Saber se a vida vale a pena ou não ser vivida é a grande questão filosófica (e, então, por quê ideais viver). Como lembrou Camus em seu livro O Mito de Sísifo, Galileu, ao se ver diante da Inquisição, prestes a ser condenado à fogueira, negou todas as suas teorias, todas as verdades científicas a que tinha chegado. Do mesmo jeito, Sergio, protagonista de Memórias do Subdesenvolvimento (1968), ao se ver diante de um tribunal, acusado de molestar uma menor, deixa-se fraquejar, perde a compostura, inclina-se humildemente perante seus inquisidores. Sergio, ao contrário de Galileu, não tinha qualquer teoria, verdade científica ou ideal para defender, somente sua vida, sua liberdade, o que, afinal de contas, são propriedades que os assemelham. Sergio, figura emblema de uma burguesia decadente (à beira da extinção? na iminência do golpe socialista em Cuba), ostenta uma inteligência assídua e um subjacente desprezo pela coletividade. Acompanha debates políticos em mesas redondas, visita a casa onde Hemingway morou durante seus anos em Cuba, demonstra grande capacidade crítica e uma notável bagagem cultural e intelectual. Abandonado, ou decidido a permanecer só (por força de um imperativo tácito que ele mesmo desconhece, ou talvez só por curiosidade) em sua terra natal, quando toda a sua classe burguesa fugia do país, Sergio mergulha numa degeneradora crise existencial. Em resumo, é uma espécie de steppenwolf, um lobo solitário, tentando se distrair do tédio, ao mesmo tempo em que reflete sobre a situação atual do país, sem compromissos nem arroubos (ao contrário dos personagens de outro cineasta, Glauber Rocha, que também discutiu o tema do intelectual na vida política de um país) e procurando respostas que provavelmente não encontrará.
Durante as décadas de 1960, 1970, a América Latina talvez tenha levado sua linguagem e técnica artísticas ao ápice do experimentalismo; talvez, até, tenha firmado uma linguagem própria, uma linguagem terceiromundista. Apesar de diversos os regimes entre os países (ditadura militar no Brasil, regime socialista em Cuba, para sermos específicos), havia um sentimento revolucionário compartilhado e uma condição de subdesenvolvido, os quais os intelectuais não só admitiam como assumiam em favor de uma linguagem terceiromundista. Artistas desempenhavam o papel de interlocutor do povo, assumiam uma voz alicerçada no discurso de seus próprios diagnósticos de ares sociológicos. Glauber Rocha e seu cinema de alegorias e euforias verborrágicas, um grande articulador que, em meio a tantos artistas jovens e audaciosos, coagulou muitas das teorias a cerca do Terceiro Mundo. Nesse sentido, talvez Memórias do Subdesenvolvimento não tenha mérito, pois Alea não pretendia diagnosticar a situação de um país, mas ao menos propor um impasse quanto ao delírio coletivo que se alastrava em Cuba (e no Brasil? Ou só no cinema de Glauber?). Em uma cena, Sergio diz: “Em outra época talvez tivesse entendido o que está acontecendo aqui. Hoje já não dá”. Alea não tinha pretensões sociológicas.
Alea, portanto, não cedeu às exigências de um momento histórico premente que recomendava o posicionamento e a consequente ação do intelectual, ou do indivíduo, no meio político, na vida social. Pelo contrário, conjecturou um grande impasse diante dos rumos da História. Sergio é um intelectual hesitante, quase inerte. Suas críticas são puramente intelectuais, não passam do abstrato, mas ele não se dirige ao regime que está se firmando no seu país, não diretamente. Ele critica principalmente sua própria classe, a mesquinhez dos seus amigos, da sua família, da sua esposa. Nesse sentido, Memórias é um filme autocorrosivo. Sua crítica não aponta para as super-estruturas, mas para sua própria estrutura interna. Não é um Glauber com desejos totalizantes, megalômanos, mas um burguês solitário. Quando Sergio fala das massas, quando critica a nova conjetura que favorece o povo – o povo não tanto em seu sentido concreto, mas em termos de elemento de um discurso socialista premeditado, (“tudo é o povo, agora”, ele diz) – Sergio não o faz somente para apontar o equívoco dos ostentadores de tal discurso, mas também para denunciar seu egocentrismo e individualismo. Em várias passagens, Sergio deixa entrever certo desprezo pelas massas, ainda que tenha decidido permanecer no país naquele momento desfavorável para pessoas da sua classe. Sua atitude crítica o eleva a outro nível que não o do povo, não para assumir uma voz que o representa, um sofrimento e uma miséria que são coletivos, mas para acentuar, com certa denúncia, inclusive, seu caráter individual e sua mesquinhez. Em Glauber, o intelectual, o poeta Paulo Martins de Terra em Transe, carrega um fardo que lhe é inato. Seu sofrimento é pretensamente o sofrimento do povo, e tal grandeza serve para acentuar-lhe o caráter trágico, grandiloqüente, que caracteriza a obra de Glauber.
