso realça a imundice, o caos, a exasperação da atmosfera urbana onde habitam os tais personagens dessa estória, que não é propriamente uma estória, já que a força motriz que move o chamado cinema clássico (a trama) condensa todo o filme e não oferece desfecho e muito menos explicação cabível para a perseguição. Tonacci brinca com nossa visão limitada, condicionada pelo cinema clássico, pelas estórias clássicas, de começo, meio e fim.
Próprio ao Cinema Marginal e sua filosofia, "já que não podemos fazer nada, a gente se avacalha e se esculhama", o filme de Tonacci é sujo e maculado por excelência. Esse cenário brutalmente urbano, caótico, sucateado, confere à imagem uma textura bastante exasperada, suja, imunda. É nele que os personagens atuarão (no próprio termo referente a ator, pois eles nem ao menos tentam nos persuadir, disfarçando-se de personagens, porque eles têm consciência do que realmente são: atores), onde a perseguição começará e recomeçará sem nenhum desfecho definitivo. Essa consciência de ator é também um artifício para assegurar a ideia de consciência de uma realidade que cerca a ficção. A câmera não mais se esconde para registrar a ação dos personagens e criar assim uma ficção verossímil suficiente para convencer o espectador. A cena no banheiro, em que o personagem, com máscara de macaco, canta "Eu sonhei que tu estavas tão linda", desfaz toda noção de barreira intransponível entre realidade e ficção. Ao mostrar a câmera, pelo espelho, Tonacci quebra essa barreira e instaura dentro da ficção o aparelho causador de sua própria condição. Em sua busca pelo que pode ser cinema, ele funde realidade e ficção, desmistifica a farsa do ator e joga um balde tinta na quarta parede do cinema, a parede invisível.
Pode-se pensar, a partir de então, que as ações e os olhares dos personagens para a câmera não mais serão dirigidos apenas ao espectador, mas para a própria câmera, posto que agora sua presença física e participativa é reconhecida e admitida e se encontra na mesma dimensão ficcional a que eles pertencem.
A câmera agora faz parte do espaço e de toda uma dimensão ficcional que também a abarca, junto aos personagens. Portanto, a situação de perseguição nem sempre corresponderá ao bandido que corre atrás do mocinho - essa ideia é aqui deturpada; agora não só o bandido persegue o mocinho, como a cãmera (tanto em sua função registrativa como em sua condição física) os persegue. Não que os queira presos (porque muitas vezes são capturados e logo na sequência estão livres de novo), mas a câmera quer registrar a reação por parte dos personagens. Ela os estimula, eles reagem. Numa cena, em que um mágico à Meliés brinca com a composição do quadro, nossos heróis (pois acho que nem ao menos podemos definir quem é herói e vilão neste filme) aparecem e desaparecem, fazendo poses altivas, que confirmem sua posição como herói ou vilão, para, depois, fazer desmoronar essas imagens, tornando-as até cômicas de tão desajeitadas. Quando, por exemplo, na mesma cena do mágico à Meliés, o cego perde seus óculos e começa a procurá-lo, tombando em tudo pelo cenário, e um dos bandidos come sem parar, emporcalhando-se todo.
No entanto, mesmo em suas sequências mais desconexas, ainda se encontra no espaço amostral desse cinema, uma cena de grande carga dramática: a cena em que os bandidos sofrem um acidente. Vemos no quadro, que afasta-se do chão lentamente, um carro em chamas, um homem estirado no chão, os bandidos que, após terem invadido um carro, vão embora, deixando de fora do veículo uma mulher que vinha nele. E, de fundo, uma música triste. Logo após um dos bandidos tenta contar a estória do filme e estabelecer, finalmente, um fio narrativo coerente. O que não acontece. O bandido é então acometido por uma torta na cara, enviada por alguém provavelmente da equipe de filmagem de Tonacci. Ele compreende a mensagem e desiste de continuar a estória.
O filme termina com risadas debochadas dos bastidores, enquanto um dos personagens insiste em cantar "Eu sonhei que tu estavas tão linda", enquanto se veste no banheiro. Parece então que já vimos de tudo no cinema. Talvez.
Bang Bang é a contribuição do Brasil à pesquisa estética que era proposta e realizada em praticamente todo o mundo, com maior vigor nas décadas de 60 e 70. Tonacci vai em busca de um novo cinema, sem fórmulas premeditadas, sem convencionalismos, sem técnicas manjadas, e nos oferece uma visão ousada e inovadora. Quebra antigos conceitos e lança sementes para o florescimento de outros. E assume a impossibilidade de velar a dimensão ficcional do cinema.
Referência:
XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo, Paz e Terra, 2006.
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