quinta-feira, 24 de junho de 2010
"Aquele que nunca foi", por Victor Laet
“O que é um fantasma? Um terrível evento obrigado a repetir-se eternamente? Um instante de dor, talvez. Algo morto, que por um instante ainda parece vivo. Uma emoção congelada no tempo. Como uma fotografia embaçada. Como um inseto preso no âmbar (1) .”
(parágrafo de abertura do filme “A espinha do diabo”, México/Espanha, 2001, direção de Guilherme Del Toro)
“O que é um fantasma?”: Em 2004, Daniel Burman apresenta ao mundo “O Abraço Partido”. “Abraço” apresenta o mundo de Ariel: o dia-a-dia numa galeria onde imigrantes preenchem o espaço de antagonistas aliada a uma visão onde opacidade e transparência não se mostram tão homogêneas como se acreditava. Um mundo composto por coreanos, italianos, argentinos, peruanos, católicos e judeus – uma harmonia amistosa, onde a tolerância cultural acaba por acinzentar percepções de hierarquias familiares e conceitos avizinhados. O filme acaba por propor que as pessoas não são nem transparentes nem opacos, mas translúcidas – ou melhor, a transparência alheia primamente estabelecida pelo protagonista e depois revisitada como opacidade de outrem funciona, na realidade, como uma busca de si.
Ariel acredita saber identificar todas as pessoas da galera justamente por não saber sua identidade. Como judeu, não se reconhece na religião. Como argentino, não se reconhece no gentílico. Como arquiteto, não se reconhece na profissão. Como parente, não se reconhece como filho. E está última característica regerá a trama do filme: sendo abandonado pelo pai, Elias, aos seis meses de idade a única noção paterno-afetiva se dá uns rápidos fotogramas capturados num vídeo caseiro – todo o resto do pai são histórias dúbias e possibilidades que somente incrementa a imagem de um espectro, um vir a ser conhecido, um fantasma.
“Um terrível evento obrigado a repetir-se novamente?”: Ariel, interpretado por Daniel Hendler, não vê o pai, e a partir disso, não se vê no pai, não vê o pai em si e, então, não se vê. Frustrado com o futuro planeja torna-se polaco, onde lá, numa terra estranha, pretende se encontrar. No desenrolar da película, mostrada é Esther, sua ex-namorada. Esther está grávida e, mesmo recebendo não como resposta, Ariel se questiona se é ou não pai do bebê. E ao se questionar, conflita-se com a possibilidade de ser aquilo que não conhece: pai. E caso seja, como ser pai? Ser um pai a parte. Ser um pai partido. O trecho utilizado nesse parágrafo expressa não só uma sensação tida pelo personagem, como também sintetiza o enredo da “trilogia de Ariel”: Burman na primeira década do século XXI realizou filmes cujo mote inicial seria um personagem chamado Ariel (respectivamente: “Esperando o messias”, “O abraço partido” e “Leis de família). Em “Leis”, a história narrada é de Ariel, um empresário que vê-se seguindo os passos do próprio pai e caminha cada vez mais longe do filho pequeno.
“Um instante de dor, talvez. Algo morto, que por um instante ainda parece vivo.”: o filme, em suma, acaba por sempre escolher dicotomias – e dentre tantas, as mais interessantes seriam: dor/prazer e rir/chorar. Por mais intimista que o filme seja, ele é de um humor não só rarefeito, mas existencial – evitando assim que os temas tratados tediem os espectadores. Não possuindo um humor muito usual, o filme tem comicidade contrária de filmes que apostam na estratégia de “chorar de tanto rir” e põe a audiência na posição de “rir de tanto chorar”. Não só audiência, como os próprios personagens. É a dor – de não se identificar, de não saber se é pai, de não estar mais ao lado da namorada, de frustrações familiares, etc – que faz com que Ariel busque pelo seu prazer.
“Uma emoção congelada no tempo.”: Elias é, sem dúvida, “uma emoção congelada no tempo”. Ele nunca foi presente, nunca foi carne-osso, nunca esteve lá (apesar de, justamente por isso, sempre ter estado), Elias, aliás, somente foi um “e se”, uma consideração, um “fotograma capturado em vídeo caseiro”.
Victor Laet
Vinte de junho de 2010
NOTA:
1. http://lh6.ggpht.com/_rCJo-Oh4__M/TB49rZa-d2I/AAAAAAAAAck/hkOhu5fTLuA/s400/dfdsffsdsdf.JPG
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