Se em Terra em Transe (1967) Glauber expressa com amargura sua decepção quanto ao Golpe Militar, depois de toda euforia que surgia com o Cinema Novo e suas propostas, em certo sentido, podemos comparar o poeta Paulo ao escritor do romance que deu origem ao filme Memórias do Subdesenvolvimento, Edmundo Desnoes, aquele que se faz presente na mesa redonda, em determinado momento do filme, e o qual Sergio ironiza (numa brincadeira feita pelo filme). Pois Paulo também negou as massas. Na cena em que tapa a boca de um operário e diz: “Isto é o povo! Um imbecil! Um analfabeto! Um despolitizado!”, Paulo Martins não só demonstra sua decepção em relação à força e energia libertárias do povo, mas também decreta a falência do populismo. Paulo Martins, então, desconfia dos líderes populistas, mas não os abandona de imediato. Terra em Transe teve parte de seu impacto, pelo menos no meio intelectual e estudantil (já que o filme, naturalmente, não foi distribuído em larga escala), exatamente por essa condenação proferida por Paulo Martins. Ainda assim, o filme de Glauber não se vira completamente para o poeta e seu caráter individual. Paulo Martins está decepcionado, cansado, mas sua angústia insiste em reclamar para si o sofrimento do povo. Edmundo Desnoes, no filme, também debatedor na mesa redonda, acende um charuto, no meio de uma discussão maçante. Sergio, em pensamento, diz, “E você, o que faz aí em cima com esse charuto? Sem concorrentes. Deve se sentir muito importante. Fora de Cuba, não seria ninguém... Mas aqui estás situado”. Edmundo, assim como Paulo Martins, promoveram também um grande impasse diante do delírio do povo.
“A morte como fé, não como temor”, recomenda Paulo Martins ao povo alquebrado de seu país, um povo sem vigor, despreparado para a revolução. Por isso a decepção de Paulo Martins; diante das injustiças, seu povo está inerte. Mas eu retomo aqui a afirmação de Albert Camus, saber se a vida vale a pena ou não ser vivida é a grande questão filosófica – e complemento: e também política. Quando Paulo Martins perde o apoio da grande mídia e é aconselhado a abandonar seus projetos, Paulo se nega a fazê-lo, mesmo que não esteja firme em seus ideais. “Não me interessa sua moral. Me interessa a sua vida”, responde-lhe o amigo Alvarez. Mas Paulo Martins insiste na ilusão de sua liberdade, “o que interessa é que eu me libertei”. Ao contrário de Paulo Martins, que vai em frente com seu projeto, quase que por orgulho, ou porque já não há mais volta, Alvarez se mata, não por uma ideologia, mas pela falta dela.
Eis uma pequena história do intelectual no contexto das grandes revoluções (no que há de mudanças e de reviravoltas na História). Para problematizar o momento, Camus talvez seja essencial, não só para as circunstâncias políticas, mas para a própria existência do homem. Sergio, em Memórias, é o retrato do homem em decadência porque perdeu suas referências. É, talvez, um retrato datado, devido ao esgotamento do existencialismo. Mas ao menos é um filme que propõe algo impensável para a época, a hesitação. Quanto a Glauber Rocha, abordado aqui não só pelo tema do intelectual, mas pelo que há de totalizante em sua obra, em termos de seu projeto para a América Latina e o Terceiro Mundo em geral, cabe-lhe a exasperação desse impasse, mas não, nunca a permanência nele. Na sequência final, exasperada pelo ruído de armas, Paulo Martins, o poeta, segura uma arma. Já algumas vezes havia sugerido a luta através das armas, mas o desfecho do filme ratifica tal discurso. Mas talvez nem mesmo Paulo saiba o que está fazendo, talvez esteja apenas seguindo em frente, numa crise que não é apenas ideológica, mas existencial, o que nos faz reportar a Camus, novamente. “Já lhe disse várias vezes que dentro da massa existe o homem. E o homem é difícil de se dominar. Mais difícil do que a massa”, retificando o que dissera antes, talvez Paulo Martins não carregasse o sofrimento do povo, mas a angústia do homem. Camus, novamente.
Referências:
XAVIER, Ismail. Glauber Rocha: o desejo da História. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo, Paz e Terra, 2006.
RAMOS, Alcides Freire. TERRA EM TRANSE (1967, GLAUBER ROCHA): ESTÉTICA DA RECEPÇÃO E NOVAS PERSPECTIVAS DE INTERPRETAÇÃO. Revista de História e Estudos Culturais. 2006, vol. 3, ano III, n°2.
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