sábado, 30 de abril de 2011

El DÍA QUE ME QUIERAS: LATINO SIM, COSMOPOLITA TAMBÉM, por Txai Ferraz


Local de nascimento desconhecido, êxito na cena internacional, uma morte prematura: Carlos Gardel é um mito inconteste. Vítima da velha disputa infundada entre argentinos e uruguaios, sua nacionalidade é debatida até hoje, assim como a do próprio tango. Parafraseando Borges ao falar do gênero musical do qual o cantor talvez tenha sido o melhor expositor: “por suas características, só poderia ter nascido em Buenos Aires ou Montevidéu”. Em realidade, a trajetória do artista e a do ritmo se confundem. Gardel é um fenômeno cultural descendente dos gauchos, um mito gestado em toda região rio-platense e posteriormente acolhido pelo mundo.

Em El día que me quieras, filme americano de 1935 dirigido por John Reinhardt e protagonizado pelo cantor, temos um bom recorte para decodificar a figura do artista. Gardel encarna alguma espécie de alter-ego, um tanguista chamado Julio Quiroga (1) que renega a fortuna do pai para dedicar-se à música e à sua esposa. Honesto, apaixonado e inspirador, mas pouco afeito ao trabalho comum. Gardel reproduz neste filme o signo do latino como exotique, cujas bases foram lançadas muito antes, ainda no romantismo do século XIX.

Há muito de estereótipo nessa construção. O voseo praticamente inexiste na fala dos personagens. Margarita (Rosita Moreno), atriz espanhola intérprete da esposa de Quiroga e de sua filha não faz muito esforço para disfarçar o seu acento ibérico. Para não generalizar, um che ou outro regionalismo aqui e acolá escapam da boca da dupla Saturnino e Rocamora, melhores amigos do protagonista. Há uma explicação: os dois dão leveza ao filme com alívio cômico.

Quando Margarita falece, Quiroga deixa de assinar com o sobrenome paterno (Argüelles) e se torna um tanguista conhecido internacionalmente, chegando até a fazer filmes nos Estados Unidos. Por um momento, nos perguntamos se a história que estava sendo contada até então era do personagem ou do próprio Gardel. O filme se apossa da figura do cantor e o transforma em um ícone genérico, fácil de ser digerido pelas grandes massas do continente latino, mas próximo também de uma vivência cosmopolita. Exótico, porém facilmente palatável.

O personagem de Gardel está sempre disposto a enaltecer as qualidades de sua cidade de origem (leia-se: Buenos Aires). Em uma cena em um navio, voltando para casa depois de uma temporada nos Estados Unidos, Quiroga emenda duas declarações de amor: uma para sua cidade e outra para sua falecida amada. É certo que o protagonista ama demasiadamente as duas.

De certo medo, a figura do artista é uma personificação da imagem da capital portenha. Jovem, rebelde, arrebatadora, autêntica. Buenos Aires projetou-se internacionalmente com o artista e o tanguista encontrou na cidade nicho para sua criação. Em geral, El día que me quieras chama mais atenção pelos números musicais do que por aspectos formalistas. Mas o que esperar de um filme como esse? É Gardel, então que faça o que sabe fazer de melhor!

NOTA:
1. O sobrenome escolhido chama atenção para uma possível referência a Facundo Quiroga, caudilho apontado como a grande figura da organização nacional argentina. É bem provável que seja apenas coincidência, mas a conexão é, no mínimo, curiosa.

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